Por Luana Betti e Marina Garcia em WRI Brasil – A Covid-19 atingiu em cheio as cidades. Em países em desenvolvimento como o Brasil, acentuaram-se fragilidades históricas, como a pobreza e a desigualdade social. A pandemia evidenciou as deficiências em infraestrutura e serviços: a precariedade dos assentamentos informais e em áreas de risco, a alta lotação e déficit no transporte coletivo e o acesso inexistente ou precário a água e saneamento.
Diante desse cenário, as cidades enfrentam a necessidade de mitigar os impactos da pandemia e viabilizar a retomada econômica ao mesmo tempo em que reduzem os passivos de infraestrutura e serviços urbanos existentes. O financiamento é um desafio central: com um cenário econômico desfavorável, tornam-se ainda mais escassos os recursos tradicionais disponíveis aos municípios para esses investimentos.
Diversificar as fontes de financiamento e explorar novos arranjos são alguns dos caminhos a serem considerados na solução desse desafio. Para buscar essas alternativas, o primeiro passo é compreender como a infraestrutura urbana é financiada pelas cidades brasileiras e identificar as tendências recentes nos investimentos urbanos.
Em linhas gerais, governos locais brasileiros financiam projetos e políticas no território através de três fontes de recursos principais: recursos próprios das prefeituras, transferências de capital e operações de crédito.
Os recursos próprios são os recursos disponíveis no orçamento geral dos municípios para custeio de suas atividades, investimentos em infraestrutura e serviços urbanos. Eles são obtidos através de tributos, transferências constitucionais e legais e outras receitas não tributárias.
Também chamadas de transferências voluntárias, as transferências de capital são os recursos recebidos pelos municípios dos governos estaduais e federal por meio de convênios firmados para realização de investimentos. Essas transferências podem ser realizadas pelo Poder Executivo, por meio do chamado orçamento programável, ou pelo Poder Legislativo, através das emendas parlamentares.
As operações de crédito são o acesso a recursos por meio de empréstimos junto a instituições financeiras, geralmente complementares aos recursos próprios e às transferências de capital, quando estas não garantem recursos suficientes para a realização do investimento. As instituições financeiras de desenvolvimento nacionais (bancos nacionais e regionais de desenvolvimento, agências de fomento e outros) e internacionais (bancos multilaterais e bilaterais) estão entre as principais fontes de financiamento de infraestrutura.
Historicamente, as cidades brasileiras financiam seus investimentos predominantemente com recursos próprios. Segundo dados do Anuário Multicidades de 2020, esses recursos corresponderam a cerca de 45% do valor total dos investimento municipais em 2018 (incluindo todos os investimentos em infraestrutura e serviços urbanos, saúde, educação etc.). Transferências de capital foram a fonte de 34% do total investido no mesmo período, sendo a maior parte com recursos oriundos da União (24% do total). Operações de crédito representaram 14% do total.
A importância de cada fonte de recursos para financiamento dos investimentos públicos municipais varia conforme o perfil da cidade. Em função das diferentes capacidades institucionais e de arrecadação fiscal, quanto menor o porte da cidade, maior é a tendência de realizar investimentos utilizando as transferências de capital, ao passo que quanto maior o seu porte, mais elevada é a participação das operações de crédito como forma de financiamento. Em 2018, por exemplo, 2,9% dos investimentos das cidades com até 20 mil habitantes utilizaram operações de crédito, enquanto esse percentual nas capitais foi de 42,2% (excluindo-se São Paulo para evitar distorções na análise).
As crises econômicas que marcaram a última década vêm comprometendo os recursos próprios das cidades, reduzindo o espaço fiscal dos municípios para investimentos. Não à toa, a participação do investimento no total das despesas dos municípios caiu de cerca de 11,8% em 2010 para 6,4% em 2018. A escassez de recursos tem alterado as formas de financiamento utilizadas pelas cidades.
As cidades de maior porte, em especial, vêm buscando alternativas de financiamento nas operações de crédito. As capitais, por exemplo, ampliaram a sua participação no financiamento dos investimentos urbanos em torno de 37% entre 2010 e 2018 (mais uma vez, sem contar São Paulo).
Além das operações de crédito, tem aumentado, entre as cidades grandes, a utilização de instrumentos urbanísticos geradores de receitas previstos no Estatuto da Cidade como formas de financiamento de seus projetos, tais como a Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC) e os Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPACs). Esses instrumentos são importantes para a gestão do território, ao mesmo tempo em que geram recursos complementares ao orçamento público municipal específicos para melhorias de aspectos urbanos, como habitação, ordenamento territorial, conservação ambiental e proteção do patrimônio histórico.
Também tem ocorrido com maior frequência a associação com o setor privado, seja por meio de parcerias público-privadas (PPPs) ou de concessões, como forma de viabilizar novas infraestruturas ou melhorias em infraestruturas existentes. Segundo relatório da The Economist Intelligence Unit, a maior parte das PPPs no Brasil entre 2006 e 2014 concentrou-se em nível subnacional, e municípios foram responsáveis por 39% do total de contratos. Um exemplo são as recentes concessões de parques urbanos como o Ibirapuera, em São Paulo, e a orla do Lago Guaíba, em Porto Alegre.
A crise sanitária e econômica originada pela pandemia de Covid-19 ampliou a já grave e recorrente restrição de recursos locais. De um lado, há a redução do espaço fiscal dos municípios devido ao arrefecimento das atividades econômicas – entre as principais receitas tributárias dos municípios, incluindo ISS, IPTU e ITBI, a queda de arrecadação foi de mais de 17% na primeira metade de 2020. De outro, há necessidade de elevação dos gastos sociais e de saúde para o combate aos efeitos da pandemia.
O cenário fiscal delicado vem acompanhado de maior necessidade de ações que promovam uma retomada sustentável da economia. Investimentos em infraestruturas urbanas, em especial, as inclusivas, resilientes e de baixo carbono, têm sido apontados como a principal alternativa. Essa tendência reforça a necessidade crescente de as cidades buscarem financiamento fora do orçamento municipal.
Por serem menos complexas que os instrumentos urbanísticos e PPPs, as operações de crédito devem ampliar sua relevância. Em especial, as operações oriundas de instituições financeiras de desenvolvimento (IFDs), uma vez que estas instituições já têm atuação consolidada no país, especialmente com o setor público.
Um encontro recente da Rede para Financiamento de Infraestrutura Sustentável em Cidades (Rede FISC) – iniciativa liderada pelo WRI Brasil que reúne as principais instituições atuantes no financiamento urbano – discutiu o papel das IFDs nacionais no apoio ao investimento urbano sustentável e à recuperação verde. Os técnicos destacaram que essas instituições, por terem sua atuação voltada ao desenvolvimento, têm maior flexibilidade e capacidade de oferecer suporte técnico e adaptar seus produtos às necessidades atuais das cidades. As IFDs são, também, um dos principais canais para acesso ao financiamento verde climático
Assegurar opções de financiamento adequadas e na quantidade necessária para atender necessidades históricas, presentes e futuras das populações urbanas é uma das batalhas antigas travadas pelas cidades brasileiras. As restrições trazidas pela conjuntura econômica e os desafios acentuados pela pandemia aumentam a necessidade de as cidades encontrarem alternativas para adaptar e inovar as formas de financiar a infraestrutura urbana, essencial para a recuperação econômica. É, também, uma oportunidade de acelerar novos modelos de financiamento que podem dar celeridade às transformações urbanas para uma retomada inclusiva e sustentável.
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