Por Carlos Fioravanti em Agência FAPESP – Líderes políticos que tratam igualmente jovens ou velhos, sem priorizar um ou outro em caso de escassez de aparelhos médicos em hospitais, e os que pensam em enviar excesso de medicamentos ou de vacinas para outros países, em vez de guardar para eventuais necessidades futuras, são os mais bem vistos pela população. A conclusão vem de um estudo fundamentado em entrevistas on-line com 24.809 pessoas de 22 países, incluindo o Brasil, cada um com cerca de mil participantes.
“Esses dados sugerem que a confiança nos líderes provavelmente será um indicador-chave do sucesso de longo prazo na contenção da pandemia de Covid-19 em todo o mundo”, assevera o artigo sobre o trabalho, publicado em julho na Nature Human Behavior. Coordenado pelos psicólogos Jim Everett, da Universidade de Kent, no Reino Unido, e Molly Crockett, da Universidade Yale, nos Estados Unidos, o estudo indica que a confiança nos líderes favorece a adesão da população às políticas públicas de combate à Covid-19.
Na primeira parte do questionário, a maioria dos entrevistados (85,1%) escolheu os líderes que adotam argumentos como “qualquer pessoa tem direito aos tratamentos”. As ações fundamentadas nesse princípio levam às chamadas decisões não utilitárias, que não discriminam entre grupos da população em caso de escassez de medicamentos ou aparelhos médicos a serem usados.
Os outros 14,9% apoiam os que adotam as chamadas decisões utilitárias e direcionam, por exemplo, os ventiladores pulmonares para os jovens, em detrimento dos idosos, já que não haveria como salvar a vida de todos.
Desse modo, dirigentes como os da China, Índia, Coreia do Sul e Israel, que impõem medidas obrigatórias de rastreamento dos contatos da população como forma de controlar a pandemia, desfrutam de pouca confiança da população porque suas ações desrespeitam a privacidade individual.
Na segunda parte do questionário, ao votarem em quem escolheriam para receber um hipotético investimento para usar no combate à pandemia, a maioria dos entrevistados (61,1%) novamente preferiu os líderes utilitaristas, que mandariam o excesso de medicamentos de seus países para outras nações, sob o argumento de que a pandemia é um problema global. Os 38,9% restantes preferiram os líderes não utilitaristas, que optariam por guardar os remédios produzidos no próprio país, sob o argumento de que poderiam precisar deles no futuro.
No Brasil, 80,5% dos cerca de mil entrevistados escolheram um líder que não discriminaria grupos da população para receber tratamento, enquanto 19,5% preferiram os dirigentes que poderiam desconsiderar os direitos individuais ao impor lockdown ou rastreamento compulsório.
“Muitos chamam de liberdade atitudes como não usar máscara, não tomar vacina ou não fazer isolamento, mas esse é um uso extremo da ideia da liberdade, porque prejudica os direitos de outros grupos sociais”, comenta o psicólogo Paulo Boggio, coordenador do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) e responsável pela participação brasileira nesse trabalho.
Ao votarem em quem escolheriam para receber um hipotético investimento para usar no combate à pandemia, 62,8% dos participantes no Brasil apoiaram os líderes que ajudariam outros países e 37,2% os que dariam prioridade absoluta ao próprio país. “O predomínio dessa visão sinaliza uma visão pró-social e uma preocupação com o outro, ainda que desconhecido”, diz Boggio.
Outro estudo do qual ele participou, publicado como preprint em setembro de 2020, com base em 46.540 entrevistas em 67 países, indicou que a solidariedade expressa pela possibilidade de ajudar outras pessoas, até mesmo desconhecidas, em outros países, ameniza a angústia gerada pela proximidade da morte ou pela perda de familiares para a Covid-19.
“O estudo sobre liderança aponta vários caminhos potencialmente promissores para futuras investigações com amostras menores e passíveis de um controle individual mais preciso”, diz o neurologista Ricardo de Oliveira-Souza, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino. Segundo o neurologista, uma das limitações desse tipo de estudo é a baixa correlação entre os relatos verbais de autoavaliação e os comportamentos na vida real.
“As respostas verbais são substancialmente mais magnânimas e benevolentes do que os comportamentos na mesma situação”, diz o neurologista, que no Instituto D’Or examina os mecanismos neurais associados às chamadas decisões morais, que regem o comportamento. “Mesmo que os autores tenham encontrado uma correlação expressiva entre um e outro, ainda assim os comportamentos medidos não refletem a situação de vida real em que o entrevistado é agente das decisões.” Segundo Boggio, a segunda parte da entrevista, a escolha de um líder, implicava consequências reais, o que permitiria entender melhor o comportamento dos participantes, além apenas do autorrelato.
O psicólogo Jamil Zaki, da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, por sua vez, argumenta que guerras, terremotos, ataques terroristas e pandemias despertam o que ele chamou de compaixão da catástrofe. “Os desastres colocam as pessoas em uma situação de sofrimento que é obviamente compartilhado com outras pessoas”, comentou em um artigo de maio de 2020 na revista Trends in Cognitive Sciences. Segundo Zaki, a tragédia coletiva poderia “diminuir as barreiras psicológicas à comunicação, criando oportunidades para uma conexão mais profunda e para ajuda mútua”.
O artigo de 19 páginas na Nature Human Behavior seguiu o modelo de pré-registro, que tem se tornado mais frequente em estudos com entrevistas. Como os editores da revista mostraram interesse em publicar o artigo que resultaria da pesquisa, em agosto de 2020 os coordenadores do estudo enviaram à publicação o plano de trabalho, os questionários a serem aplicados aos entrevistados e os métodos de análise. Os pareceristas sugeriram ajustes e o plano foi aprovado em novembro de 2020.
“Fomos então liberados para coletar os dados. Os questionários já estavam traduzidos, à espera da aprovação do plano de trabalho”, conta Boggio. Com esse processo, a revisão do artigo final foi mais rápida que o habitual, porque a metodologia já estava definida. “O pré-registro motiva o pesquisador a pensar em diferentes abordagens para estudar um tema, assegura transparência e antecipa a resolução de problemas que apareceriam somente com o artigo completo.”
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original.
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