A reciclagem de papel térmico pode aumentar a exposição humana a uma substância nociva chamada bisfenol
Quem tem o costume de fazer compras, comer em restaurantes ou possui cartão, provavelmente já ficou com a carteira repleta de cupons fiscais, extratos de banco e outros comprovantes e recibos feitos de papel térmico. Eles são conhecidos como papéis termossensíveis e recebem esse nome porque a impressão dos dados é térmica (ou seja, feita por aquecimento).
Embora eles pareçam inofensivos, alguns estudos [1, 2] mostraram que certas substâncias que compõem o papel térmico geram impactos negativos, tanto na saúde humana quanto no meio ambiente. Essas substâncias são conhecidas como bisfenois.
Composição e propriedades do papel térmico
O papel térmico é composto de diferentes camadas:
- Papel base: É a primeira camada, sendo composta de um papel altamente liso. Ela é responsável por fornecer a superfície adequada para receber os revestimentos e aditivos térmicos que permitem a impressão.
- Primeiro revestimento ou undercoating: Esta camada contém um pigmento que concentra o calor da impressora e sela o papel. Sua função é preparar a superfície para a reação da camada térmica.
- Camada térmica: Essa camada contém aditivos que reagem ao calor gerado pelo cabeçote da impressora térmica, como o bisfenol A. Geralmente, os aditivos utilizados são um corante leuco (incolor, tornando-se colorido após reação) e um ácido revelador. Quando aquecida, essa camada reage e produz a impressão, tornando-a visível no papel térmico.
- Segundo revestimento, overcoating ou “capa”: Algumas bobinas de papel térmico recebem uma camada química adicional sobre a superfície para proteger a imagem impressa, aumentar a durabilidade da impressão e tornar o papel térmico mais resistente à umidade e solventes.
- Camada de adesivo e liner (apenas em papel térmico autoadesivo): Quando o papel térmico é utilizado como autoadesivo, uma camada de adesivo é adicionada à sua superfície. Além disso, um liner (ou camada de silicone) é colocado sobre o adesivo para protegê-lo antes de ser utilizado.
Bisfenol A
O bisfenol A (BPA), ou 2,2-bis(4-hidroxifenil) propano, é uma substância bastante utilizada em materiais plásticos encontrados no cotidiano. Ela é conhecida por ser um disruptor endócrino, ou seja, uma substância capaz de afetar as glândulas responsáveis pela produção de hormônios no corpo humano.
Este composto é encontrado em papéis térmicos, como aqueles utilizados em aparelhos de fax e comprovantes de maquininhas de pagamento com cartões. Um recibo típico feito de papel térmico pode conter de 10 a 30 mg de BPA em sua composição.
Um estudo associou o BPA com o desenvolvimento de doenças metabólicas, obesidade, alterações cerebrais, distúrbios reprodutivos, desenvolvimento humano comprometido e um maior risco de neoplasias hormônio-dependentes, como cânceres de mama, útero, ovários, próstata e testiculares.
Normalmente, a contaminação se dá pela ingestão: o BPA se desprende de recipientes e acaba contaminando o alimento. Uma pesquisa publicada pela Analytical and Bioanalytical Chemistry mostrou que, no caso do papel térmico, a contaminação pode ocorrer pelo contato com a pele. Segundo a pesquisa, a contaminação varia de acordo com a quantidade de bisfenol presente na composição do papel, e é bem menor do que a contaminação pela ingestão, mas ainda pode ser nociva – principalmente para trabalhadores que estão diariamente em contato com esses tipos de recibos.
É possível encontrar papel térmico livre de BPA. No entanto, em seu lugar são utilizados bisfenol S e bisfenol F, cujos efeitos sobre a saúde humana são semelhantes ou piores que os efeitos do BPA.
Bisfenol S e F
A RDC Nº 17 de 2008 foi um esforço da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para regulamentar substâncias aditivas presentes em materiais plásticos. Dentre elas, está o BPA, cujo Limite de Migração Específica (LME), ou a quantidade máxima que uma substância pode ser transferida de um material até um alimento, é de 0,6 mg/kg.
Uma das principais alternativas ao BPA é o bisfenol S (BPS). Este composto pode ser usado como agente de fixação de lavagem em produtos de limpeza industrial, solvente de galvanoplastia e em papéis de impressão térmica. Ele surgiu, inicialmente, como uma forma de reduzir os impactos comprovados do BPA à saúde humana, principalmente no desenvolvimento de fetos e bebês.
Entretanto, além de ser um disruptor endócrino, assim como o BPA, o BPS também possui um nível de toxicidade capaz de causar alterações genéticas e, consequentemente, câncer. Além disso, essa substância não é regulamentada, o que dificulta o seu controle em diversos produtos e a exposição humana aos seus impactos negativos.
O bisfenol F (BPF) também pode ser utilizado como um substituto ao BPA, porém é comumente encontrado em revestimentos epóxi, pisos industriais, lâminas, adesivos, plásticos, canos de água, selantes dentários e embalagens de alimentos. Apesar de não ser usado em papéis térmicos, este tipo de bisfenol também possui efeitos negativos comprovados à saúde humana e ao meio ambiente.
Impactos ambientais
Além dos impactos à saúde humana, os bisfenois também causam distúrbios hormonais em animais expostos a essas substâncias. Um estudo realizado na Universidade Federal do Rio Grande revelou que a exposição de ratos ao BPA afetou a atividade locomotora, causou aumento de colesterol LDL e redução dos níveis de progesterona em fêmeas prenhas.
O mesmo estudo mostrou que tanto machos quanto fêmeas tiveram sua atividade locomotora e memória afetadas. Além disso, os filhotes apresentaram problemas de saúde permanentes, como obesidade, diabetes e alterações comportamentais.
De maneira semelhante, o BPF e o BPS, por serem disruptores endócrinos, geram efeitos negativos quando acumulados no ambiente, como alterações sexuais, mudanças de comportamento e problemas no desenvolvimento dos ovos, fetos e filhotes de animais.
Além disso, os bisfenois podem causar câncer, efeitos negativos nos testículos de mamíferos, na glândula pituitária, na reprodução de fêmeas mamíferas e dos peixes. Eles provocam reduções em populações de golfinhos, baleias, veados e furões; prejudicam o desenvolvimento de ovos de aves; causam deformidades sexuais em répteis e peixes; alterações na metamorfose de anfíbios e muitos outros danos.
Todos estes impactos podem ser agravados quando materiais compostos por bisfenois, como os papéis de impressão térmica são descartados de maneira inadequada. Estes, feitos com BPA ou BPS, quando dispostos em lixões ou aterros controlados, degradam e liberam essas substâncias no ambiente.
Os bisfenois podem ser absorvidos por organismos vivos, ou contaminarem corpos hídricos que serão, posteriormente, utilizados para abastecimento público de água. Neste sentido, caso o uso de papéis de impressão térmica não possa ser evitado, é preciso que seu descarte seja feito com responsabilidade.
Papel termossensível sem bisfenois
Algumas alternativas aos papéis termossensíveis constituídos de BPA e BPS vêm sendo desenvolvidas. Conhecidos como phenol-free thermal papers (papéis térmicos livres de fenol, em tradução livre), eles são fabricados com componentes que geram resultados semelhantes ao BPA e BPS na formação de imagens em impressoras térmicas, porém não há evidências conclusivas sobre os possíveis efeitos endócrino-disruptores de algumas delas a longo-prazo.
A Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA) desenvolveu, em 2015, um documento avaliando diferentes alternativas ao BPA para a confecção de papel térmico. Nele, foram levantados dados sobre as propriedades físico-químicas e os potenciais perigos associados a cada uma delas.
Em um outro estudo, publicado em 2023, foi analisado como diferentes mercados nos Estados Unidos estavam se adaptando às necessidades de redução de bisfenois nos recibos impressos com papel térmico. Foram comparadas as composições químicas destes papéis em 2017 e em 2022, buscando compreender quais alternativas e em qual grau estariam sendo aderidas.
Confira abaixo a lista das alternativas ao BPA e BPS levantadas pelo estudo de 2023, e o que a EPA e outros órgãos oficiais dizem sobre cada uma delas.
Pergafast 201
Pergafast 201 é um composto não-fenólico e não estrogênico, ou seja, não apresenta propriedades de disruptor endócrino. Além disso, ele é solúvel em água.
Na saúde humana, essa substância apresenta baixo perigo de toxicidade aguda, genotoxicidade, efeitos neurológicos e sensibilização da pele. Além disso, ela demonstra perigo moderado de gerar câncer e problemas no sistema reprodutivo e desenvolvimento biológico, principalmente em situações de repetidas doses.
Entretanto, o Pergafast 201 é classificado pela EPA como substância com alta toxicidade para seres aquáticos e alto índice de persistência no meio ambiente, apesar de sua baixa propensão à bioacumulação.
D-90
D-90 é uma substância fenólica, porém não é conclusivo se há a possibilidade ou não de atividade endócrina, segundo a EPA.
Na saúde humana, a D-90 apresenta baixos riscos de toxicidade aguda, genotoxicidade, sensibilização da pele, problemas reprodutivos e de desenvolvimento, mesmo em doses repetidas. Os efeitos carcinogênicos e neurológicos são classificados como de risco médio.
Além disso, essa substância demonstra baixa toxicidade a organismos aquáticos, mas níveis elevados de bioacumulação e muito elevados de persistência no meio ambiente.
D-8
D-8 é uma substância fenólica, que não apresenta atividade estrogênica que possa ser caracterizada como disruptor endócrino. Entretanto, ela demonstrou alguns efeitos antiestrogênicos em testes laboratoriais sob a presença de um hormônio chamado 17β-estradiol.
O 17β-estradiol é um dos principais hormônios estrogênios produzidos no corpo feminino, e desempenha um papel fundamental na regulação do ciclo menstrual. Portanto, a presença de D-8 no organismo humano pode gerar certo nível de desregulação hormonal.
NKK-1304
NKK-1304, ou benzenosulfonamida, é um composto não-fenólico e insolúvel em água. Segundo a Agência Europeia de Produtos Químicos (ECHA), essa substância não apresentou efeitos adversos em relação à toxicidade aguda, mutagenicidade, sensibilização da pele, reprodutividade e desenvolvimento biológico, mesmo com repetidas doses.
Já a Nippon Soda, empresa que patenteou a substância, classificou como baixos ou muito baixos os riscos associados ao NKK-1304 em relação às categorias listadas acima.
Não foram divulgadas, pela ECHA ou pela empresa, informações sobre o potencial carcinogênico e de impacto neurológico do composto. Além disso, ambos levantaram que a NKK-1304 possui pouca aptidão à bioacumulação, dada sua baixa capacidade de se dissolver em água.
Entretanto, a substância apresenta alta taxa de persistência no meio ambiente, podendo se manter estável por mais de dois anos dependendo das condições ambientais. Neste sentido, a falta de informações sobre alguns de seus potenciais impactos e sua alta persistência ambiental levanta a questão sobre sua viabilidade enquanto uma alternativa ao BPA e BPS.
Appvion Alpha Free
Diferente dos demais, o Alpha Free é uma tecnologia que utiliza vitamina C (ácido ascórbico) como ácido revelador na camada térmica do papel termosensível. Não existem muitas informações técnicas acessíveis ao público em geral sobre sua total composição, apenas em relação à boa qualidade de impressão e potencial de substituir todos os outros papéis térmicos à base de compostos sintéticos.
Entretanto, o estudo sobre as alternativas adotadas nos mercados dos EUA constatou que os papéis termossensíveis Alpha Free analisados continham Dapsona e Tolbutamida, ao invés de Vitamina C. Ambos são fármacos de uso controlado e que possuem efeitos colaterais em certas doses.
Medidas de contenção
Uma vez que os riscos associados aos bisfenois sejam conhecidos, a busca por meios de reduzir ou evitar os impactos causados pela exposição a essas substâncias é essencial. Algumas medidas podem ser tomadas para que os bisfenois estejam cada vez menos presentes no nosso cotidiano.
Escolher produtos fabricados com as alternativas aos bisfenois listadas acima (Pergafast 201, D-90, D-8 etc) pode ser uma forma de evitar a liberação de BPA e BPS no ambiente. Porém, seus riscos a longo prazo são desconhecidos, o que faz com que outras medidas possam ser mais efetivas.
Redução do consumo
O primeiro e mais importante passo para acabar com a contaminação do ambiente com bisfenois é não utilizar produtos que o contenham em sua composição. Escolhas como não imprimir recibos e comprovantes e optar pelo uso do aplicativo do banco para acompanhar extratos podem ajudar a reduzir significativamente a exposição aos bisfenois encontrados nos papéis térmicos.
Em casos onde a utilização de papel termossensível seja inevitável, o descarte correto é a melhor opção para mitigar seus impactos ao meio ambiente.
Descarte
O descarte de produtos com bisfenol é um grande desafio. Ao serem dispostos incorretamente, esses materiais poluem o ambiente, contaminando lençóis freáticos, solos e a atmosfera. Posteriormente, essas substâncias podem chegar aos alimentos e recursos hídricos, prejudicando pessoas e animais.
Por outro lado, se o material contendo bisfenol for destinado para a reciclagem, dependendo do tipo de material que ele vir a se transformar pode ter um impacto maior sobre a saúde humana. Um exemplo nesse sentido são os papéis higiênicos reciclados a partir de papéis contendo bisfenol. O papel higiênico reciclado contendo bisfenol gera uma exposição mais grave, pois entra em contato direto com mucosas mais sensíveis indo parar diretamente na corrente sanguínea.
Segundo o Pollution Prevention Resource Center (Centro de Recursos de Prevenção da Poluição), é mais seguro descartar o papel térmico no lixo comum do que reciclá-lo, permitindo que o BPA se degrade com o tempo em aterros sanitários, apesar de algumas limitações nesse processo. Mas é preciso que haja a coleta e o tratamento dos líquidos gerados na degradação para reduzir ainda mais os níveis de BPA no ambiente.
Além do mais, incentivar a reciclagem de produtos contendo bisfenol é contribuir com a permanência desse tipo de substância no cotidiano das pessoas e no meio ambiente.
Neste sentido, reciclar seria menos preferível, já que isso poderia resultar na liberação de BPA e em uma possível contaminação de produtos reciclados, ocasionando os problemas hormonais citados anteriormente.
Como descartar corretamente
Para o descarte adequado, é recomendado unir recibos e jornais (ou outros materiais) que contenham qualquer tipo de bisfenol, embalá-los firmemente em sacolas plásticas não-biodegradáveis (para que não vazem) e descartá-los no lixo comum ou destiná-los a aterros seguros, o que pode reduzir consideravelmente o risco de contaminação do meio ambiente.
Outra medida importante é pressionar órgãos fiscalizadores e empresas para abandonar o uso de substâncias prejudiciais como os bisfenois, especialmente em embalagens de alimentos. Isso, aliado às medidas de descarte responsável, poderá contribuir para preservar o meio ambiente e a saúde da população.