Existem dois tipos de mercados de carbono dos quais as empresas podem participar: os voluntários e os regulados
Por Paige Langer e Frances Seymour em WRI Brasil | Em 2021, 145 países se comprometeram a conter e reverter a perda florestal até 2030. Na época, a crescente demanda por créditos de carbono florestal por parte de empresas que buscavam demonstrar ação climática prometia uma nova fonte de financiamento para a proteção das florestas tropicais. No entanto, em 2022, essa demanda se estabilizou, refletindo a incerteza em relação às normas que determinam o que as empresas podem reivindicar com base nos créditos adquiridos e à preocupação com a qualidade dos créditos de carbono, em especial os originados pelas florestas.
Existem dois tipos de mercados de carbono dos quais as empresas podem participar: os voluntários e os regulados. O mercado de carbono voluntário consiste na aquisição de créditos por parte de empresas ou outras entidades que buscam cumprir compromissos de mitigação voluntários. Já nos mercados regulados as empresas adquirem créditos de carbono para atender obrigações impostas por legislações nacionais ou acordos internacionais. Os requisitos variam conforme os países e acordos, incluindo os tipos de créditos elegíveis e o limite da parcela de redução de emissões que uma empresa pode preencher utilizando créditos de carbono.
No entanto, no caso dos mercados voluntários, essas regulações não existem, assim como não há uma estrutura independente que estabeleça regras em relação à qualidade dos créditos ou às reivindicações que as empresas podem fazer com base em suas aquisições.
Há uma série de iniciativas e processos globais em andamento para ajudar a destravar o mercado de carbono voluntário, incluindo um novo guia produzido pelo World Resources Institute junto a outras sete organizações ambientais e povos indígenas. O Tropical Forest Credit Integrity Guide (Guia de Integridade para Créditos de Florestas Tropicais) pode ajudar as empresas a desenvolver um portfólio de créditos de carbono de florestas tropicais que contribua com o clima global, com a biodiversidade e com metas de desenvolvimento.
Ações para proteger as florestas tropicais não podem esperar. E as empresas podem desempenhar um papel fundamental ao sinalizar uma demanda por créditos de carbono de florestas tropicais. Dessa forma, podem acelerar as transições necessárias para uma gestão florestal positiva para o clima, complementando os esforços de descarbonização já em andamento em suas operações e cadeias de valor.
Por que o financiamento florestal é urgente e importante?
A ciência é clara: conter a perda de florestas tropicais é essencial para atingir as metas climáticas globais. As florestas tropicais também geram outros benefícios para o clima, a natureza e as pessoas. Além de sequestrar e armazenar carbono, fornecem serviços adicionais, contribuindo para resfriar a temperatura global, manter os padrões de chuva e proteger as plantações e as pessoas do estresse térmico por meio de processos biofísicos não-carbônicos.
Embora cubram apenas 18% da superfície terrestre do planeta, as florestas tropicais abrigam mais de 60% das espécies de mamíferos e mais de 70% das espécies de aves, o que faz delas um habitat fundamental para a manutenção da biodiversidade terrestre. Também são o lar de comunidades indígenas que dependem delas para manter seus meios de subsistência e que, ao mesmo tempo, são seus protetores mais efetivos.
Apesar dos muitos benefícios das florestas tropicais, a taxa de perda florestal continua subindo ao longo das duas últimas décadas. Em 2021, 3,5 milhões dos 11,1 milhões de hectares queimados ou desmatados foram de florestas tropicais primárias. Essas florestas armazenam quantidades massivas de carbono que não pode ser recuperado a tempo para cumprir as metas climáticas globais.
O desafio é o financiamento. Análises recentes estimam que o financiamento público para agricultura e silvicultura, tanto nacional quanto internacional, supera em até dez vezes o financiamento climático público destinado a medidas de restauração e conservação florestal. Ainda mais preocupante é o fato de que o atual financiamento público para mitigação com foco nas florestas, tanto em escala nacional quanto internacional, representa menos de 1% do necessário para cumprir as metas florestais globais. Os recursos do setor público não serão suficientes para preencher essa lacuna, mas o setor privado pode desempenhar um papel determinante com as empresas fornecendo financiamento para incentivar a proteção das florestas tropicais como parte de suas estratégias de mitigação.
O que impede que os mercados de carbono se tornem uma fonte de financiamento florestal?
O mercado voluntário de carbono oferece uma oportunidade de aumentar o financiamento dedicado às florestas tropicais e às pessoas que as protegem. Em 2022, o mercado voluntário de carbono mobilizou mais de US$ 1,3 bilhão em todo o mundo (cerca de US$ 4 por pessoa nos Estados Unidos) para todos os tipos de créditos, ajudando a mitigar em torno de 173 megatoneladas de emissões de carbono – mais do que as emissões em 2021 das Filipinas, o 33º maior emissor do mundo. Embora muitas análises tenham projetado que o mercado voluntário de carbono poderia atingir pelo menos dez vezes essa quantidade ao longo da próxima década, as crescentes incertezas tanto do lado da demanda quanto da oferta restringiram os fluxos financeiros, levando a um ponto de inflexão.
No que diz respeito à demanda, empresas que de outra forma estariam no mercado passaram a se preocupar com o fato de que a aquisição de créditos de carbono e as reivindicações vinculadas a eles possam despertar alegações de greenwashing. Atualmente, estão em andamento diversas iniciativas para definir quais reivindicações corporativas seriam adequadas e como devem ser os investimentos, mas, enquanto isso, a incerteza em relação ao que é considerado ação climática legítima e quais aquisições de crédito serão recompensadas com benefícios para a reputação da empresa podem continuar mantendo centenas de milhões (ou até mesmo bilhões) de dólares fora desses mercados.
Já em relação à oferta, a recente atenção da mídia aos riscos associados aos créditos de carbono florestal gerados por pequenos projetos, junto a debates sobre como a conservação de grandes áreas de florestas ainda intactas deve ser creditada, renovou as preocupações sobre a qualidade dos créditos de carbono florestais. Tem se formado o consenso de que os créditos de carbono florestais gerados em escala nacional ou por grandes jurisdições subnacionais são superiores aos créditos gerados em escala de projeto. Esses programas operam na escala necessária para criar incentivos para melhorar a governança, promover as reformas políticas necessárias e ampliar a implementação. No entanto, ofertas recentes por parte de alguns países para vender “créditos soberanos”, que são emitidos com base em reduções de emissões apenas relatadas, não certificadas, causaram ainda mais confusão.
O crescimento do mercado de carbono voluntário vai depender da capacidade de atores estratégicos entrarem em um acordo em relação às normas para assegurar a integridade, tanto do lado da demanda quanto da oferta, e, com isso, permitir que o financiamento flua. A possibilidade de sucesso é limitada: estabelecer um padrão muito alto pode sufocar a oferta e a demanda por créditos de carbono, enquanto definir um padrão muito baixo pode levar a resultados climáticos de baixa qualidade e prejudicar a legitimidade do mercado como um todo.
Como as empresas podem adquirir créditos de carbono de florestas tropicais de alta qualidade?
Mesmo com o mercado de carbono voluntário em um ponto de inflexão, existem quatro passos que as empresas podem seguir para ajudar a solucionar o problema e acabar com o desmatamento por meio da compra de créditos de carbono: alinhar seus portfólios com necessidades globais, estimular a demanda por créditos em escala jurisdicional, fazer a devida diligência e se manter em dia com as mudanças mais recentes. Esses passos estão detalhados no Tropical Forest Credit Integrity Guide, produzido por Conservação Internacional, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, Fundo de Defesa Ambiental, Instituto de Pesquisa Ambiental Amazônia, The Nature Conservancy, Wildlife Conservation Society, World Resources Institute e World Wildlife Fund.
A seguir, mais informações sobre cada um dos quatro passos:
Passo 1: construir um portfólio de créditos de carbono de florestas tropicais alinhado às necessidades globais
Os portfólios de créditos corporativos devem ser alinhados às evidências científicas mais recentes, priorizando créditos de redução de emissões (resultantes da desaceleração do desmatamento) e apenas aumentando a parcela de créditos de remoções de carbono (resultantes da restauração florestal) à medida que o mundo conseguir suspender o desmatamento e a perda de ecossistemas.
As empresas também devem incluir em seus portfólios créditos de áreas que registrem alta cobertura florestal e baixas taxas de desmatamento, conhecidas como áreas HFLD (sigla em inglês para High Forest, Low Deforestation ou Alta Cobertura Florestal e Desmatamento Mínimo), uma vez que esses créditos fornecem incentivos de curto prazo para que as florestas intactas remanescentes sejam mantidas e podem recompensar os povos indígenas e comunidades locais por seus esforços em prol da conservação florestal.
Passo 2: construir um portfólio que estimule a demanda por créditos de alta qualidade em escala jurisdicional
Compradores corporativos devem priorizar – e adquirir com antecedência – créditos emitidos por programas que operem em escala nacional ou dentro de grandes jurisdições subnacionais. Até hoje, quase todos os créditos de florestas tropicais já emitidos foram em escala de projetos (ou seja, atividades restritas a um local específico que geram créditos de carbono com base em uma linha de referência estabelecida de forma independente) e com frequência sua integridade social e ambiental se mostrou vulnerável a críticas por parte de pesquisadores acadêmicos e grupos ambientalistas.
Programas que operam em escala jurisdicional são mais aptos do que projetos individuais a atender os principias critérios ambientais para todos os tipos de créditos. Entre esses critérios, podemos citar a mitigação de riscos de vazamento (quando uma atividade que causa emissões, como o desmatamento, é transferida para um local fora do perímetro avaliado, apenas transferindo as emissões para outro lugar); de não-adicionalidade (quando a redução de emissões ou remoção de carbono teria ocorrido da mesma forma sem a intervenção); e de não-permanência (quando uma redução de emissões ou remoção de carbono já creditada é reemitida).
Além disso, creditar os resultados em escala jurisdicional incentiva os governos a tomar medidas que só eles podem implementar, como o aumento da fiscalização do desmatamento ilegal, o reconhecimento de direitos em questões fundiárias nas quais a propriedade da terra não é clara e a oferta de incentivos para proprietários privados.
Passo 3: fazer a devida diligência para assegurar créditos de carbono de alta qualidade
Para garantir créditos de alta qualidade, as empresas precisam fazer mais do que apenas confiar em padrões existentes. Devem saber diferenciar entre esses padrões e entre os créditos de verificação independente, a fim de atender os critérios estabelecidos e abranger outros tipos de produtos à venda. Por exemplo: as empresas podem prestar mais atenção em como o planejamento e a implementação de atividades que geram créditos de carbono impactam povos indígenas, comunidades locais, mulheres e outros grupos marginalizados. Até hoje, muitos dos princípios de equidade e transparência foram pouco colocados em prática, e as empresas podem estimular um melhor desempenho nesse sentido por meio de suas decisões de compra.
Além disso, créditos de carbono florestal gerados na escala de projetos devem ser agrupados a programas mais amplos quando possível. Isso pode ser feito quando a linha de base de crédito e as intervenções de um determinado projeto estiverem alinhadas com a estratégia em escala maior. Esse alinhamento reduz o risco de um excesso de créditos gerados em escala de projeto ao mesmo tempo em que aproveita sinergias entre políticas governamentais e atividades locais.
Também é importante que todos os créditos adquiridos pelas empresas como parte de suas estratégias de mitigação – não apenas créditos de carbono de florestas tropicais – passem por um processo de verificação independente, conduzido por uma auditoria externa. Sem uma auditoria independente e confiável, não é possível determinar se esses créditos atendem aos requisitos de alta integridade.
Passo 4: manter ações complementares e acompanhar as mudanças mais recentes
A compra de créditos de carbono florestal é apenas uma entre muitas ações que as empresas podem adotar para conservar e restaurar as florestas tropicais. Por exemplo, podem considerar também investir no desenvolvimento de cadeias de valor sustentáveis localizadas dentro de programas jurisdicionais e promover a participação plena e efetiva das comunidades locais em todos os aspectos, desde o desenvolvimento até a implementação do programa. Além disso, como as “regras” que regem o mercado voluntário de carbono ainda estão evoluindo, as empresas devem se manter atualizadas sobre como assegurar a integridade, tanto do lado da demanda quanto da oferta.
Apesar das incertezas, as empresas podem ajudar as florestas tropicais agora
Reduzir o desmatamento e a degradação florestal não é apenas essencial para manter o aquecimento global abaixo de 1,5°C, mas também uma alternativa de mitigação de alta prioridade e baixo custo, conforme consistentemente afirmado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. A renovação dos compromissos políticos para conter e reverter a perda florestal até 2030 é um feito encorajador, mas esses compromissos precisam ser acompanhados por ações coletivas e um aumento significativo do financiamento oferecido pelo setor privado.
O mercado voluntário de carbono está hoje em um ponto de inflexão com a oportunidade de mobilizar bilhões de dólares para a proteção das florestas tropicais. Também pode contribuir para alcançar as metas climáticas globais, além de fornecer uma série de outros cobenefícios de desenvolvimento e biodiversidade. As incertezas têm impedido um financiamento florestal urgente e necessário, mas tanto as florestas quanto as pessoas que vivem nelas não podem mais esperar.
Este texto foi originalmente publicado por WRI Brasil de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.