Para muito além do preço que se paga por cada peça nova de roupa, existe um custo socioambiental invisibilizado na etiqueta. Desde a produção das três fibras mais utilizadas pela indústria da moda – o algodão, a viscose e o poliéster – até o descarte da peça de roupa há um longo caminho que passa pelo uso do solo, a toxicidade gerada durante os processos de plantio e fabricação, o uso de água e energia, as emissões de gases de efeito estufa (GEE), o descarte de resíduos e a mão de obra envolvida em toda a cadeia produtiva.
O relatório “Fios da Moda”, com lançamento oficial hoje durante a Semana Fashion Revolution, é a primeira publicação brasileira a analisar em detalhes esses impactos. Publicado pela Modefica, plataforma de moda com foco em sustentabilidade, em parceria com a Regenerate Fashion e a Fundação Getulio Vargas, o relatório faz uma avaliação qualitativa e quantitativa do quanto as fibras têxteis têm contribuído para a crise climática e a desigualdade social.
Segundo Marina Colerato, autora do relatório, a escassa produção de informações e dados sobre a indústria da moda no Brasil é ponto de atenção. “Se a gente está vivendo na década final para a questão do clima, para a redução de emissões de CO2, é bastante alarmante que as empresas de grande porte não façam mensuração das emissões de CO2”, alerta a também coordenadora do Modefica. “Se a gente não está produzindo dados, a gente não está olhando para o problema. E se a gente não está olhando para o problema, a gente não vai agir sobre ele”.
O setor têxtil brasileiro compreende todas as etapas da confecção, desde o plantio de algodão até o varejo, e é referência mundial em segmentos como jeans e moda praia. A cadeia produtiva é fragmentada, contando com grande número de fornecedores, o que dificulta a rastreabilidade de impactos causados ao longo das diversas etapas do processo produtivo.
Com cerca de 9 bilhões de peças de roupa produzidas por ano e destinadas sobretudo ao mercado interno, o Brasil faturou US$ 48,3 bilhões em 2018. Como exportador de vestuário, o país ocupa o 83º lugar, mas, quando se trata da exportação de commodities como o algodão, o Brasil é o segundo maior e também está entre os principais exportadores de polpa de celulose solúvel, matéria-prima que vem da madeira e dá origem à viscose.
Segundo a consultoria McKinsey, o setor têxtil representa 6% das emissões globais de gases de efeito estufa e de 10 a 20% do uso de pesticidas. Lavagem, solventes e corantes usados na fabricação são responsáveis por um quinto da poluição industrial da água, e a moda é responsável por 20 a 35% do fluxo de microplásticos para o oceano.
Entre as fibras mais produzidas, o poliéster representa 51% da produção mundial, seguido pelo algodão com 25%. O Brasil é o quarto maior produtor mundial de algodão e, dentre as fibras produzidas no país, o algodão lidera com mais de 90% da produção. Ainda que tenha a vantagem de ser uma fibra natural, o algodão deixa um rastro pesado no meio ambiente. Segundo o relatório Fios da Moda, trata-se da quarta cultura que mais consome agrotóxicos, sendo responsável por aproximadamente 10% do volume total de pesticidas utilizado no Brasil, com uma aplicação média de 28 litros de pesticidas por hectare – mais do que o dobro aplicado na soja, commodity que recebe 12 litros por hectare.
“A Abrapa (Associação Brasileira de Produtores de Algodão) é uma das associações que mais está se esforçando politicamente para a aprovação da chamada PL do veneno”, diz Marina, referindo-se ao projeto de lei que regulamenta o uso de novos agrotóxicos. O Brasil já é conhecidamente permissivo em relação ao uso de pesticidas, se comparado a outros países. Segundo o atlas “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia“, revisado em 2019 pela pesquisadora Larissa Mies Bombardi, dos 160 agrotóxicos autorizados para o cultivo do algodão no Brasil, 47 são de uso proibido na União Europeia.
A pressão pela expansão de áreas de cultivo é outro aspecto que se soma ao custo socioambiental da fibra. Segundo o relatório “Perspectivas para a Agropecuária 2019/20”, da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a área para o plantio do algodão aumentou 37,1% na safra 2018/19 em relação à safra anterior, atingindo 1,61 milhão de hectares de área. O Mato Grosso e a Bahia respondem por 88% do total da área de cultivo do algodão no Brasil. Isso aponta para uma grande pressão sobre o Cerrado, bioma que já perdeu 55% de sua vegetação nativa e concentra a maior parte da cultura algodoeira por ter suas estações de seca e chuva mais definidas, favorecendo o cultivo em regime de sequeiro, ou sem irrigação, predominantemente praticado no Brasil.
O setor algodoeiro se orgulha por ter mais de 90% da safra 2018/19 certificada no Brasil com o selo Better Cotton Initiative (BCI), que configura a produção responsável de algodão. “O BCI, como o nome já diz, ele é melhor, mas ainda não é bom”, afirma Silvio Moraes, embaixador da certificadora Textile Exchange para a América Latina. “O Brasil está longe de ser um bom exemplo de país com produção sustentável de algodão. O selo BCI garante, na teoria, que o agrotóxico tenha registro e seja aplicado de forma correta, com equipamentos de segurança e tudo mais, mas ele não busca reduzir o uso de agrotóxico”.
A segunda fibra produzida no Brasil é o poliéster, que representa 5% da produção nacional e inicia sua cadeia produtiva com o refino de petróleo e a obtenção da nafta. O uso de combustível fóssil faz dela a fibra campeã em emissões de gases de efeito estufa. Além disso, o poliéster solta microplásticos, que já foram encontrados na água potável, no peixe servido à mesa, e em vários órgãos do corpo humano. Estudo recente indica que as micropartículas das roupas de material sintético podem prejudicar a recuperação dos tecidos pulmonares em pacientes com doenças respiratórias, como a covid-19.
O poliéster reciclado, feito a partir de garrafas PET, cresceu nos últimos anos. A relevância da reciclagem é indiscutível, mas o relatório “Fios da Moda” aponta para o fato de que o problema não é solucionado, mas muda de endereço. Se o material oriundo da reciclagem de garrafa PET não volta para a produção das garrafas, mas é direcionado a outros produtos como o poliéster, as novas garrafas PET que chegam ao mercado continuarão demandando matéria-prima virgem em sua produção.
“PET é um produto bom porque você consegue reciclar”, comenta Silvio. “Ele retorna para o ciclo econômico, mas com algum custo, e às vezes não retorna 100% do material que foi colocado no mercado. Agora, quando você fala do algodão, ele é 100% reciclável. Ou vai ser reciclado na forma de fibra, retornando para o ciclo industrial, ou ele vai apodrecer e virar um composto no fim das contas”, compara.
Em terceiro lugar no cenário das fibras está a viscose, fibra artificial que tem a produção semelhante à da celulose para papel e usa no processo materiais corrosivos, como a soda cáustica e o ácido sulfúrico. A polpa da madeira extraída de árvores é transformada em fibra de celulose e, então, em fios de viscose. O Brasil está entre os 10 principais produtores de celulose, representando cerca de 11% da produção mundial em 2019.
Quando falamos em celulose, falamos na eucaliptocultura, que ocupa no Brasil território equivalente a 80% do tamanho de Portugal. Tanto a cultura do eucalipto quanto a do algodão utilizam entre 7 a 10 dos principais tipos de agrotóxico vendidos no Brasil, incluindo o glifosato, apontado como altamente tóxico e cancerígeno.
Somando-se a isso, a consultoria Canopy estima que 30% da viscose produzida no mundo é proveniente de árvores de florestas nativas e ameaçadas de extinção, incluindo a Amazônia. “Os números do desmatamento ilegal refletem de alguma forma na indústria da moda porque a gente tem uma produção de celulose bastante considerável e baixo rastreamento” afirma Marina. “Ninguém me garante que a celulose solúvel que está saindo do Brasil não vem de floresta desmatada”.
Um comparativo entre as fibras, no que se refere às emissões de GEE, mostra que a produção de viscose tem emissão menor do que o poliéster e 50% maior que as fibras de algodão. As emissões do algodão estão diretamente relacionadas ao uso de fertilizantes químicos, herbicidas, inseticidas e fungicidas, além do uso de operações mecanizadas. Se comparado ao cultivo convencional, o cultivo de algodão orgânico reduz em 58% as emissões de GEE.
De acordo com relatório da Textile Exchange, o Brasil é um dos últimos entre os 19 países produtores de algodão orgânico, com 0,04% da produção mundial. Ainda assim, apresentou incremento de 335% na safra 2018/19. “Nós hoje temos uma demanda de algodão orgânico muito maior do que a produção. Então essa demanda está puxando os agricultores a produzirem mais”, afirma Silvio.
Nos últimos anos, o apoio de ONGs para assistência técnica aos agricultores, a comercialização garantida por contratos e parcerias com instituições e empresas preocupadas com sustentabilidade fortaleceram a cadeia de produção.
O plantio de algodão orgânico no Brasil ocorre predominantemente no Nordeste, dentro dos preceitos da agroecologia. “Eu sou muito defensor do algodão orgânico da forma como é produzido no Brasil ou em alguns lugares do Peru, onde é produzido por pequeno produtor com recuperação do ambiente, muitas vezes de forma comunitária e remunerado por preço diferenciado pelo mercado”, explica Silvio. “O algodão agroecológico orgânico brasileiro, todo ele é produzido em consórcios alimentares. Isso dá para o agricultor segurança alimentar”.
A Paraíba é o estado campeão na produção de algodão orgânico. Desde 2015, o Projeto Algodão Paraíba, iniciativa governamental com parceria da Embrapa, apoia pequenos núcleos de agricultores. “Essa é uma coisa completamente nova”, afirma Silvio. “O que puxava a produção do algodão orgânico eram pequenas empresas idealistas e de repente a gente vê uma iniciativa governamental. Quem dera a gente conseguisse replicar isso em outros estados”.
A metade das empresas do segmento têxtil e de confecção está no Sudeste. Apenas na região central da cidade de São Paulo estima-se que os bairros tradicionalmente conhecidos por formarem o maior pólo produtivo de roupas do país, como Brás, Bom Retiro e Vila Maria, descartam mais de 60 toneladas de resíduos têxteis por dia.
Enquanto o algodão leva de 10 a 20 anos para se decompor, alguns tecidos sintéticos demoram entre 100 e 300 anos e o poliéster pode levar até 400 anos. Segundo o “Fios da Moda”, a reciclagem não é uma tarefa incentivada. Enquanto fazer o descarte dos resíduos não custa nada aos produtores, eles pagam aos catadores entre R$ 0,30 e R$ 0,60 pelo quilo de resíduos têxteis recolhidos.
A aplicação da economia circular na indústria da moda seria uma alternativa para reduzir resíduos e poluição, prolongar o uso das peças e regenerar sistemas naturais. Com os princípios da reutilização, reparo e remanufatura, a reciclagem se apresenta como último recurso. A economia circular inclui ainda a regeneração de terras agrícolas e florestais, diminuição de emissões de GEE, cuidados com o uso e poluição das águas, e valorização das pessoas nas diversas etapas da cadeia produtiva. “A gente não pode deixar de pensar que a economia circular também precisa ser restaurativa e regenerativa para com a sociedade. A gente precisa pensar em restauração e regeneração por princípios: das pessoas, da sociedade e do meio ambiente. Então a gente está falando de regeneração socioambiental”, explica Marina.
Algumas iniciativas caminham nessa direção, como é o caso da Re-Roupa, metodologia para reaproveitamento de tecidos e transformação de peças que é aplicada em oficinas de criação coletiva e capacitação. Também praticado por novas marcas, o conceito de upciclyng prega a reutilização criativa de peças em vez do descarte. O movimento Fashion Revolution busca conscientizar sobre os impactos socioambientais do setor e criou a Brasil Eco Fashion Week, semana dedicada à moda sustentável.
“A questão óbvia quando se fala de sustentabilidade de verdade é a circularidade. Qualquer fibra, qualquer produto que seja usado, ele tem que ter dois fins: ou ele retorna para o ciclo econômico, ou ele retorna para o ciclo natural”, diz Silvio. “Fibras orgânicas sempre vão ser preferenciais. E entre elas, no meu ponto de vista, o algodão, o cânhamo e o linho”, acrescenta.
Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos.
Saiba mais