Como a mineração de bauxita vem expulsando, envenenando e matando quilombolas no Pará

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  • A região, porém, é um território quilombola, e há documentos e pesquisas arqueológicas que legitimam a presença ancestral de comunidades tradicionais na área.
  • Além da luta pela posse da terra, os quilombolas também vêm sofrendo com a contaminação da água, do solo e do ar pelos metais pesados que são despejados pelas mineradoras.
  • Análises de laboratório constataram níveis excessivos de chumbo e níquel no cabelo dos moradores, que relatam sintomas que vão de coceira e feridas pelo corpo a casos de câncer.

Por João Paulo Guimarães em Mongabay | Território tradicionalmente quilombola, o município de Barcarena, no Pará, pouco viu do desenvolvimento que lhe foi prometido com a instalação do complexo industrial que recebeu várias empresas de mineração — em especial Imerys e Albras Alunorte, empresa norueguesa hoje conhecida como Norsk Hydro.

Isso ocorreu em 1979, quando o Governo Federal — na época uma ditadura militar — criou a Companhia de Desenvolvimento de Barcarena (Codebar), responsável pela implantação do complexo. Em pouco tempo, as mudanças no território foram acontecendo para que as empresas pudessem operar de acordo com a demanda de um mercado influenciado por um Estado que tinha pressa em transformar a Amazônia em um ativo que só beneficiaria as mineradoras e seus empreendimentos nocivos ao meio ambiente e à vida.

Os acidentes ambientais vêm ocorrendo há anos em Barcarena, com três episódios registrados de despejo de rejeitos de bauxita — altamente tóxicos — nos rios Murucupi e Pará: em 2009, 2014 e 2018. O último levou a uma CPI que teve como resultado várias recomendações ao Ministério Público Federal, além de indiciamentos por crimes ambientais. A Hydro sempre negou de forma catedrática qualquer acusação, mesmo com provas apresentadas por estudiosos e pela população atingida.

Complexo industrial da mineradora Norsk Hydro em Barcarena. Foto: João Paulo Guimarães

Antes da Codebar, o território onde se situa o município era território quilombola. O documento mais antigo de legitimação de posse da terra data de 1986, onde se lê que o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) detém direitos sobre a terra através do adquirente Manoel Joaquim dos Santos, antecessor das principais lideranças quilombolas que hoje lutam pelo direito de existir no território.

Um desses líderes é Valter Bubuia, hoje à frente do quilombo Gibrié do São Lourenço. Segundo ele, a invasão das mineradoras só foi possível porque, na época, a Codebar não fez política fundiária na região. “Naquele tempo era difícil avançar com negociação. Quem tinha documento conseguia, mas quem não tinha dançava”, disse ele à Mongabay.

Hoje o documento de 1986, considerado coletivo, é sua arma para reaver as terras desapropriadas pela Codebar na época. “Eles não vão deixar a gente titular porque dessa forma eles não conseguem vender ou negociar as terras no futuro”, afirma Bubuia. “São mais de 300 famílias lutando pra existir.”

Valter Bubuia, liderança do quilombo Gibrié do São Lourenço. Foto: João Paulo Guimarães

Lideranças apontam cumplicidade da prefeitura

Roberto Cravo, conhecido como Chip, é uma das principais lideranças quilombolas em Barcarena e conta que os problemas enfrentados pelo seu povo vão além da contaminação pelas mineradoras. Ele relatou à Mongabay que há um consórcio entre prefeitura e mineradoras que remonta ao início do processo de crescimento de Barcarena, sob o comando da Codebar, e que ignorou por completo a existência dos territórios quilombolas.

Segundo ele, a primeira invasão foi no distrito de Vila dos Cabanos, onde foi construída a estrutura para acomodar a elite de funcionários das empresas de mineração. Só eles poderiam ter acesso à vila. Até as escolas passaram a ser frequentadas apenas por filhos de funcionários. A questão, aponta Chip, é que essas terras pertenciam historicamente aos quilombolas — incluindo o terreno onde hoje é o quartel do 14° Batalhão da Polícia Militar.

“Se você fizer uma pesquisa arqueológica nessas áreas onde se encontra o Batalhão e o Cabanos Club, você vai encontrar artefatos que comprovam e legitimam nossa preexistência nesta região”, diz Chip. Segundo ele, a prefeitura de Barcarena usou de má-fé na ocasião, dado que estava ciente do processo de mapeamento e demarcação da terra que estava sendo feito pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) em favor dos quilombolas.

“Quando o Incra terminou o trabalho, a prefeitura construiu um muro ao redor do local que o Incra delimitou para a titulação, e que impossibilita nosso acesso à área”, explica Chip. “Eles construíram em tempo recorde e colocaram uma placa lá que diz que a área é de preservação e de propriedade do município de Barcarena. A prefeitura invadiu o terreno que o Incra garantia que era nosso.”

Roberto Chip, em frente ao mapa que usa pra explicar sobre seu território que ele acusa ter sido roubado pelo município. Foto: João Paulo Guimarães

Entre as decisões arbitrárias da prefeitura de Barcarena, a mais recente foi a tentativa da empresa Águas de São Francisco de desocupar uma área onde funcionava uma unidade de tratamento de esgoto que estava instalada em território quilombola. A empresa chegou a derrubar algumas casas, expulsando famílias do local na época em que a pandemia de covid-19 estava em seu período mais mortal, mas o Supremo Tribunal Federal, através do ministro Eduardo Fachin, deu ganho de causa para as famílias por se tratar de área na qual nem a prefeitura, nem a empresa de saneamento conseguiram comprovar posse.

“Isso é uma derrota muito grande pra prefeitura, que agiu de forma truculenta com aquelas famílias e inclusive mentiu na televisão e nas redes sociais, falando que as pessoas daquela área queriam o terreno pra venda”, afirma Chip. “Morava gente lá e eles derrubaram casas com móveis dentro sem ordem judicial nem nada. Sem comprovação de posse.”

Muro ao redor de área após demarcação feita pelo Incra. Não há nenhuma documentação que comprove a legalidade da ação do município ou que dê à prefeitura de Barcarena a posse da terra. Foto: João Paulo Guimarães

Rios contaminados, feridas na cabeça

Em 2018, Damiana Oliveira dos Santos notou que havia uma falha no couro cabeludo da filha Rebeca, de apenas 4 anos. Os cabelos encaracolados da menina estavam caindo, e onde antes havia pêlos agora eram feridas. Ela e seu marido levaram a filha para o hospital em Belém e, ao chegar, Damiana, que vinha sentindo náuseas, desmaiou. Sua pressão estava alterada. No hospital, descobriu que sua cabeça também estava cheia de erupções.

“Tivemos que raspar o nosso cabelo. Toda a comunidade chorou quando viu nossa filha e eu carecas”, disse ela à Mongabay em sua casa, situada a apenas 3 km do complexo industrial da Hydro. “Fomos buscar nossos exames e ninguém nos disse o que significavam aqueles números. Hoje a gente sabe.”

O que elas agora sabem, e os estudos comprovam, é que tudo em Barcarena — pessoas, solo, ar, água e peixes — apresenta indícios de contaminação. A origem seriam os dejetos químicos despejados pelas mineradoras nos rios da região. Metais como alumínio, chumbo e níquel estão presentes em laudos médicos de institutos como Evandro Chagas e laboratórios como o Laboratório de Química Analítica e Ambiental da Universidade Federal do Pará (Laquanam/UFPA).

Os sintomas de contaminação incluem coceira, dores de cabeça, enjoo, diarreia, dores intestinais, episódios de esquecimento recorrentes, feridas pelo corpo, pele fina quebradiça e vários casos de câncer. A Norsk Hydro nega que esses casos tenham relação com suas atividades.

Damiana Oliveira dos Santos segurando uma foto dela e Rebeca, ambas com o cabelo raspado. Foto: João Paulo Guimarães
Rebeca, filha de Damiana, hoje com 8 anos, sentada em uma árvore de muruci morta, antes usada como fonte de renda para a família. Foto: João Paulo Guimarães

A química Simone de Fátima Pinheiro Pereira, coordenadora do Laquanam, tem mais de 40 anos de pesquisa na área de mineração, 15 deles acompanhando de perto os crimes ambientais praticados em Barcarena. Em 2012, a pedido do Ministério Público Federal, ela analisou a água usada para consumo na região. O resultado foi estarrecedor.

“Eu analisei a água de 26 comunidades e a água de 24 delas estava contaminada por chumbo”, contou ela à Mongabay. “Água, peixes, plantas, sedimentos do rio: tudo que eu coletei para análise estava contaminado. Fiz análise dos cabelos das pessoas da comunidade também e encontrei números 27 vezes acima do meu controle”, disse ela, comparando a índices de pessoas fora da área de estudo.

Simone relata que as duas empresas que mais impactam essa região são Hydro e Imerys. A primeira, até recentemente, possuía a DRS1, uma área de depósito de resíduos de bauxita, instalada perto das comunidades quilombolas. A barragem foi desativada, mas os milhões de toneladas de lama vermelha tóxica continuam lá. Quando chove, a lama transborda e vai para os rios do entorno, o Murucupi e o Pará, carregando com ela metais como cromo, chumbo e níquel — todos cancerígenos, caso o indivíduo seja exposto por muito tempo.

“Fui coletar na Hydro a lama vermelha para análise a pedido do Ministério Público Federal, mas eles me proibiram de divulgar os valores da análise”, conta Simone. “Mesmo com ordem do MPF, eles me ameaçaram de processo caso eu analisasse. Cheguei a coletar, mas tive que assinar um termo de confidencialidade. A Hydro está no mundo todo e para eles um processo não é nada.”

Jorge Luiz Nunes da Silva, pai de Rebeca e marido de Damiana, mostra como crescem os cajus ainda no pé. Apenas os insetos se alimentam das frutas no sítio da família. Foto: João Paulo Guimarães
A fruta de muruci também nasce morta em Barcarena. Antes do envenenamento do solo, a fruta rendia uma média de R$ 500 semanais. Agora não serve nem para consumo da família. Foto: João Paulo Guimarães

Lideranças ameaçadas, doenças e expulsões

“Era pro meu marido estar aqui comigo. Ele era minha vida. Vi meu marido perder um pé e ficar numa cadeira de rodas por causa desse desenvolvimento desenfreado”, conta Maria do Socorro Costa da Silva. Conhecida como Socorro do Burajuba, ela é uma das mais importantes lideranças de Barcarena.

Enquanto mostra os laudos do Instituto Evandro Chagas e da UFPA que detectam a presença excessiva de metais pesados em seu cabelo, ela nos conta o que aconteceu a seu marido, que teve a diabetes agravada pela contaminação: “Ele começou a coçar os olhos, dizendo que não estava enxergando bem. Em 2008, ele começou a emagrecer, mas a gente não desconfiou de nada. Em 2009, houve mais um transbordo de lama, mas continuamos consumindo a água até que vieram equipes da universidade pra fazer exames na gente. Entre 2012 e 2015, a gente teve a confirmação oficial de que a água estava contaminada. Se passaram dez anos nessa luta. Ele não aguentou. Se foi.”

A própria Socorro coça muito o corpo enquanto conversa com a reportagem. Nos mostra sua pele fina e cheia de áreas vermelhas e conta que parte da população de Barcarena está como ela. Nem por isso, Socorro do Burajuba deixou de lutar. Levou as reivindicações quilombolas, inclusive, para além das fronteiras do Pará e do Brasil, movendo uma ação coletiva de 40 mil pessoas afetadas pela produção de alumínio. A ação foi aceita pela Holanda, onde seguirá para uma decisão de mérito na Corte de Roterdã.

Socorro do Burajuba. Foto: João Paulo Guimarães
Laudo médico de Socorro do Burajuba com altos níveis de metais pesados na amostragem de cabelo. Foto: João Paulo Guimarães

A Mongabay entrou em contato com a Norsk Hydro perguntando sobre a ação na Holanda, ao que a mineradora respondeu que “o caso apresentado na Holanda está relacionado a questões locais no Brasil, que já estão sendo discutidas nos tribunais brasileiros. O caso é apenas um derivado das mesmas acusações contra as entidades brasileiras. A Hydro apresentará sua defesa de acordo com o processo definido pelo Tribunal”.

A Hydro acrescentou ainda que “nega veementemente as alegações apresentadas pelos autores da ação. A empresa está comprometida em ser um bom vizinho, agindo com responsabilidade e colocando a saúde, meio ambiente e segurança em primeiro lugar onde quer que opere. As atividades da Alunorte e da Albras na região estão devidamente licenciadas e as operações das plantas são monitoradas e auditadas pelas autoridades.”

A Mongabay também enviou perguntas à prefeitura de Barcarena, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.


Este texto foi originalmente publicado por Mongabay de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Carolina Hisatomi

Graduanda em Gestão Ambiental pela Universidade de São Paulo e protetora de abelhas nas horas vagas.

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