O aumento da temperatura global nas próximas décadas, relacionado às mudanças climáticas, poderá dificultar o crescimento do trigo em muitas regiões de clima temperado onde o cereal é cultivado hoje. Dessa forma, a matéria-prima de um dos alimentos mais consumidos no mundo – o pão – poderá tornar-se mais cara e escassa.
Uma cultura agrícola com potencial de substituir parcialmente a farinha de trigo na composição do pão em países da América Latina e da África, por exemplo, é a fécula de mandioca. As propriedades de cozimento do produto, contudo, são mais pobres em comparação com as da farinha de trigo, afirmam especialistas na área.
“A farinha de mandioca não é tão boa como a de trigo para a produção de pão”, disse Leif Horsfelt Skibsted, professor do Departamento de Ciência dos Alimentos da University of Copenhagen, da Dinamarca.
“O maior teor de amido e menor proporção de proteína, inclusive de glúten, e a maior absorção de água pela fécula de mandioca provavelmente são os fatores responsáveis para que ela apresente propriedades de cozimento mais pobres em comparação com as da farinha de trigo. Isso representa um grande desafio para utilizá-la na fabricação de pão”, afirmou.
A fim de superar essa limitação, o pesquisador, em colaboração com colegas da Aarhus University e das empresas dinamarquesas Easy Foods e Novozymes, realizou nos últimos anos uma série de estudos para melhorar as propriedades de cozimento da fécula de mandioca na produção de pão por meio do uso de enzimas.
Os estudos foram realizados no âmbito do projeto “Pão e carne para o futuro”, apoiado pela Fapesp e pelo Innovation Fund Denmark por meio de um acordo mantido pelas instituições.
Alguns resultados dos estudos foram apresentados durante um evento para celebração dos resultados da cooperação entre a Fapesp e agências congêneres da Dinamarca, realizado no final de agosto, na sede da Fundação, na mesma data em que foi assinado um acordo com a Danish Agency for Science and Higher Education.
“O objetivo do projeto foi analisar se a fécula de mandioca poderia ser uma alternativa para produção de pão como um alimento estável”, disse Skibsted em sua apresentação no evento.
Os pesquisadores avaliaram inicialmente a proporção em que a fécula de mandioca poderia substituir a farinha de trigo na composição de um pão, sem afetar suas propriedades sensoriais, como textura, aroma, sabor e cor, em comparação com um pão feito apenas com farinha de trigo.
Os resultados das análises, detalhadas em um artigo publicado na revista Food Science and Technology, indicaram que, dependendo do tipo, a fécula de mandioca poderia substituir entre 20% e 30% da farinha de trigo na composição do pão sem alterar significativamente suas características sensoriais e sem comprometer o crescimento da massa na comparação com o pão de trigo.
“Acima do limite de 30%, a aparência, a textura e o sabor do pão feito a partir de uma mistura de farinha de trigo e de fécula de mandioca começam a apresentar diferenças em relação a um pão de trigo”, disse Skibsted.
A fécula de mandioca, entretanto, em razão de sua propriedade de cozimento mais baixa, afetou características da massa, apresentando maior viscosidade e retrogradação (cristalização das moléculas de amido) após o resfriamento.
Isso pode estar relacionado, além da falta de glúten, também às diferenças na composição da fração de amido da fécula de mandioca em comparação com a farinha de trigo e a uma atividade limitada da enzima amilase na fécula de mandioca, explicou Skibsted.
A fim de avaliar se seria possível diminuir esses efeitos prejudiciais da fécula de mandioca, os pesquisadores testaram se diferentes tipos de enzimas utilizadas hoje na indústria melhorariam as características sensoriais e alterariam as características estruturais de pães feitos com até 30% de fécula de mandioca.
Adicionadas hoje às receitas de pão, com o objetivo de melhorar o volume, a cor da crosta e o frescor, entre outras características, as enzimas de panificação até então só tinham sido testadas em massas de pão de trigo.
Enzimas, como as alfa-amilases, que fragmentam polissacarídeos, como os amidos, ajudam a aumentar o volume do pão usando a mesma quantidade de ingredientes e a melhorar a crosta, conferindo ao pão boa cor.
Já as amilases podem degradar o amido e produzir dextrinas pequenas (carboidratos de baixo peso molecular) para que a levedura atue.
As xilanases, por sua vez, podem melhorar o volume do pão ao conferir solubilidade à hemicelulose (polissacarídeo), que é insolúvel em água. Com isso, é possível ligar a água à massa, diminuindo sua firmeza, aumentando o volume e resultando em migalhas mais finas e mais uniformes, explicou Skibsted.
“Nosso objetivo foi testar diferentes enzimas para tentar identificar a melhor solução para a produção de pão de mandioca e trigo”, disse o pesquisador.
Em um primeiro estudo, os pesquisadores testaram os efeitos das enzimas alfa-amilase fúngica e maltogênica, xilanase, lipase, lacase (polifenoloxidase) e glicose oxidase em um pão de trigo com 30% de polvilho azedo que, sem a utilização de enzimas, apresenta menor volume, maior textura e poros menores no miolo.
Os resultados do estudo, publicado no European Food Research and Technology, indicaram que as enzimas glicose oxidase não tiveram nenhum efeito na qualidade do pão.
Já as alfa-amilases melhoraram claramente a estrutura do pão, avaliada por análise sensorial e por métodos físicos. Por sua vez, as lipases aumentaram o volume do pão em razão do gás carbônico ter sido mais bem retido na massa. Já as enzimas lacases tornaram o pão mais macio.
Os melhores resultados, contudo, foram obtidos com a aplicação de enzimas xilanases. “Elas melhoraram a estrutura e a textura do pão ao tornar a massa mais maleável”, disse Skibsted.
Em outro estudo realizado posteriormente e também publicado no European Food Research and Technology, os pesquisadores avaliaram os efeitos individuais e combinados da adição de água com enzimas xilanases e de água com lacases na qualidade de um pão composto por 70% de farinha de trigo e 30% de polvilho.
Os resultados das análises indicaram que um aumento da adição de água combinado com xilanase resultou em um pão com maior volume. “O pão também ficou mais macio e sua estrutura tornou-se mais uniforme”, disse Skibsted.
Noutro estudo publicado na mesma revista, os pesquisadores avaliaram se componentes da farinha de trigo poderiam atuar como ativador das enzimas para melhorar as características de um pão com substituição parcial da farinha de trigo por fécula de mandioca. E constataram que um elemento ainda desconhecido do trigo, resistente ao calor, aumenta a atividade das enzimas xilanases.
“Essa observação abre a perspectiva de empregar de forma mais racional as enzimas para melhorar a qualidade do pão, especialmente quando se utiliza combinação de fontes de amido, como é o caso de misturas de farinha de trigo e fécula de mandioca”, avaliou.
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