Estudo realizado por pesquisadores do Ital também contribuiu para estabelecer regulamentos nacionais e internacionais sobre limites máximos tolerados dessas substâncias tóxicas produzidas por fungos no fruto da castanheira
A castanha-do-brasil, conhecida popularmente como castanha-do-pará, pode ser altamente suscetível à contaminação por micotoxinas (substâncias tóxicas produzidas por fungos), desde o momento em que cai no solo na floresta amazônica, ao despencar da castanheira (Bertholettia excelsa), até chegar ao consumidor.
A fim de investigar os pontos críticos de contaminação desse produto por micotoxinas, um grupo de pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital), de Campinas – órgão vinculado à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo –, em colaboração com colegas da Technical University of Denmark (DTU), rastreou os fungos presentes na castanha-do-pará com potencial de produzir essas substâncias tóxicas, desde a etapa da coleta até a comercialização.
Os resultados do estudo, realizado por meio de um projeto apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), contribuíram para a realização de um diagnóstico do problema e para o desenvolvimento de estratégias de controle de contaminação da castanha-do-pará por micotoxinas. Além disso, contribuíram para o estabelecimento de regulamentos nacionais e internacionais sobre limites máximos tolerados dessas substâncias tóxicas no produto.
O estudo foi descrito em dois artigos publicados nas revistas Food Microbiology e International Journal of Food Microbiology.
“A pesquisa possibilitou identificar os pontos críticos na contaminação de castanhas-do-pará por aflatoxinas [micotoxinas produzidas por espécies de fungos do gênero Aspergillus] e estabelecer medidas para reduzi-la por meio de melhorias na cadeia produtiva”, disse Marta Hiromi Taniwaki, pesquisadora do Ital e coordenadora do estudo, à Agência Fapesp.
De acordo com a pesquisadora, o estudo foi motivado por um problema de exportação da castanha-do-pará para a União Europeia em 2003. Naquele ano, o bloco de países europeu passou a rejeitar lotes do produto importado do Brasil sob a alegação de que apresentavam níveis de aflatoxinas superiores aos estabelecidos em sua regulamentação – de 4 microgramas (µg) de aflatoxinas totais por quilo de castanha ou de 2 µ de aflatoxina B1 (considerada a mais tóxica) por quilo do produto.
Com isso, o Brasil, o maior produtor mundial desse tipo de castanha, passou a ter o produto para o mercado europeu porque não conseguia atender aos rigorosos limites de contaminação por aflatoxinas propostos.
“Os limites máximos tolerados de contaminação de castanhas-do-pará por aflatoxinas estabelecidos pela União Europeia eram muito baixos. Por outro lado, a cadeia desse produto extrativista é muito complexa e os controles de contaminação não eram eficientes. O Brasil também não possuía uma norma que estabelecesse os limites máximos tolerados de contaminação dessas castanhas por micotoxinas”, afirmou Taniwaki.
Estratégia de controle
A fim de definir uma estratégia de controle de contaminação, os pesquisadores decidiram realizar inicialmente um diagnóstico da cadeia de produção de castanha-do-pará para conseguir isolar e identificar os fungos responsáveis pela produção das aflatoxinas encontradas no produto, verificar em qual etapa o fungo tem mais condições de produzir a substância tóxica e o que poderia ser feito para minimizar a contaminação.
Para realizar o estudo, eles coletaram amostras do produto em diferentes fases da cadeia produtiva – abrangendo a floresta amazônica, comunidades quilombolas, mercados de rua e fábricas de processamento nos estados do Pará e do Amazonas, além de supermercados no estado de São Paulo – de modo verificar quais amostras apresentavam maiores níveis de contaminação e por que isso ocorria.
Os resultados das análises indicaram a presença de uma grande diversidade de espécies de fungos dos gêneros Aspergillus e Penicillium, além de Eurotium spp., Zygomycetes e fungos dematiáceos – conhecidos como “fungos negros” – e de toxinas produzidas por algumas espécies de Aspergillus nas amostras de castanhas coletadas em todos esses lugares.
Os maiores níveis de contaminação por aflatoxinas foram encontrados em amostras coletadas, respectivamente, em unidades de processamento – antes de as castanhas passarem por um sistema de seleção manual, chamado sorting – e nos mercados de rua no Pará e no Amazonas.
“Constatamos que a triagem manual ou mecânica e a secagem eliminaram mais de 98% do total de aflatoxinas nas castanhas coletadas”, disse Taniwaki. “A triagem é uma maneira muito eficaz de diminuir a contaminação de castanhas-do-pará por aflatoxinas”, avaliou.
Fontes de contaminação
Os pesquisadores também identificaram que os fungos produtores das aflatoxinas que contaminam as castanhas-do-pará provêm tanto do solo como da vegetação rasteira e de abelhas que visitam as castanheiras e espalham esporos desses microrganismos para todo o ambiente. Constataram também que a alta temperatura, a elevada umidade e o tempo que as castanhas permanecem na floresta amazônica sob essas condições favorecem o crescimento desses fungos produtores de aflatoxinas.
Ao cair da castanheira, de uma altura que pode chegar a 60 metros, em um período de chuva – entre janeiro e março –, os ouriços das castanhas-do-Pará, que têm quase o tamanho de um coco, permanecem no solo molhado por semanas até serem colhidos e transportados para uma unidade de armazenamento.
Durante esse período em que os ouriços estão úmidos, os fungos produtores de aflatoxinas podem se desenvolver, observaram os pesquisadores.
“Dependendo do tempo que leva para as castanhas serem transportadas da floresta para uma unidade de processamento para serem secas, elas podem ser contaminadas em maior ou menor grau por esses fungos toxicogênicos”, disse Taniwaki.
“Por isso, quanto mais cedo as castanhas forem transportadas e secas, em um nível que identificamos como o mais seguro, maior a possibilidade de impedir o desenvolvimento dos fungos e a produção de toxinas”, afirmou.
Os pesquisadores observaram que algumas comunidades coletoras de castanhas realizam o processo de secagem. A umidade na floresta amazônica é tão alta, contudo, que elas não conseguem realizar esse processo em um nível considerado seguro. Por isso, o processo de secagem mais indicado é o realizado em secadoras, nas unidades de processamento.
“Começaram a surgir algumas iniciativas após a realização da nossa pesquisa para a instalação de secadoras nas comunidades coletoras. O problema, contudo, é que o custo desse equipamento é muito alto e a geração de energia nesses locais é precária. Por isso, é preciso transportar o quanto antes as castanhas da floresta para as unidades de processamento para a realização da triagem e da secagem”, apontou Taniwaki.
Reflexos na legislação
Os resultados do estudo contribuíram para que o Brasil conseguisse que o Codex Allimentarius – uma coletânea de padrões sobre alimentos reconhecida pela Organização Mundial do Comércio (OMC) como referência para a solução de disputas sobre segurança de alimentos e proteção do consumidor – estabelecesse níveis mais realistas de tolerância máxima de contaminação de castanhas-do-pará por aflatoxinas que atendessem aos padrões apontados pelos países produtores – além do Brasil, a Bolívia e o Peru.
O Codex estabeleceu como limites máximos de aflatoxinas em castanhas 15 (microgramas) µg de aflatoxinas totais por quilo do produto para posterior processamento e 10 µg de aflatoxinas totais por quilo do produto pronto para o consumo.
Com isso, a União Europeia teve que revisar suas normas e seguir os padrões estabelecidos pelo código internacional, voltando a importar castanhas-do-pará do Brasil.
“A partir do estabelecimento desses novos níveis de tolerância máxima pelo Codex, se o Brasil tiver qualquer problema de exportação relacionado à contaminação de castanha por aflatoxinas pode recorrer à OMS, que seguirá o que determina o código internacional”, explicou Taniwaki.
Com base nos resultados da pesquisa e de outros estudos realizados no Brasil, em 2011 a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) também estabeleceu uma norma – a RDC 7 – com limites máximos para presença de micotoxinas em alimentos comercializados no Brasil em consonância com o Codex Allimentarius.
“A norma permitiu diminuir o risco de um lote do produto rejeitado no exterior, por exemplo, eventualmente ser comercializado no mercado brasileiro”, disse Taniwaki. “Com essa legislação o consumidor brasileiro também passou a ter maior segurança de consumir castanha-do-pará comercializada nos supermercados”, avaliou.
As amostras de castanha coletadas em supermercados em São Paulo para realização do estudo, por exemplo, apresentaram um dos níveis de contaminação por aflatoxina mais baixos, apontou a pesquisadora.
“Tanto as castanhas comercializadas nos supermercados, como as que são exportadas, são as melhores selecionadas”, afirmou.
O maior gargalo hoje está na comercialização das castanhas em mercados populares, onde o produto é comercializado pelo próprio coletor, sem passar por uma unidade de processamento, comparou a pesquisadora.
“Mas, mesmo no caso dessas castanhas, o consumidor é capaz de selecionar as que estão apropriadas para o consumo e descartar as deterioradas, minimizando os riscos de contaminação”, ponderou.
O artigo “Biodiversity of mycobiota throughout the Brazil nut supply chain: From rainforest to consumer” (doi: 10.1016/j.fm.2016.08.002), de Taniwaki e outros, pode ser lido por assinantes da revista Food Microbiology aqui.
E o artigo “The biodiversity of Aspergillus section Flavi in Brazil nuts: from rainforest to consumer” (doi: 10.1016/j.ijfoodmicro.2012.10.018), também de Taniwaki e outros, pode ser lido no International Journal of Food Microbiology aqui.