Por Dyepeson Martins em Agência Pública – Numa casa de madeira – com dois cômodos, móveis velhos e muitas goteiras – no município de Porto Grande, interior do Amapá, uma jovem de 23 anos, que nasceu e criou os três filhos na região, explica, com certo receio, que o garimpo próximo à residência sempre foi a única fonte de renda da família e, atualmente, também é cenário de preocupação com a saúde. “Tenho medo do que pode vir”, diz.
A identidade da jovem será preservada e, por isso, a chamaremos por um nome fictício: Ana. O medo de Ana está relacionado aos rumores de haver contaminação decorrente de produtos usados na exploração de ouro. A região foi uma das quatro da América Latina que participaram de uma pesquisa para analisar a exposição de mulheres ao mercúrio. O estudo – publicado em junho de 2021 pelas organizações International Pollutants Elimination Network (IPEN)e Biodiversity Research Institute (BRI), com o apoio do Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), que divulgou a pesquisa no Brasil em dezembro do ano passado – coletou amostras de fios de cabelo de 34 mulheres brasileiras e de outras 129 na Bolívia, Venezuela e Colômbia.
As mulheres que participaram do estudo têm entre 18 e 44 anos, idades classificadas como férteis. Em 58,8% dos casos analisados, identificou-se um nível de contaminação por mercúrio superior ao limite de 1 ppm (parte por milhão) estabelecido pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (USEPA) para a percepção dos efeitos negativos em fetos. Além disso, 66,8% excederam 0,58 ppm, nível no qual, segundo os pesquisadores, os efeitos negativos podem começar a ocorrer.
A região brasileira apresentou o segundo maior índice de contaminação, com o nível médio de 2,98 ppm. O mercúrio é um elemento líquido usado nos garimpos para ajudar na coleta e separação do ouro, por conta da facilidade de se unir a outros metais e formar amálgamas – ligas metálicas utilizadas na mineração.
A Agência Pública foi até a comunidade Vila Nova e investigou – com exclusividade – os impactos da contaminação para as mulheres.
Não é preciso andar muito na estreita rua do vilarejo para ouvir dúvidas sobre problemas de saúde comuns entre os moradores. Esposas de garimpeiros relataram às pesquisadoras a ocorrência frequente de abortos espontâneos, crianças com dificuldades respiratórias e aparecimento de doenças sem diagnósticos definidos.
“O mercúrio pode atingir o sistema nervoso, o sistema reprodutivo da mulher. Então muitas querem saber se o teor [de contaminação] delas está alto para terem, pelo menos, um horizonte para saber por onde começar a pesquisar doenças que elas apresentam e que, hoje, não têm explicação”, explicou Renata Ferreira, pesquisadora do Iepé e uma das responsáveis pela coleta de fios de cabelo e aplicação de questionários.
A preocupação com a saúde é recente. Antes, a angústia local voltava-se, principalmente, para os riscos estruturais da garimpagem. O tio de Ana, por exemplo, morreu soterrado por uma encosta que desabou durante a extração de ouro. Ana é neta, filha e esposa de garimpeiro e disse que voltou a pensar em trabalhar como agricultora para distanciar os filhos dos perigos do garimpo. “Depois que a gente soube [da contaminação], a nossa preocupação é que venha a acontecer outras doenças.”
Mas a falta de apoio e limitações financeiras, entre outras dificuldades, impedem mudanças imediatas na vida de Ana e das outras mulheres que residem no local. “É mais a falta de recurso, ideia e espaço a gente tem. Se eu pudesse eu escolheria isso [agricultura]. Tem gente que pensa que tem muito ouro, mas a gente tá aqui só pra conseguir o básico pra viver.”
Com o difícil acesso a sinais de telefone e internet, a notícia sobre a contaminação por mercúrio se espalhou na comunidade em forma de boato no segundo semestre de 2021. Na localidade, o nível de instrução dos moradores é baixo: a maioria não concluiu o ensino fundamental. Em uma das casas visitadas pela reportagem, apenas um dos cinco membros da família frequentou a escola.
Os problemas estruturais e sociais facilitaram a disseminação de fake news sobre pesquisas científicas e os danos do mercúrio à saúde. “Disseram que colocando filtro na torneira já resolve”, disse uma moradora em relação ao consumo de água possivelmente contaminada. “Também já ouvi que tem gente com azougue [mercúrio] no sangue, não sei se é verdade”, completou.
Além disso, a pobreza, o medo da fome e a falta de informação são fatores que levam muitos ali a defender a atividade garimpeira. Em julho de 2021, as atividades da Cooperativa dos Garimpeiros do Vale do Vila Nova (Coopgavin) deveriam ter sido paralisadas após a interdição do garimpo para a regularização estrutural das barragens de rejeitos, conforme parecer técnico da Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema). Contudo, a exploração mineral permanece ilegalmente e em menor escala por, justificam os garimpeiros, não haver outro meio de trabalho.
Um membro da Coopgavin nos disse que, após a interdição, parte da comunidade passou a se alimentar somente com os produtos oferecidos em cestas básicas doadas por empresas do município vizinho. “Vem arroz, feijão, essas coisas, mas falta a proteína.” Com isso, os moradores decidiram voltar ao garimpo, que gera de R$ 200 a R$ 500 semanais à cada família.
A regularização da área está condicionada a mudanças estruturais e não engloba requisitos sobre a redução ou eliminação do uso de metais líquidos. Em 2018, o Brasil promulgou a Convenção de Minamata sobre Mercúrio, que limita o uso do elemento no território nacional. A Pública entrou em contato com o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), mas não obteve respostas sobre as ações e restrições relacionadas ao controle do comércio e produção de mercúrio no Brasil.
Em regiões próximas à comunidade Vila Nova, há garimpos que nunca tiveram autorização de funcionamento e são administrados por grupos que geram tensão entre os garimpeiros licenciados e os que atuam clandestinamente. Quem mora no local tem receio de falar sobre os conflitos.
O vilarejo, assim como outras comunidades localizadas em áreas de garimpo, é visto como “terra sem lei” pelos moradores, em decorrência da falta de segurança pública e da dominação de pequenos grupos que controlam o comércio de ouro. “Acontece de tudo por aqui, tráfico, prostituição…”, contou uma pessoa à nossa equipe, apontando para um pequeno barraco onde, segundo ela, ocorreria a exploração sexual de jovens. Apesar disso, é muito presente um clima de solidariedade nas vizinhanças – as famílias ajudam umas às outras nos momentos de dificuldade financeira, com alimentação e transporte, por exemplo.
Esse contexto regional ajuda a explicar os desafios da pesquisa e por que os resultados ainda não foram entregues às mulheres, que participaram voluntariamente. A pesquisadora do Iepé, Renata Ferreira, contou que as participantes estavam curiosas e solícitas com o estudo, mas as mulheres teriam ficado com receio de passar informações após a chegada do presidente da cooperativa na comunidade. Não ficou claro se houve uma proibição explícita. “Com a presença dele, muitas se retraíram e não quiseram mais participar.”
Além disso, as pesquisadoras relataram ameaças de garimpeiros para impedir a continuação dos trabalhos. Uma caminhonete — o dono do veículo não foi identificado — chegou a ser incendiada para enviar uma “mensagem” sobre as consequências do prosseguimento do estudo. O “recado” teria sido repassado pelo frentista de um posto de gasolina de um município próximo também afetado pela mineração, Pedra Branca do Amapari.
“Informou a gente que seria melhor não entrar mais no garimpo. Eu perguntei por que não e ele: ‘Ah, vai ter um recado para vocês na estrada’. Continuamos na estrada e vimos uma caminhonete queimando”, contou a pesquisadora, destacando que esse foi o motivo para a não realização de um segundo dia de coleta. “Ele [frentista] havia nos dito que poderia acontecer conosco o que aconteceu com o outro carro. Decidimos retornar com as poucas amostras que a gente tinha.”
Com as ameaças, as pesquisadoras estão com medo de retornar ao local e entregar os resultados das análises. As mulheres que aceitaram doar amostras de cabelo teriam sido advertidas pelos maridos. Há também relatos de que a pesquisa foi tema de um sermão na única igrejinha evangélica construída na comunidade. Testemunhas relataram que o líder religioso orientou as fiéis a não colaborar com o estudo por representar um atentado ao “véu” – denominação utilizada pelo pastor para se referir ao cabelo das cristãs.
Mesmo com as limitações, a quantidade de amostras coletadas foi suficiente para evidenciar os efeitos indiretos do garimpo artesanal. Apontam um alto índice de contaminação em mulheres que não atuam na exploração de ouro, mas consomem regularmente peixes do rio Vila Nova. As consequências, no entanto, podem alcançar um número muito maior de regiões, a partir do comércio das espécies contaminadas, explicou o coordenador de gestão da informação do Iepé, Decio Yokota.
“A parte nefasta do mercúrio é essa. Não é só uma contaminação localizada das pessoas que estão trabalhando nisso, que moram ali. As pessoas estão sendo exploradas. As pessoas não têm consciência do que ocorre com a própria vida. Elas estão contaminando o meio ambiente com o uso desse elemento, e essa contaminação está indo para a população em geral através do pescado”, disse Yokota.
Pelo menos mil pessoas vivem na comunidade Vila Nova. Quando a reportagem chegou ao local, o fornecimento de energia elétrica estava interrompido havia mais de dois dias. No único posto de saúde, apenas uma técnica de enfermagem realizava, havia quase duas semanas, o atendimento dos moradores. “Ela faz trabalho de médico, enfermeiro, de tudo”, contou uma ribeirinha.
A localidade está situada no meio da selva amazônica, tem estreitos corredores de água e pântanos de floresta baixa e densa. Há reflexos nítidos da atividade de garimpo no cotidiano das famílias: maquinário pesado estacionado em frente a algumas residências, garimpeiros caminhando com roupas sujas de barro e segurando peneiras de madeira, por exemplo. As irregularidades no solo e os relevos resultantes de escavações podem ser percebidos em vários pontos, como na casa de uma mulher de 28 anos que tem de “quintal” uma imensa área utilizada na mineração.
Para ela, o garimpo é uma fonte de renda e insegurança à vida dos quatro filhos. Na esperança de evitar uma possível contaminação da família, o marido construiu um poço artesiano para não utilizar mais a água do rio. Um outro estudo já havia apontado a contaminação de peixes por mercúrio em comunidades tradicionais do Amapá. Os níveis mais altos de contaminação foram detectados nas espécies carnívoras mais consumidas pelos moradores: pirarucu, tucunaré e trairão. As coletas foram realizadas pelo Iepé, ICMBio, Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Amapá (Iepa) e WWF.
As medidas adotadas pelos moradores são insuficientes diante dos perigos do mercúrio, que, presente em resíduos também despejados no meio ambiente, evapora e se espalha através do solo para os cursos d’água. “O garimpo traz uma série de problemas, mas a saúde tem o impacto mais amplo; e as mulheres são as mais afetadas a longo prazo por conta da gravidez”, reforçou Yokota.
Além da comunidade Vila Nova, a pesquisa envolveu El Callao (Venezuela), onde, assim como no Brasil, o mercúrio é usado para a extração de ouro; Ínquiria (Colômbia), local em que o elemento deixou de ser utilizado há mais de cinco anos; e uma área ao redor do rio Beni, na Bolívia.
As bolivianas apresentaram os níveis mais preocupantes de contaminação, com 7,58 ppm. São indígenas que fazem parte dos povos Eyiyo Quibo e Portachuelo e não têm contato com a mineração nem são beneficiadas pela exploração de ouro, mas se alimentam de peixes do rio Beni. O relatório que resultou do estudo descreve que a área sofre com poluição da fauna e de recursos hídricos, em decorrência do funcionamento de dragas – grandes maquinários usados para a dragagem de ouro – itinerantes na região.
Nesse cenário, salienta o coordenador de gestão da informação do Iepé, interesses de grupos políticos, inclusive no Brasil, são empecilhos para a conscientização dos setores mais afetados por essa contaminação. “Os trabalhadores do garimpo são as maiores vítimas; os donos do garimpo é que se beneficiam com essa política. No fundo, tudo tem a ver com a cadeia econômica e quem tá se beneficiando lá em cima.”
Próximo à comunidade Vila Nova, ribeirinhos convivem com os efeitos imediatos da mineração industrial de ouro. Comunidades pesqueiras do município de Pedra Branca do Amapari, centro-oeste do Amapá, passaram a registrar a mortandade periódica de peixes na região. Um dos registros mais recentes, de novembro de 2021, evidencia mais de duas toneladas de peixes mortos, além de manchas na pele, dores de cabeça e mal-estar nos moradores.
A alteração da qualidade da água e a mortandade dos peixes foram atribuídas ao despejo de cianeto decorrente das operações da Mina Tucano, subsidiária da mineradora canadense a Great Panther Mining Limited, conforme um relatório técnico da Sema. O órgão aplicou três autos de infração ambiental à mineradora, somando multa de R$ 50 milhões.
A Pública teve acesso a relatos que mostram o desespero de ribeirinhos diante dos prejuízos para atividade pesqueira e saúde dos moradores, sem alternativas de renda e subsistência.
“Moro há 40 anos aqui e nunca tinha visto isso. Me deu vontade de chorar quando eu vi aquilo tudo [peixes mortos]. A gente não vê peixe e não se pode mais pescar e nem tomar banho no rio”, lamentou uma idosa de 70 anos, da comunidade de Xivete, a mais afetada pelos danos ambientais.
Em nota, a Great Panther – que atua também no México e Peru com a exploração de ouro e prata – informou estar investigando as relações dos danos ambientais com as operações da empresa e que preparou uma defesa formal contra a multa milionária, que tem prazo de pagamento estipulado até 30 de janeiro.
Entre os atingidos está um vereador do município. Ele disse ter presenciado imagens de uma barragem que teria se rompido e provocado a tragédia. “Está um lamaçal muito grande por onde a água desaguou e veio trazendo a mortandade de peixes até chegar ao rio Amapari.”
O Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) ingressou com denúncia no Ministério Público Federal (MPF), que a encaminhou ao Ministério Público (MP) do Amapá. O órgão estadual estava de recesso até o dia 6 de janeiro e ainda não apresentou um posicionamento oficial sobre o caso.
Os ribeirinhos atingidos, enquanto não há ressarcimento dos danos, estão sobrevivendo com doações de água mineral e alimentos, e permanecem com dúvidas sobre o futuro. “A gente não sabe dizer o que foi que jogaram aí pra cima, né [para gerar a contaminação]? A gente só sabe que tá passando aqui no nosso terreno”, relatou uma das pessoas afetadas. “A gente não pode mais pescar. A gente depende disso aqui.”
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