Por Aline Fernandes França em Ciência UFPR | Já imaginou poder consumir carnes produzidas com apenas 10% da água utilizada em carnes convencionais? Essa alternativa sustentável é uma realidade no mercado e apresenta uma impactante redução do uso de insumos necessários a cada quilo do produto final. A cadeia produtiva de carnes conhecidas como alternativas ainda vem acompanhada por outros benefícios, como menor risco de surtos de doenças em animais, diminuição do uso de antibióticos pela zootecnia, além do aumento da segurança alimentar global.
Apesar de ainda não ter alcançado alta popularidade, a carne vegetal e a carne cultivada em laboratório vêm ganhando espaço no mundo. “Para os animais, é a melhor notícia em 12 mil anos, pois será possível comer carne sem submetê-los a uma vida de restrições frequentemente extremas ao seu bem-estar e sem matá-los”, avalia a professora do Departamento de Veterinária da UFPR, Carla Molento. “Difícil imaginar situação mais positiva em termos de ética animal no cenário da produção de alimentos”.
Composta por produtos alimentícios similares à carne convencional em sabor e textura, a carne baseada em plantas possui como ingredientes principais proteína vegetal proveniente de soja, ervilha e grão de bico. A produção envolve a combinação de moléculas majoritariamente vegetais, em que também podem ser incluídos produtos de fermentação de precisão, com a intenção de simular as características da carne animal, tais como sabor, textura e cor.
Já a carne cultivada em laboratório refere-se ao cultivo de células animais para produção de carne, sem a necessidade de abate, trata-se de um processo inovador.
“As células dos animais de interesse são cultivadas, multiplicadas em um biorreator. Assim, estamos falando de carne animal verdadeira, com características coordenadas pelo DNA do animal de origem, porque de fato são exatamente as mesmas células que crescem dentro do organismo do animal”, explica a docente.
O sistema de produção é considerado promissor, pois permite produzir carne verdadeira de uma maneira customizada. É possível pré-determinar inclusive a quantidade de gordura. “Podemos até produzir a carne animal com gordura vegetal, para consumidores preocupados com a ingestão de colesterol. São tecnologias que abrem um novo horizonte para a produção de alimentos de origem animal”, afirma Carla.
A transição para um cenário em que a carne baseada em plantas e a carne cultivada representem um percentual significativo do mercado global de proteínas pode trazer diversas consequências aos países produtores de carne convencional, como o Brasil. Para ajudar a compreender essa perspectiva, uma série de estudos realizados por pesquisadores da Universidade Federal do Paraná, apoiados pela ONG belga GAIA (Global Action in the Interest of Animals), foi conduzida. As análises concluem que o processo de inovação em curso na produção de alimentos é irreversível e, dificilmente, algum país consiga atrasar o desenvolvimento de novas tecnologias em âmbito global e a oferta de novos produtos.
Tal processo de transição já é registrado na Holanda, em Israel, Singapura e nos Estados Unidos. No Brasil, as carnes vegetais estão nos supermercados há algum tempo, enquanto as carnes cultivadas ainda estão em fase de pesquisa e desenvolvimento. Além disso, as exportações podem ser afetadas e até o consumo interno pode ser alterado a partir da importação de produtos com base em proteínas alternativas. O caminho sugerido pelos pesquisadores é investir e apoiar os sistemas inovadores e sustentáveis de produção de alimentos.
As análises integram o pós-doutorado do docente Rodrigo Luiz Morais da Silva pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Veterinárias em parceria com a Escola de Administração, ambos da UFPR. Supervisionado pela professora Carla Molento, do Laboratório de Bem-estar Animal (LABEA), e pelo professor Germano Glufke Reis, vinculado ao SFoodLab (Sustainable Food Value Chains Lab), o projeto também contou com a parceria de Eduardo Guedes Villar, professor do Instituto Federal de Santa Catarina e pesquisador voluntário da UFPR.
Os estudos enfatizam sugestões para acelerar o processo de transição no sistema de produção de carnes e garantir que os benefícios sejam colhidos pelo Brasil, assim como por outros países. Políticas de apoio governamental são consideradas essenciais para garantir o desenvolvimento tecnológico e as adaptações necessárias para os diferentes mercados.
“A legislação necessita avançar para garantir que os produtos sejam comercializados a partir de novas tecnologias de produção e armazenamento eficientes. Parcerias entre empresas e universidades são importantes para garantir que as barreiras tecnológicas e de produção em escala sejam vencidas e compartilhadas”, afirmam os pesquisadores.
“Assim, há necessidade de um esforço conjunto de diversos setores para que o processo de transição no sistema de produção de carnes seja o menos traumático e o mais benéfico para o país, que depende, e muito, de um setor que está na iminência de uma grande e profunda transformação”.
Desenvolvido nos anos de 2021 e 2022, os estudos basearam-se na opinião de especialistas brasileiros, norte-americanos e europeus, tanto da indústria convencional quanto da indústria de carnes alternativas. Os resultados do projeto foram divididos em três publicações, que estão nas revistas científicas internacionais Food Police (Science Direct); Humanities and social sciences communications (Grupo Nature) e Frontiers in Sustainable Food Systems.
As análises conduzidas pelo pesquisador Rodrigo Silva apontam que, à medida em que o processo de produção de carne se altera e se torna mais tecnológico, há uma maior preocupação em relação à perda de empregos. A partir da opinião de 136 especialistas do Brasil, Estados Unidos e Europa, conclui-se que há grande potencial para criação de novos empregos, altamente qualificados, com a produção de carne vegetal e de carne cultivada. O cenário mais positivo sobre a geração de empregos estaria ligado a etapas envolvendo processamento e distribuição.
Considerando um momento em que as carnes vegetais e cultivadas fossem parte significativa do mercado global de proteínas, haveria mais oportunidades de ingredientes para produtores agrícolas; de negócios, principalmente para startups e indústrias de alta tecnologia; maior grau de saudabilidade dos produtos de proteínas alternativas e melhoria das condições éticas e de bem-estar de animais.
De acordo com os especialistas, o grande desafio do mercado atual é o preço superior ao das carnes convencionais, considerado alto para carnes vegetais e impraticável, neste momento, no caso das carnes cultivadas. A expectativa, porém, é que com o desenvolvimento de novas tecnologias e autonomia nacional, os produtos tornem-se mais acessíveis.
Os estudos destacam que há importância do engajamento com a nova indústria das proteínas alternativas, que tende a potencializar as oportunidades. “Os desafios permanecem quase que inalterados para cenários de alto ou baixo engajamento, ou seja, o Brasil passará por desafios investindo ou não na nova indústria. Entretanto, as oportunidades variam consideravelmente, o que demostra que o país somente poderá tirar vantagem dos benefícios a partir de um alto grau de engajamento”.
Um dos exemplos apresentados pela docente da UFPR é que as carnes vegetais têm um alto custo porque a indústria importa boa parte da proteína vegetal utilizada como ingrediente.
“Um país como o Brasil importando ervilha é algo que merece atenção imediata, são necessárias políticas públicas para dar espaço aos nossos produtores e pesquisadores. Quantos de nossos feijões podem ter características similares ou até superiores? Quantos de nossos produtores podem produzir uma gama de ervilhas? Se o Brasil não investir, continuaremos pagando caro para importar insumos e equipamentos e deixando de criar oportunidades de trabalho e enriquecimento aos cidadãos brasileiros”, conclui Carla.
Este texto foi originalmente publicado por Ciência UFPR de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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