Estudo etnográfico mostra que os Yanomami entendem atividades oníricas como experiências reais
Por Christina Queiroz em Pesquisa Fapesp | Pouco estudados na antropologia até meados da década de 1990, os sonhos vêm ganhando protagonismo. Novas interpretações da atividade onírica de povos ameríndios, até recentemente pouco conhecidas, surgiram nos últimos anos. Os indígenas da etnia Yanomami, por exemplo, concebem os sonhos como experiências reais, que podem causar efeitos coletivos e mudar o rumo de acontecimentos. Tal concepção opõe-se à da psicanálise, segundo a qual esse universo é uma representação gerada pelo inconsciente psíquico individual. “A vida acordada e a sonhada apresentam a mesma importância para povos ameríndios. Pesquisas recentes procuram refletir sobre os sonhos como acontecimentos repletos de consequências também para a vigília”, conta o antropólogo Renato Sztutman, da Universidade de São Paulo (USP), um dos organizadores de dossiê especial sobre o tema, publicado em dezembro pela Revista de Antropologia.
Segundo o pesquisador, a importância dos sonhos para os ameríndios pode ser observada desde as crônicas dos primeiros viajantes europeus que chegaram às Américas no início da colonização. Apesar disso, Sztutman observa que durante muito tempo, na antropologia, os sonhos foram abordados de forma secundária. “Em linhas gerais, pesquisas sobre cosmologias indígenas passam pela questão dos sonhos, mas etnografias específicas sobre universos oníricos ainda são escassas”, reforça.
Nos últimos anos, no entanto, esse panorama tem mudado e os sonhos ganharam espaço em trabalhos etnográficos, permitindo renovar debates em torno de temas clássicos, como a mitologia e o xamanismo, que passaram a ser considerados indissociáveis da atividade onírica. Para Sztutman, os novos estudos sobre as formas indígenas de sonhar permitem ampliar as reflexões propostas pelo neurologista e psiquiatra austríaco Sigmund Freud (1856-1939) em A interpretação dos sonhos (1900). Na obra, Freud faz uma revisão bibliográfica sobre o assunto a partir da Antiguidade e elabora seu método de interpretação, analisando 50 sonhos próprios e centenas de outros relatos, chegando à conclusão de que sonhos são a realização disfarçada de desejos reprimidos.
Por outro lado, uma ideia comum que perpassa os diferentes artigos do dossiê da Revista de Antropologia, de acordo com Sztutman, é que para os povos indígenas a dimensão onírica não se compreende a partir da teoria psicanalítica, ou seja, como representação do desejo individual e como meio de acesso ao inconsciente. “Os ameríndios veem os sonhos como caminhos para chegar a realidades inacessíveis durante a vigília”, diz o pesquisador.
Essa ideia faz parte do modo como os Yanomami concebem os sonhos, conforme a antropóloga Hanna Limulja detectou em pesquisa de doutorado defendida em 2019 na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e publicada no livro O desejo dos outros: Uma etnografia dos sonhos yanomami (Ubu Editora, 2022). Interlocutora do xamã e líder Davi Kopenawa e pesquisadora desse povo desde 2008, Limulja transcreveu e analisou mais de 100 relatos de sonhos de crianças, jovens, homens, mulheres e anciãos que sonharam com caçadas, festas, mitos, parentes mortos e ausentes, lugares distantes e desconhecidos. Os depoimentos foram coletados na comunidade do Pya ú, na região Toototopi, localizada na Terra Indígena Yanomami, próxima à fronteira com a Venezuela. Durante a pesquisa de campo, feita entre novembro de 2015 e fevereiro de 2017, a região constituía-se de 10 comunidades com laços de parentesco e uma população de 748 pessoas. Naquele momento, a comunidade do Pya ú, com 154 habitantes, era a maior da região.
O primeiro contato de Limulja com os Yanomami data de 2008, quando ela atuou em um projeto de educação intercultural da organização não governamental Comissão Pró-Yanomami e em outras iniciativas de formação de professores. Nessa época, ela relatava seus próprios sonhos a Kopenawa, que sempre tinha uma explicação para eles. No livro A queda do céu (Companhia das Letras, 2015), testemunho autobiográfico e manifesto xamânico do líder indígena, escrito com o antropólogo Bruce Albert, Kopenawa afirma diversas vezes que os brancos “só sonham consigo mesmos”, que dormem em “estado de espectro”, como um “machado no chão”. Isso significa que os brancos ficam “presos às próprias histórias pessoais, não viajam longe e não fazem do sonho um instrumento de conhecimento sobre o mundo”, conforme escreve a antropóloga no livro. Diferentemente dos brancos, Limulja explica que os Yanomami concebem que sonhar é ver o invisível.
Na obra, a antropóloga relata que uma das formas de conhecimento yanomami passa pelo sonho. Ela explica que quando um yanomami sonha, o corpo permanece deitado na rede, mas o pei utupë, uma espécie de imagem vital, desprende-se e viaja por lugares que o sonhador percorreu durante o dia ou por locais desconhecidos. Em sonhos, os Yanomami entendem que a imagem vital da pessoa pode encontrar parentes próximos, distantes e mortos e tudo o que é experimentado é considerado como algo que aconteceu ou pode acontecer, podendo afetar a vida de toda a comunidade.
“Os Yanomami sabem que o que vivenciam em sonhos é diferente do que o que experimentam em estado de vigília. No entanto, aquilo que experimentam sonhando é considerado tão importante quanto as experiências da vida desperta. São formas complementares de estar no mundo e de se relacionar com ele”, sustenta a antropóloga. Por isso, destaca Limulja, para essa etnia os sonhos se relacionam com as outras pessoas e não com o próprio ego. “Da mesma forma que o mundo é dotado de elementos que não alcançamos a olho nu como, por exemplo, esqueletos de insetos ou estruturas microscópicas de uma folha, os Yanomami entendem que os sonhos permitem ver mundos invisíveis”, relaciona, lembrando que xamãs também conseguem acessar outros universos mediante o uso de substâncias psicoativas. Ainda de acordo com Limulja, sempre que os indígenas eram questionados sobre seus sonhos, falavam sobre os mitos, o que a levou a estabelecer relações entre ambos. “Todos os mitos são sonhados por eles”, sustenta.
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, da Universidade de Chicago e da USP, considera que o trabalho de Limulja pode ser lido como um adendo ao livro A queda do céu, de Kopenawa e Albert. “O livro de Limulja revela o lado doméstico e cotidiano de uma aldeia yanomami, mostrando como sonham e o que sonham pessoas comuns que não entraram na exigente carreira xamânica. O mundo das mulheres e das crianças aparece com mais relevo do que de costume e, nesse sentido, o trabalho é um complemento ao relato de Helena Valero, menina raptada na década de 1930 pelos Yanomami e que passou três décadas com eles, período em que se casou e teve filhos”, comenta. A antropóloga também cita como exemplar e didático o esforço realizado pela autora para descrever seu próprio itinerário e experiência de pesquisa. “O trabalho se inicia com um tema um tanto vago e impreciso e vai tomando forma na medida em que ela abandona perguntas diretas, chegando a maneiras frutíferas para que os Yanomami falem do tema e atingindo um estágio em que o convívio é desfrutado sem que o tema central seja perseguido com obstinação”, diz.
“Enquanto Freud sustentava que os sonhos representavam desejos recalcados, Limulja defende que os sonhos yanomamis são acontecimentos que manifestam o desejo dos outros. Ou seja, quando se sonha, uma parte da pessoa, seu “duplo”, sai e encontra-se com seres que povoam outros mundos, que até então permaneciam invisíveis. Isso representa uma inversão das concepções psicanalíticas”, avalia Sztutman, da USP. Segundo ele, o trabalho de Limulja faz parte de um campo florescente de estudos recentes sobre os sonhos que não se restringe à antropologia. Nesse movimento, ele aponta textos do líder indígena e filósofo Ailton Krenak, bem como trabalhos do neurocientista Sidarta Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Além disso, menciona a pesquisa da antropóloga francesa Nastassja Martin, especialista em povos indígenas do extremo Norte, entre eles os Even da península de Kamtchátka, na Sibéria, que sonham com a natureza na forma de pessoas e entendem que o universo onírico dá acesso a uma “dimensão anímica do mundo”. A pesquisadora francesa vem investigando sonhos dessas populações para identificar, por exemplo, como elas percebem as mudanças climáticas. “Como defendem Kopenawa e Limulja, é preciso deixar de sonhar apenas consigo mesmo para viajar longe e abrir-se para múltiplos mundos”, finaliza o antropólogo.
Este texto foi originalmente publicado pela Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.