Por Marcos Pivetta em Pesquisa Fapesp | A aplicação de uma única dose de compostos naturais pode provocar alterações sutis na parede celular da cana-de-açúcar e aumentar a eficiência do processo de obtenção do etanol de segunda geração, produzido no Brasil a partir do bagaço e da palha. Artigo publicado em dezembro passado na revista científica Biomass and Bioenergy sugere que esse tipo de procedimento pode elevar em 120% a taxa de sacarificação do bagaço da cana em 12 meses, no momento da colheita. Também chamada de hidrólise, a sacarificação é o processo químico que, com o emprego de enzimas, converte moléculas complexas de carboidratos, como a celulose e a hemicelulose que não fermentam, em açúcares mais simples, como a sacarose, capazes de se transformar em etanol.
“Se aplicados em excesso, esses compostos podem matar uma planta, mas fizemos experimentos de campo com dosagens muito baixas, que são eliminadas rapidamente e, ainda assim, promovem as alterações que buscamos”, diz o bioquímico Wanderley Dantas dos Santos, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), principal autor do artigo. “Não identificamos nenhum efeito colateral indesejado, as plantas cresceram normalmente e não houve perda de produtividade.” Desde 2008, quando fez estágio de pós-doutorado na equipe do botânico Marcos Buckeridge no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), Santos pesquisa essa abordagem.
Na visão dos autores do trabalho, a abordagem, denominada engenharia fisiológica, seria uma alternativa mais simples do que tentar promover alterações no DNA da cana com o objetivo de tornar sua biomassa mais facilmente fermentável. O genoma da cana é grande e complexo, com mais de 100 cromossomos, muitos deles repetidos, uma característica que dificulta a criação de linhagens transgênicas viáveis. A obtenção do etanol de primeira geração, que responde por mais de 98% desse biocombustível produzido no país, dispensa a etapa de hidrólise ou sacarificação. Os açúcares do caldo ou melaço da cana fermentam de forma natural.
Além dos resultados positivos com o bagaço da cana, o tratamento com essas substâncias elevou em 36% a sacarificação da soja 90 dias após a aplicação dos compostos. No capim braquiária, usado como pastagem na pecuária bovina, o aumento foi de 21% 40 dias após o emprego dos compostos. “O foco principal do experimento era a cana-de açúcar, mas essa abordagem também pode produzir um pasto aparentemente de digestão mais fácil e uma soja com cascas mais resistentes a choques mecânicos, algo desejável pela indústria”, comenta Buckeridge, coordenador da equipe do estudo e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol, financiado pela FAPESP e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O trabalho contou, ainda, com o apoio do Centro de Pesquisa e Inovação de Gases de Efeito Estufa (RCGI), uma iniciativa bancada pela Fundação e pela Shell, multinacional da área de petróleo e energia.
Imagem de microscopia eletrônica mostra a presença de lignina (pintada de amarelo) na parede celular do colmo da cana-de-açúcarDebora Leite / Marcos Buckeridge
Foram testados três compostos que funcionam como inibidores de enzimas associadas à síntese de lignina na cana e em outras plantas: o ácido metilenodioxi cinâmico (MDCA), o ácido piperolínico (PIP) e a daidzina (DZN). Ao lado da celulose e da hemicelulose, a lignina, uma molécula aromática, está presente na parede celular das plantas terrestres, à qual confere resistência mecânica e rigidez, além de funcionar como uma barreira para a entrada de patógenos. Se não houvesse lignina, as plantas, literalmente, não parariam em pé e não teriam um sistema vascular impermeável capaz de transportar água das raízes até seu tronco.
Diferentes dosagens dos compostos foram diluídas em água e aplicadas na forma de spray sobre folhas e raízes das plantas em etapas distintas de seu crescimento. Ao final do experimento, os pesquisadores determinaram o melhor momento e a dosagem mais eficaz para a aplicação das substâncias. O PIP foi o composto que apresentou melhor desempenho.
Grosso modo, metade do bagaço de cana é constituído por celulose, um quarto de hemicelulose e um quarto de lignina. Embora essencial para a planta, a lignina é um composto que dificulta a obtenção do etanol de segunda geração. Por não ser um açúcar, não fermenta. Mas esse não é o problema. Sua presença na biomassa da cana torna muito mais complexo e caro o processo de transformar os carboidratos longos da celulose e da hemicelulose, originalmente não passíveis de fermentação, em açúcares menores, esses sim aptos a se transformar em etanol. Além de ser trabalhoso separá-la da celulose e da hemicelulose presentes na parede celular, a lignina produz substâncias que atrapalham o processo químico de sacarificação.
Hoje, para que ocorra a hidrólise da biomassa da cana, são aplicados tratamentos térmicos e um coquetel de enzimas no bagaço da planta. Essa etapa é a que mais encarece o processo de produção do etanol de segunda geração e responde por pelo menos 30% de seu custo final. “Não podemos simplesmente reduzir a quantidade de lignina em uma planta. Isso seria prejudicial para o organismo”, comenta Buckeridge. “Quando examinamos no microscópio a parede celular da cana que submetemos ao tratamento com os compostos, não vimos diferença alguma. As alterações devem ser muito sutis.”
Pés de cana-de-açúcar em Maringá que receberam tratamento com moduladores de ligninaWanderley Dantas dos Santos / UEM
No artigo, os pesquisadores dizem que o uso dos compostos não diminuiu a quantidade total de lignina no bagaço da cana. Também não modificou sua composição. Porém eles averiguaram que a concentração desse polímero orgânico apresentou alterações em diferentes tecidos da planta. Aumentou ligeiramente na parte fibrosa e nos vasos condutores e diminuiu no parênquima, um tecido de preenchimento dos vegetais. É possível que essa redistribuição da lignina em diferentes partes da cana tenha sido a responsável pela maior eficiência de sacarificação reportada no estudo.
Para o bioquímico Mario Murakami, diretor científico do Laboratório Nacional de Biorrenováveis (LNBR), de Campinas, ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), o emprego de compostos que modulam a síntese de lignina é uma abordagem interessante para se tentar aumentar a eficiência do processo de obtenção de etanol de segunda geração. Ele considera que os resultados apresentados por seus colegas da UEM e USP são promissores, mas precisam ser validados em condições tipicamente empregadas pela indústria. “Esses experimentos precisam ser feitos em condições mais próximas das que são usadas pelas empresas que produzem etanol de segunda geração para ver se o ganho de sacarificação se mantém e não há nenhuma perda de eficiência no processo”, comenta Murakami. “Também é preciso saber quais seriam os eventuais impactos do uso desses compostos no custo da produção do etanol de segunda geração.”
Esses questionamentos deverão ser respondidos em breve. Santos e Buckeridge contam que a Raízen, uma das duas empresas que produzem etanol de segunda geração no país (a outra é a GranBio), vai começar a testar o emprego dos compostos moduladores de lignina em uma área-piloto de produção ainda neste semestre. “É possível que daqui a um ano tenhamos uma noção mais clara se o aumento da sacarificação se mantém em uma operação comercial”, pondera o pesquisador da UEM. O novo experimento na empresa, uma joint-venture da Shell e do grupo brasileiro Cosan, faz parte das atividades de pesquisa do RCGI.
Os pesquisadores envolvidos nos estudos apostam que os moduladores de lignina, que também podem ser produzidos de forma sintética em laboratório, podem se tornar no futuro um produto comercial para o setor sucroalcooleiro e talvez para outros ramos agrícolas. Já obtiveram patente no Brasil sobre o seu emprego em culturas agrícolas, e Santos e um grupo de alunos do Departamento de Bioquímica da UEM constituíram uma startup, a BioSolutions, para tentar comercializar os compostos. Criada em 2021, a empresa conta com suporte do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) do Paraná e do Instituto Tim.A busca por um coquetel de enzimas melhor
A degradação da parede celular da cana em açúcares fermentáveis depende da ação desse produto
Uma etapa crucial na produção do etanol de segunda geração é o emprego do coquetel enzimático encarregado de promover a hidrólise da celulose e da hemicelulose. Por meio da ação de um conjunto de enzimas, os carboidratos longos e complexos desses dois componentes do bagaço da cana-de-açúcar são quebrados em açúcares menores, glicose e xilose, que são passíveis de fermentar. O mercado de enzimas para essa finalidade é dominado pela empresa dinamarquesa Novozymes. “O emprego do coquetel enzimático representa entre 30% e 50% do custo final da produção de etanol de segunda geração”, diz o bioquímico Mario Murakami, diretor científico do Laboratório Nacional de Biorrenováveis (LNBR). Por isso, grupos de pesquisa no Brasil procuram alternativas mais em conta e, idealmente, mais eficientes do que os produtos hoje disponíveis.
Seis genes do fungo Trichoderma reesei foram modificados para aprimorar sua ação na degradação da parede celular da canaMaxuel de Oliveira Andrade / Renata rabelo / LNBR
Com o emprego da técnica de edição genética Crispr-Cas9, uma equipe coordenada por Murakami modificou em 2019 seis genes do fungo Trichoderma reesei para maximizar sua produção de enzimas de interesse biotecnológico, sobretudo as usadas para a hidrólise de biomassa vegetal. Fungos desse gênero são empregados na fabricação do coquetel enzimático vendido comercialmente para promover a sacarificação do bagaço da cana e possibilitar a produção de etanol de segunda geração. Em um trabalho publicado no fim de 2022 na revista Bioresource Technology, os pesquisadores do LNBR reportaram que conseguiram reduzir o tempo de produção das enzimas de 14 para 9 dias. “Nosso coquetel enzimático é de baixo custo e estável. O produto dura um ano em temperatura ambiente”, conta Murakami. Ele já foi testado na planta-piloto do laboratório e conseguiu degradar cerca de 60% dos carboidratos longos da biomassa da cana, um desempenho semelhante ao de alguns produtos comerciais.
Para o botânico Marcos Buckeridge, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), diferentes microrganismos devem ser usados para se tentar produzir coquetéis enzimáticos que promovam uma hidrólise mais eficiente e simples. Além do conhecido T. reesei, fungos de origem amazônica, insetos, como baratas, e a própria cana têm sido estudados como possíveis fontes de enzimas que podem ser úteis para melhorar esse processo. “A origem das enzimas não importa”, comenta o pesquisador da USP. “O que nós precisamos é dominar a tecnologia de produção de um coquetel enzimático eficiente. O alto custo do produto importado afasta investimentos no setor de etanol de segunda geração.”
Este texto foi originalmente publicado pela Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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