Saiba mais sobre a biologia sintética, ciência capaz de sintetizar organismos para produzir o que queremos, e como ela pode se relacionar com o meio ambiente
Aranhas e insetos produzindo a roupa que você usa? Parece estranho, mas já existem empresas fazendo isso. Pesquisadores estudaram o DNA das aranhas e analisaram o modo como elas produzem as fibras de seda. Assim, eles conseguiram reproduzir em laboratório uma fibra feita de água, açúcar, sal e levedura que, no microscópio, possui as mesmas características químicas da natural. Também já existe “leite de vaca” que não veio da vaca e até um filamento mais forte que o aço produzido a partir da substância viscosa de um peixe. Todos esses são exemplos de aplicação da biologia sintética.
Biologia sintética
No fim do século XX se iniciou uma revolução biotecnológica, em que novas vertentes da biologia surgiram. A biologia sintética é uma área que ganha destaque desde que surgiu oficialmente, em 2003, e tem suas principais possibilidades de aplicação na indústria, no meio ambiente e na saúde humana.
A definição de biologia sintética se dá pela integração de diferentes áreas da pesquisa (química, biologia, engenharia, física ou ciência da computação) com a construção de novos componentes biológicos, envolvendo também o re-design de sistemas biológicos naturais que já existem. Usar a tecnologia de DNA recombinante (uma sequência de DNA proveniente de diferentes fontes) não é um desafio para a biologia sintética, pois isso já ocorre; a aposta é desenhar organismos que atendam às necessidades atuais da humanidade.
Uma aliada da biologia sintética é a biomimética, que busca soluções para as nossas necessidades inspiradas na natureza. Com a biologia sintética será possível recriar sistemas inteiros, não apenas uma parte.
Foi a partir de 2010 foi que a biologia sintética ganhou notoriedade. Naquele ano o cientista americano John Craig Venter conseguiu realizar algo genial: ele criou o primeiro organismo com vida artificial em laboratório da história. Ele não criou uma nova forma de vida em si, e sim “imprimiu” o DNA criado a partir de dados digitais, e o introduziu em uma bactéria viva, transformando-a na versão sintética da bactéria Mycoplasma mycoides. Venter afirma que este foi o “primeiro organismo vivo cujo pai é um computador”.
Hoje há um banco de dados disponível na internet, com milhares de “receitas” de DNA para serem impressos, chamados biobricks. As bactérias com genoma sintético agem exatamente do mesmo modo que sua versão natural, e é assim que conseguimos reprogramar bactérias e fazer com que ajam do modo que desejamos para produzir certos materiais, como seda e leite.
A empresa responsável pela produção de fibras de seda a partir da observação de aranhas citada no começo deste texto é a Bolt Threads. O “leite de vaca” artificial é o Muufri, criado por dois bioengenheiros veganos. Ele é produzido segundo os mesmos princípios da cerveja e é uma mistura de ingredientes (enzimas, proteínas, gorduras, carboidratos, vitaminas, minerais e água). Esse “leite sintético” possui o mesmo gosto e características nutricionais que o original. Já o filamento hiper resistente é obra do laboratório Benthic Labs, que fabrica diversos materiais, como cordas, embalagens, roupas e produtos de saúde, através desse filamento proveniente do hagfish (espécie de peixe também conhecido como myxini). O código de DNA do peixe é introduzido na colônia de bactérias, que começa a sintetizar o filamento. Ele é dez vezes mais fino que um fio de cabelo, mais forte que náilon, aço e tem propriedades absorventes e antimicrobianas.
Se somos capazes de recriar tais recursos “naturais”, conforme o avanço dos estudos, a biologia sintética pode substituir o uso de algumas matérias-primas. Desse modo, essa tecnologia pode ser introduzida como fator de grande importância ao conceito de economia circular, como é o caso de tecnologias que absorvem vazamentos de petróleo ou bactérias que comem plástico.
Incorporando a biologia sintética à economia circular
A economia circular é um modelo estrutural que representa um ciclo fechado, em que não há perdas nem desperdícios. Os três princípios da economia circular, segundo a Fundação Ellen Macarthur, são:
- Preservar e aumentar o capital natural, controlando estoques finitos e equilibrando os fluxos de recursos renováveis;
- Otimizar a produção de recursos, fazendo circular produtos, componentes e materiais do mais alto nível de utilidade o tempo todo, tanto no ciclo técnico como no biológico;
- Fomentar a eficácia do sistema, revelando as externalidades negativas e excluindo-as nos projetos.
Atualmente vivemos em um sistema produtivo linear. Nós extraímos, produzimos, consumimos e descartamos. Mas os recursos naturais são finitos e devemos preservá-los – este é o primeiro princípio da economia circular.
Com a biologia sintética, no futuro, poderemos ter a capacidade de substituir a extração de certos recursos naturais. Além de preservarmos o meio ambiente, estaremos economizando uma enorme quantidade de energia e nos aproximando do modelo do berço ao berço (craddle to craddle – sistema em que não existe a ideia de resíduo).
Substituindo materiais
A capacidade de controlar bactérias e fazê-las trabalharem a nosso favor pode criar diferentes alternativas de insumos ou processos. Por exemplo: a criação de novos materiais biodegradáveis que podem ser integrados novamente ao ciclo, agora servindo de nutrientes para outros seres, como adubo para plantações.
Existem já alguns tipos de polímeros criados por biologia sintética, como o plástico feito da fermentação do açúcar e degradado naturalmente com os micro-organismos existentes no solo. Outros materiais também podem ser usados para produzir bioplástico, como milho, batata, cana-de-açúcar, madeira, entre outros. Também há embalagens feitas do micélio (imagem abaixo) de cogumelos que podem ser moldadas e substituem o isopor.
Encontram-se ainda em fase de desenvolvimento outras aplicações que estão sendo avaliadas pelo mundo… A borracha sintética hoje é totalmente derivada de fontes petroquímicas, portanto pesquisas tentam criar pneus feitos de BioIsoprene. As enzimas da planta são introduzidas no microrganismo por transferência de genes, produzindo assim o isoprene. No Brasil, um método para transformar metano em plástico biodegradável por meio de micro-organismos em condições controladas está sendo estudado. Produtos químicos, acrílico, desenvolvimento de vacinas, tratamento de resíduos da agricultura, antibióticos, entre outros, são exemplos de produtos da biologia sintética que podem ser inseridos novamente no fluxo, criando um sistema cíclico.
Para incluir o segundo princípio da economia circular, a biologia sintética pode criar materiais mais resistentes e que tenham grande duração, não necessitando de reparos constantes, troca de peças, ou mesmo compra de novos produtos com muita frequência. São feitos materiais que possam ser facilmente reaproveitados em outros processos, para criação de novos produtos, ou que sejam mais fáceis de serem reciclados. Se todo esse material hipotético possuísse essas condições, eles não se tornariam rejeito, havendo diminuição da poluição e da disposição em aterros, ou seja, eles continuariam em circulação para uso.
O outro lado da história
Esta tecnologia é ainda muito recente e com a descoberta de cada vez mais utilizações e materiais possíveis de serem substituídos por sintéticos, a extração de recursos do meio ambiente diminui, deixando ele se recuperar naturalmente. Devolvendo a capacidade de resiliência do meio, o equilíbrio é restaurado e poderemos viver em um planeta mais sustentável.
Mas como tudo que é bom, existem algumas adversidades. Esse ramo científico, que também é considerado uma engenharia genética extrema, necessita de pareceres oficiais. Os produtos devem possuir regulamentações e recomendações detalhadas para que se evite qualquer chance de erro, de modo que os riscos e benefícios se tornem evidentes antes de haver comercialização. Como as experiências iniciais de biologia sintética foram muito promissoras economicamente, ainda não há muitas restrições, o que pode ser um problema.
Um dos efeitos negativos que pode ocorrer é a perda de biodiversidade com a criação de micro-organismos artificiais que podem agir imprevisivelmente no meio ambiente. Por exemplo: se intencionalmente ou não ocorre a liberação de um micro-organismo sintético, às vezes inédito na natureza, ele pode se comportar como invasor e propagar, desregulando ecossistemas inteiros, e é impossível “caçar” e retirar todas as bactéria do meio.
Sobre a questão social, os países pobres podem sofrer muito mais que os países desenvolvidos. Usar micro-organismos para a produção em massa de certo produto pode substituir plantações naturais inteiras, deixando milhões de famílias desempregadas. Entretanto, haverá necessidade de monoculturas para alimentar as bactérias, já que a fonte de energia delas é a biomassa.
Em grandes escalas, certos produtos demandarão muita matéria orgânica, como o açúcar. Possivelmente as famílias desempregadas começarão a plantar somente cana-de-açúcar (os biocombustíveis já trouxeram grandes mudanças no uso do solo), o que pode gerar impactos no acesso à terra, água e aumento no uso de agrotóxicos, entre outros.
Todas essas questões estão diretamente relacionadas com a bioética. O poder da biologia sintética é enorme. Desenhar organismos do jeito que queremos os torna imprevisíveis, por isso cientistas e sociedade devem usar esse poder com responsabilidade e segurança, tendo suporte dos governos. Essa é sempre uma questão complicada.
Todos esses fatores positivos ou negativos podem ajudar ou prejudicar a economia circular e nosso planeta. Mas ainda há muito o que debater e muito conhecimento a ser levantado sobre o assunto. Não há como negar que a biologia sintética é uma tendência para o futuro, mas o mais importante é definir como essa tecnologia avançada será aplicada.
Confira um vídeo crítico sobre as consequências da biologia sintética.