Como redes de sementes pelo Brasil vêm ajudando a restaurar os biomas

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Por Juliana Domingos de Lima em Mongabay |

  • Organizações comunitárias que se multiplicaram na última década em diferentes biomas brasileiros, as redes de sementes realizam a coleta, comercialização e plantio de sementes nativas em áreas degradadas.
  • Elas promovem uma restauração ecológica mais inclusiva, na medida em que geram renda para povos tradicionais e agricultores familiares que preservam seus territórios.
  • Em compromissos internacionais, o Brasil estabeleceu a meta de restaurar 12 milhões de hectares até 2030.

A 230 km de Brasília, na Chapada dos Veadeiros (GO), representantes de redes de sementes de várias partes do país se reuniram por quase uma semana no início de junho.

Junto a organizações ambientais, pesquisadores e representantes de órgãos governamentais, eles participaram de discussões para a estruturação do Redário, uma nova articulação que busca fortalecer essas redes e atender às demandas do setor de restauração ecológica do país.

“Nesse encontro a gente tem indígenas, agricultores familiares, moradores urbanos, técnicos, parceiros, todo mundo junto. Dá um mosaico bonito e um sentimento de que o que a gente está fazendo vai dar certo e vai crescer”, diz Milene Alves, membro do comitê diretivo da Rede de Sementes do Xingu e técnica do Redário.

Em 2022, 64 toneladas de sementes nativas foram comercializadas para este fim pelas mais de 20 redes que formam o Redário. Desse volume, a iniciativa apoiou diretamente a venda de cerca de 16 toneladas de mais de 200 espécies, semeadas em uma área de aproximadamente 500 hectares. A previsão é manter o mesmo patamar em 2023.

A coleta de sementes nativas feita por populações tradicionais em áreas preservadas de diferentes biomas brasileiros tem contribuído para uma restauração eficaz e mais inclusiva de áreas degradadas. É um esforço necessário para que o Brasil cumpra a promessa de recuperar 12 milhões de hectares de vegetação até 2030, conforme previsto em acordos internacionais.

Se antes o trabalho de coleta para a restauração dessas áreas ficava apenas na mão de empresas, hoje as redes – que se multiplicaram na última década e se organizam como cooperativas, associações ou até firmas – permitem que os habitantes dos territórios se beneficiem da atividade.

Eduardo Malta, especialista em restauração do Instituto Socioambiental (ISA) e uma das lideranças do Redário, defende a participação das comunidades na comercialização das sementes e no plantio. “São essas pessoas que tiveram todo o trabalho de conquistar os territórios e estão lá preservando. Eles têm a maior diversidade genética de espécies e todo o conhecimento sobre o ecossistema”, diz.

‘Trabalho de formiguinha’

Uma das redes que integram o Redário é a Rede de Coletores Geraizeiros, cooperativa do norte de Minas Gerais que foi criada em 2021 e hoje conta com 30 coletores em oito comunidades, distribuídas entre cinco municípios: Montezuma, Vargem Grande, Rio Pardo de Minas, Taiobeiras e Berizal.

Ali, os geraizeiros – população tradicional da região – coletam e plantam para recuperar a vegetação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Nascentes Geraizeiras, criada em 2014 para frear a devastação que está levando a água a faltar. É o resultado do monocultivo de eucalipto feito por grandes empresas que, por décadas, se sobrepôs à paisagem do Cerrado.

“A região era riquíssima de água e hoje está sendo abastecida com caminhão-pipa ou poço”, diz Fabrícia Santarém Costa, coletora e vice-presidente da Rede de Coletores Geraizeiros. “Hoje a gente vê que essas atividades só fazem mal pra gente, porque a empresa [de eucalipto] foi embora e a gente está lá sofrendo as consequências.”

Fabrícia estava presente em 2018, quando um projeto executado pela Embrapa e financiado pelo Fundo Global para o Meio Ambiente fomentou a criação de um pequeno grupo de coletores em sua região. Foi o embrião da cooperativa. Ela tinha 18 anos e conta que o trabalho com as sementes transformou sua vida e sua visão sobre o bioma em que nasceu.

“Eu não conhecia o Cerrado. A gente só conhecia o pequi e o araticum; eu não tinha noção da importância das outras espécies, do papel do Cerrado para a manutenção da água. Por conta da coleta é que hoje eu trabalho em prol da comunidade, recuperando áreas, fazendo mobilização”, conta.

Ela descreve a restauração da RDS como um “trabalho de formiguinha”, mas que já tem surtido efeito sobre a situação da água nas comunidades. Além disso, a venda das sementes complementa a renda dos geraizeiros, permitindo que se mantenham em seus territórios.

Esse trabalho também tem ganhado força nos territórios indígenas. Na Terra Indígena Barra Velha, sul da Bahia, a Cooperativa de Florestamento e Reflorestamento da aldeia Pataxó de Boca da Mata (Cooplanjé) existe desde 2012 e realiza todas as etapas da coleta ao plantio, atuando no território e prestando serviço para terceiros.

Assim como os geraizeiros, os Pataxó começaram restaurando suas próprias áreas e passaram a comercializar as sementes. Segundo Alfredo Santana, liderança da TI Barra Velha, 280 hectares de Mata Atlântica já foram restaurados pelos Pataxó dentro da Terra Indígena e do Parque Nacional e Histórico do Monte Pascoal.

“Temos uma restauração lá que tem quatro anos, uma agrofloresta, onde já estamos colhendo a própria semente que plantamos. Quem planta, colhe”, diz Alfredo.

Como o trabalho vem dando certo, os indígenas de Barra Velha têm levado a prática da coleta e da restauração para outras comunidades e territórios da região, como os da Terra Indígena Comexatiba (Cahy-Pequi).

Em Aracruz (ES), onde o território também sofreu impactos ao longo de décadas devido ao plantio de eucalipto por uma empresa de celulose, a Fibria, indígenas Tupiniquim e Guarani que formam a Rede Tupyguá hoje coletam sementes para vender e para reflorestar.

“É muito gratificante saber que, com a coleta de semente, você pode ter uma renda. Mas o importante mesmo para nós é poder colaborar com o reflorestamento. A gente quer mostrar para a sociedade que floresta é vida”, diz Ana Paula, indígena Tupiniquim da aldeia Córrego do Ouro e coletora da Tupyguá.

Um ‘berçário’ para as redes

De Nova Xavantina (MT), Milene Alves é mais uma jovem “cria” das redes de sementes. Recém-titulada mestre em Ecologia e Conservação pela Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), ela desempenhou desde a adolescência funções de importância crescente na Rede de Sementes do Xingu, pioneira e a maior do país.

Após 11 anos dedicados à rede mato-grossense, que já restaurou 8 mil hectares em plantios com parceiros, Milene atua no Redário apoiando o crescimento de novas redes. Recentemente, ela esteve em Alta Floresta (MT) para acompanhar o trabalho da Rede de Sementes do Portal da Amazônia.

“Vi que eles têm muito potencial e vão ficar mais fortes, crescer mais quando começarem formar lideranças dentro dos grupos [de coleta]. Pude levar para eles muita coisa do que eu aprendi”, diz a técnica.

Embora considere que cada rede tem sua “personalidade”, Milene vê muitas semelhanças entre os desafios dessa rede e os que a Rede de Sementes do Xingu enfrentou no passado. “Gosto de dizer que o Redário é um berçário. Muitas redes entram ainda pequenininhas para crescer, ficar fortes e caminhar com as próprias pernas”, define.

A similaridade nas etapas de desenvolvimento das redes de semente Brasil afora foi um dos fatores que levaram à criação do Redário.

“A gente viu várias redes nascerem e morrerem ao longo desses 17 anos”, diz Eduardo Malta, que participou da criação da Rede de Sementes do Xingu no início dos anos 2000. “Começamos a colecionar histórias e aprendizados, tanto das que deram certo quanto das que morreram. As trocas entre as redes adiantam muito o processo, elas deixam de cometer vários erros”.

Um desafio recorrente das redes é ter clientes todo ano. Isso porque a maioria se forma para abastecer um projeto específico de reflorestamento, que sempre acaba quando atinge seu objetivo. Uma das missões da articulação é buscar mais compradores para estabilizar a demanda, permitindo que a partir disso as redes possam se organizar e evoluir.

Essa tem sido uma das principais dificuldades da Rede de Coletores Geraizeiros. “Às vezes a gente não consegue vender todas as sementes que coleta. O Redário veio para ajudar a nós da base, que muitas das vezes não temos com quem contar, não temos equipe técnica, apoio. É ‘ninguém solta a mão de ninguém’”, diz a vice-presidente Fabrícia Costa.

Muvuca pelo clima

A iniciativa do Redário também pretende incidir sobre as políticas públicas e normas do setor de restauração para disseminar a muvuca, nome dado pelas redes à técnica de semear diretamente o solo, sem precisar cultivar mudas em viveiros.

Experiências das redes e estudos técnicos demonstram que a muvuca cobre a área mais rapidamente e com mais árvores por hectare, imitando melhor o ecossistema original. Com isso, exige menos manutenção, o que diminui o custo. Através das redes, a muvuca ainda distribui renda para a população local e fomenta organizações comunitárias.

“A muvuca tem um potencial muito grande de ser usada [na restauração], dependendo do que se quer atingir e da característica das áreas. Ela tem que estar no leque de opções pra gente conseguir cumprir as metas que estão postas, pra atingir isso com escala”, diz a analista do Ministério do Meio Ambiente Isis Freitas. Ela integra atualmente a coordenação de recuperação de áreas degradadas do departamento de florestas na Secretaria Nacional de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais.

O Brasil formalizou o Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg), em 2017, com o objetivo de viabilizar compromissos internacionais firmados no fim do ano anterior.

Tendo aderido ao Acordo de Paris, ao Desafio de Bonn e à Iniciativa 20×20, o país declarou a intenção de restaurar até o fim da década 12 milhões de hectares, implementar 5 milhões de hectares de sistemas agrícolas integrados (de lavoura, pecuária e florestas) e recuperar 5 milhões de hectares de pastagens degradadas. Em conjunto, é uma área quase equivalente ao estado de São Paulo.

Além dos benefícios sociais e econômicos, da manutenção dos recursos hídricos, da recuperação do solo e da biodiversidade que a restauração promove, ela ainda é importante para sequestrar carbono da atmosfera e mitigar as mudanças climáticas. O desmatamento tem sido a principal causa do aumento das emissões no país.

A meta de restauração foi reiterada este ano pela ministra do meio ambiente Marina Silva e, segundo Freitas, o ministério quer colocar a Comissão-Executiva para Controle do Desmatamento Ilegal e Recuperação da Vegetação Nativa (Conaveg) para funcionar novamente ainda no segundo semestre de 2023. A extinção dos conselhos participativos, decretada pelo governo Bolsonaro em 2019, desarticulou a comissão e a execução do Planaveg.

O secretário-executivo do Instituto Socioambiental, Rodrigo Junqueira, aposta no Redário como uma estratégia para potencializar organizações que têm tido impacto positivo na restauração e fazer com que ela ganhe tração no país. “A gente não tem mais muito tempo. Se não conseguirmos avançar nisso nessa década, não sei o que será”.


Este texto foi originalmente publicado por Mongabay de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Thalles Moreira

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