Conversão de floresta em pasto reduz o movimento das aves entre as diferentes paisagens

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Estudo mostrou que os serviços ecossistêmicos oferecidos pelas aves ao meio ambiente são prejudicados, tais como polinização, controle de pragas e remoção de carniça

Florestas convertidas em pastagem reduzem drasticamente o movimento das aves entre esses habitats. Esse é um dos resultados de um artigo publicado em dezembro de 2020 na revista científica Biological Conservation. O trabalho é fruto do doutorado da ornitóloga Andrea Larissa Boesing, realizado no Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências (IB) da USP.

A pesquisa mostra ainda que a maioria das aves (63%) que se deslocam das florestas para os pastos são generalistas de habitat (aquelas que buscam alimento em ambas as paisagens, tais como beija-flor, tico-tico, sabiá-laranjeira e bem-te-vi ) e que as áreas agrícolas funcionam como uma barreira para o movimento de espécies associadas à floresta (tangará-dançador e fruxu). Além disso, paisagens dominadas por pastos são muito desfavoráveis à conservação de espécies da floresta, mas podem manter os serviços ecossistêmicos do transbordamento para espécies generalistas. “Usamos aves como ferramenta de estudo, mas é bem possível que isso se repita para outros grupos”, sugere Larissa. “Por oferecerem pouco recurso alimentar, as pastagens atuam como uma barreira para esses bichos, não como um conector.”

Grande parte do desmatamento nos trópicos deve-se à conversão de floresta para áreas dedicadas à pecuária. Estudos mostram que as pastagens de gado cobrem 17% de todo o território brasileiro, sendo 7% delas altamente degradadas.

O deslocamento dessas aves é conhecido como spillover (transbordamento, em português), termo que tem ganho bastante destaque desde 2019, quando surgiram os primeiros casos de covid-19 no mundo. Especificamente para o SARS-CoV-2, a principal teoria é que o vírus tenha saltado de morcegos para humanos devido ao maior contato da população com animais silvestres.

Já o transbordamento estudado por Andréa Boesing, do Instituto de Biociências (IB) da USP, teria um efeito positivo ao meio ambiente. “As aves podem ser provedoras de serviços ecossistêmicos, tais como o controle de pragas, a polinização e a remoção de carniça”, explica. “Quis avaliar como diferentes paisagens influenciam essas funções.”

Foram selecionados 51 pontos de amostragem (com dois quilômetros de raio cada uma) na região da Serra da Cantareira, próximo à divisa com Minas Gerais. As áreas eram compostas por fragmentos de florestas e pastagens. “A ideia era estudar, principalmente, se esses animais teriam algum potencial de atuar como predadores de inimigos naturais e, ainda, avaliar qual estratégia eles utilizam para conseguir alimento”, explica a pesquisadora.

Para coletar dados mais precisos sobre as comunidades de aves, os cientistas instalaram redes de neblina (ver fotos abaixo) em cada local de pesquisa e monitoraram as áreas por dois dias consecutivos. Quando capturadas, os animais eram identificados e uma pequena parte da pena da cauda, retirada. O material seguia, então, para o Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da USP, em Piracicaba, para realizar a análise isotópica de carbono estável. “No caso desse estudo, a metodologia permitiu identificar com muita precisão em qual matriz as aves obtinham sua dieta”, relata Thiago Simon Marques, biólogo e responsável pelas análises isotópicas.

Integrando metodologias

Para realizar a pesquisa, Larissa optou por aplicar duas abordagens diferentes, o que não é muito comum em estudos desse tipo. A primeira foi a colocação de uma linha composta de sete redes de neblina (2 metros (m) de comprimento, 3 m de altura e 29 milímetros (mm) de malha) na borda da mata, uma 150 metros depois (no meio da pastagem) e uma terceira, a, no máximo, 500 metros da segunda.

No passado, a região escolhida, situada no nordeste do Estado de São Paulo, era coberta pela Mata Atlântica. Depois de cinco séculos de ocupação humana, grande parte da floresta nativa não existe mais. A matriz agrícola predominante no local atualmente é composta de pastagens ativas (pecuária) e não manejadas (sem aporte de nutrientes). O período escolhido foi a estação pós-reprodutiva (entre fevereiro e junho) e na estação seca, para permitir que todas as matrizes tivessem condições climáticas similares.

Paulo Ricardo Siqueira, ornitólogo da Universidade Federal de Minas Gerais e participante da coleta no campo, conta que a instalação dessas redes de náilon era trabalhosa. “A região é cheia de morros. Acordávamos às 4 horas da manhã para colocá-las antes do amanhecer e, depois, conferíamos os pontos a cada 20 minutos”, diz.

Todas as aves capturadas foram identificadas de acordo com sua associação de habitat (florestas, de área aberta, generalistas) e delas eram retiradas amostras de fezes e do regurgito. Siqueira relata ainda que o grupo media a largura das asas, o tamanho corporal e o peso de cada uma. “Essas redes não machucavam os animais porque, ao serem interceptados, elas os envolvem com um bolsão”, explica. “Por isso, a importância de visitarmos os locais de coleta a cada 20 minutos, para não causarmos nenhum dano às aves.”

Integrando metodologias

Para finalizar, os cientistas recolheram uma amostra da pena da cauda dos pássaros e enviaram o material para o Laboratório de Isótopos Estáveis do Cena, em Piracicaba.

As análises isotópicas são aplicadas em muitas áreas, desde antropologia forense até meio ambiente, e medem a quantidade de carbono gerado pelo ciclo fotossintético – processo químico realizado para converter a luz solar em energia – das plantas. Como explica Thiago Marques, as árvores das florestas e as gramíneas da pastagem possuem valores de carbono diferentes, o que possibilita uma análise muito mais precisa.

No caso do estudo conduzido por Larissa, esse processo teve como objetivo não só o de caracterizar a origem da dieta, mas revelar a proporção de cada alimento consumido. “Conseguimos saber com muito mais exatidão se o bicho estava comendo dentro da floresta, no pasto, ou ainda se consumiam em ambas as paisagens “, explica Larissa.

Resultados

No total, foram capturados 266 indivíduos de 81 espécies de pássaros, a maioria deles generalistas de habitat (65%), seguido por espécies que vivem em áreas abertas (20%) e associadas à floresta (17%). As espécies de floresta raramente foram capturadas em matrizes de pastagem, reforçando a ideia de que esses animais dificilmente cruzam lacunas maiores de pastagens. Já as espécies de áreas abertas tendem a evitar as bordas e ser mais comuns em pastagens.

“Já as espécies generalistas, que nós consideramos as mais plásticas, também não comem em pastagens”, alerta a ornitóloga. “O spillover positivo, portanto, é muito baixo, e só acontece onde os fragmentos de floresta e pasto estão muito próximos.”

Larissa reforça ainda que as generalistas de habitat podem ser as principais promotoras de serviços ecossistêmicos em ambientes drásticos como as pastagens. “Elas conseguem se movimentar, atravessar essas barreiras, e são candidatas a controlar pragas e polinizar outros ambientes. Por isso a importância de conservarmos essas espécies.”

Algumas dessas espécies, como os arabacus, ocorrem menos em áreas com fragmentos menores e isolados de floresta, segundo Siqueira. “Eles necessitam das árvores para alimentação e forrageiam em espiral, de baixo para cima no tronco”, diz o ornitólogo. “Já os de grande porte, como o jacu, sofrem bastante com a degradação e perda de habitat.”

Para Marques, o trabalho pode ajudar a pensar em estratégias de manejo da cultura agrícola, por exemplo. “Algumas vezes encontrei tamanduá-bandeira atravessando plantações de eucalipto e sempre me perguntei se ele estava ali atrás de formiga ou, simplesmente, para acessar o próximo fragmento de mata. Se eles colocarem isca de formiga, de saúva, o tamanduá pode ingerir e morrer”, alerta.

Atualmente Larissa está na Alemanha e continua trabalhando na mesma linha de pesquisa. “Quando há investimento, temos a possibilidades de integrar diferentes métodos para tentar ir mais a fundo nos processos e contribuir com a ciência brasileira”, finaliza.

Mais informações: e-mail lari.boesing@gmail.com, com Andréa Larissa Boesing



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