Um levantamento feito com 2.422 jovens frequentadores de “baladas” na cidade de São Paulo revelou que a prevalência de consumo abusivo de álcool nessa população é de 43,4% – índice bem superior ao observado na população brasileira como um todo: 18,4%.
No dia em que foram entrevistados, 30% dos “baladeiros” deixaram a casa noturna com um nível alcoólico que se enquadra no chamado binge drinking (ao menos quatro doses para mulheres e cinco para homens em um período aproximado de duas horas), um padrão de consumo de risco associado em diversos estudos a maior ocorrência de abuso sexual, tentativas de suicídio, sexo desprotegido, gravidez indesejada, infarto, overdose alcoólica, quedas e outros problemas de saúde.
A pesquisa foi coordenada por Zila Sanchez, professora do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina (EPM), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e contou com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
“Os resultados indicam que homens e mulheres se expõem a riscos diferentes quando saem intoxicados da balada. Enquanto eles estão mais sujeitos a fazer uso de drogas ilícitas e a dirigir embriagados, elas tendem a continuar bebendo e correm maior risco de overdose alcoólica”, disse Sanchez.
“Observamos ainda que, no caso das mulheres, beber em excesso triplica a possibilidade de sofrer abuso sexual nos estabelecimentos”, disse.
As entrevistas foram feitas com jovens entre 21 e 25 anos – 60% homens e 40% mulheres –, que aceitaram participar com a garantia de anonimato. Os participantes foram abordados em 31 estabelecimentos da capital paulista, situados em diferentes bairros e voltados a diferentes classes sociais e estilos musicais.
“Buscamos compor uma amostra representativa das baladas da cidade. Entramos em contato com os donos ou gerentes e pedimos autorização para a coleta de dados. Bordéis e casas de swing não foram incluídos, pois nosso foco foram os locais em que as pessoas vão para dançar”, disse Sanchez.
Cada estabelecimento foi visitado por uma equipe de oito pesquisadores uniformizados – seis dedicados a entrevistar voluntários e dois a observar fatores ambientais que poderiam influenciar o consumo de álcool, como temperatura, umidade, iluminação, pressão sonora, número de mesas e de pistas de dança e promoções para a venda de álcool.
A primeira entrevista foi feita ainda na fila de entrada. Os voluntários responderam a questões sobre o perfil sociodemográfico (idade, profissão, escolaridade, renda), a prática do “esquenta” pré-balada (local, tipo de bebida consumida, frequência, gastos), o padrão convencional de uso de álcool (durante a vida e recente) e a experimentação de outras drogas ao longo da vida. Em seguida, foram submetidos ao teste do bafômetro e ganharam uma pulseira numerada para identificação.
Ao final da balada, o teste do bafômetro foi repetido com os mesmos participantes, que também informaram a quantidade de álcool consumida e o dinheiro gasto no estabelecimento. No dia seguinte, os entrevistados receberam em seu e-mail um link para um novo questionário, no qual tinham de relatar o que fizeram após deixar a casa noturna.
Dos 1.222 voluntários que concluíram as três etapas de perguntas, 10% disseram não se lembrar do que fizeram depois de sair da balada. “Muitos disseram ter mantido relação sexual, mas não sabiam com quem. Ou ter acordado em um local estranho ou não se lembrar como haviam chegado em casa. Isso é bastante preocupante”, disse a pesquisadora.
De acordo com Sanchez, a venda de bebidas no sistema open bar – em que se paga um valor fixo e o consumo é liberado – foi o principal fator ambiental associado à intoxicação. “Isso aumentou não apenas o consumo de álcool, como já era esperado, mas também o de drogas ilícitas. Nas baladas open bar, chega a ser 12 vezes maior a probabilidade de haver consumo de ecstasy [metilenodioximetanfetamina], maconha, cocaína e até quetamina, um anestésico para cavalos com efeito alucinógeno”, contou.
A pressão sonora e o estilo musical também influenciaram o padrão de consumo de álcool dos frequentadores. De acordo com os resultados, quanto mais alto era o som ambiente, maior era a possibilidade de os baladeiros deixarem o estabelecimento intoxicados. Nas casas especializadas em música eletrônica ou em hip hop, foi mais prevalente o consumo de álcool associado ao de drogas ilícitas. Por outro lado, os casos de intoxicação alcoólica foram bem menos frequentes nas casas especializadas em forró ou zouk, locais onde o foco dos frequentadores parece ser, de fato, a dança.
Nas baladas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais), particularmente nos estabelecimentos voltados ao público masculino, chamou a atenção dos pesquisadores a maior prevalência no uso de quetamina e na prática de sexo sem proteção – mesmo havendo oferta gratuita de preservativo nos locais.
O levantamento mostrou ainda que, de maneira geral, o “esquenta” pré-balada é mais comum entre os homens, que chegaram à casa noturna com níveis alcoólicos mais elevados. Na saída, porém, as mulheres apresentaram dosagens equivalentes, o que indica um consumo feminino maior dentro do estabelecimento.
“Nós tínhamos, inicialmente, a hipótese de que o objetivo do esquenta era economizar, reduzindo a compra de bebida dentro da balada. Mas, na realidade, aqueles que chegaram ao estabelecimento com níveis elevados de álcool acabaram bebendo mais que os outros. Portanto, são indivíduos que têm um padrão de beber mais e, consequentemente, um gasto maior”, disse a pesquisadora.
Em paralelo ao levantamento epidemiológico, o grupo da Unifesp realizou um estudo qualitativo com aproximadamente 30 donos ou gerentes dos estabelecimentos incluídos na pesquisa, dados apresentados na tese de doutorado de Claudia Carlini, com bolsa da Fapesp.
Segundo Sanchez, muitos admitiram a venda de bebida adulterada como estratégia para aumentar o lucro, principalmente nos locais que adotam o modelo open bar. Alguns entrevistados relataram diminuir propositalmente a potência do ar condicionado com o intuito de elevar a temperatura ambiente e, assim, estimular o consumo de álcool pelos frequentadores. No entanto, os resultados da pesquisa epidemiológica não indicaram a temperatura como um fator que influencia o consumo.
Embora a maioria tenha afirmado não aprovar a venda ou uso de drogas ilícitas em seus estabelecimentos, admitiram não coibir a prática feita de forma clandestina por medo de espantar clientes e ter o lucro reduzido.
“Quando iniciamos a pesquisa, pensávamos em usar os dados para desenhar estratégias de intervenção que pudessem ser aplicadas nesses estabelecimentos para diminuir o consumo abusivo de álcool. Porém, o estudo qualitativo mostrou ser pouco viável esse tipo de medida. Os donos não estão abertos a intervenções que possam vir a comprometer seu faturamento mensal”, avaliou Sanchez.
Para a pesquisadora, somente políticas públicas poderiam amenizar o problema. Uma proposta seria combater a venda de álcool no modelo open bar e as demais promoções que tornem a bebida muito barata. “Outra medida interessante seria proibir a venda para pessoas que já apresentam sinais de intoxicação, como fala pastosa e olhos vermelhos. Isso já é feito em diversos países. A ideia não é extinguir o consumo e sim garantir que as pessoas deixem os estabelecimentos em condições mais seguras”, disse.
Os 1.222 baladeiros que responderam as três etapas de questionários foram convidados a participar de uma intervenção on-line inspirada em um modelo desenvolvido na Austrália para reduzir a prática de binge drinking entre universitários. Desses, 1.057 concordaram em participar da intervenção e 465 concluíram o estudo e foram acompanhados ao longo de 12 meses.
Os participantes foram divididos aleatoriamente em dois grupos. A metade considerada como grupo controle apenas respondeu a algumas questões sobre padrões de consumo de álcool. Os demais, além do questionário, receberam ao final uma tela com um conjunto de informações como o quanto a pessoa gastava por ano com bebidas, que tipo de coisas ela poderia comprar com esse dinheiro e em que faixa de risco está enquadrada (uso leve, moderado, pesado ou dependência).
“Essa tela de intervenção tem como objetivo mostrar ao indivíduo se ele está fora do padrão de consumo para sua faixa etária e fora de um perfil de consumo considerado seguro”, explicou a pesquisadora.
De acordo com Sanchez, os resultados desse estudo específico não foram claros. Entre os jovens que estavam nas faixas de consumo intenso, foi observada uma redução ao longo dos 12 meses tanto no grupo controle como no grupo que recebeu a intervenção. Já entre aqueles que bebiam pouco, houve aumento no consumo durante o período analisado – também nos dois grupos.
“Há várias hipóteses para explicar esse desfecho, entre elas a existência de um viés estatístico. Mas, do ponto de vista de saúde pública, os dados reforçam a ideia de que esse tipo de intervenção só deve ser feito com quem realmente bebe em excesso, caso contrário pode até ser prejudicial”, afirmou Sanchez.
A pesquisa teve início em 2012 e envolveu também a participação da mestranda Mariana Guedes Ribeiro Santos e dos bolsistas de iniciação científica Raissa Reis dos Santos, Karen Jennings Ribeiro, Miguel Rodolpho Benjamin e Yago Carvalho Baldin.
Mais informações sobre o projeto e seus resultados podem ser encontradas no site: www.baladacomciencia.com.br.
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