Por Sibélia Zanon em Mongabay —
Pitangueiras, limoeiros, aceroleiras, ingás, helicônias e bromélias se juntam, formando um corredor para acolher as 23 espécies de beija-flores dentre as mais de 160 variedades de pássaros que voam livremente pelo Jardim dos Beija-Flores. Inaugurado em 2017 dentro da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Pedra D’Antas, em Pernambuco, o jardim já recebeu mais de 2.600 pessoas.
A criação do jardim, a gestão dos 362 hectares da RPPN Pedra D’Antas e a restauração florestal são algumas das ações que fazem parte do Projeto Mata Atlântica do Nordeste, da Save Brasil, que tem como objetivo conservar e aumentar a conectividade de fragmentos remanescentes de Mata Atlântica da Paisagem Serra do Urubu-Murici, localizada entre Pernambuco e Alagoas.
Entre as aves que frequentam os 700 metros quadrados do jardim estão o beija-flor-de-costas-violetas (Thalurania watertonii), espécie endêmica da Mata Atlântica considerada em perigo na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês), e a saíra-pintor (Tangara fastuosa), ave de cores chamativas, endêmica da zona da Mata Atlântica ao norte do rio São Francisco e classificada como vulnerável.
Curiosamente, o jardim destinado a atrair os alados e a servir de espaço educativo contra a cultura do engaiolamento — ainda muito forte na região — viceja no mesmo local ocupado antigamente pela casa-grande do então Engenho Pedra D’anta, no período do Brasil colonial. “A gente sai de uma história de exploração, não só ambiental, mas humana, e a gente chega num reduto de vida”, diz Bárbara Cavalcante, coordenadora do Projeto Mata Atlântica do Nordeste.
Na região Nordeste, ao norte do rio São Francisco — rio que consiste em barreira geográfica instransponível para algumas espécies de aves — fica a porção mais degradada do bioma Mata Atlântica. O chamado Centro de Endemismo de Pernambuco (CEP), que abrange as florestas costeiras dos estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, possui apenas 5% de sua cobertura florestal original e abriga espécies endêmicas ameaçadas de extinção.
Estima-se que, na área, 70 mil hectares de mata estejam preservados. Trata-se, porém, de fragmentos florestais dispersos numa paisagem urbanizada com predominante uso do solo para cana-de-açúcar e pasto. Poucos fragmentos estão efetivamente protegidos e muitos encontram-se dentro de propriedades privadas, gerando ainda maior pressão sobre as espécies endêmicas, que têm sua distribuição geográfica restrita, como é o caso da choquinha-de-alagoas (Myrmotherula snowi). Segundo monitoramento da Save, essa espécie tem sua última população com menos de dez indivíduos vivendo dentro da Estação Ecológica (Esec) de Murici.
De acordo com a BirdLife International, responsável pela sinalização das Áreas Importantes para a Conservação das Aves e da Biodiversidade (IBAs, na sigla em inglês), o Brasil possui 234 regiões prioritárias. Duas delas, a Serra do Urubu, em Pernambuco, e Murici, em Alagoas, estão localizadas no CEP e abrigam 7 mil hectares de florestas e 343 espécies de aves, sendo 18 ameaçadas de extinção. Dentre elas, 16 são espécies endêmicas da Mata Atlântica e cinco ocorrem apenas na região do CEP.
Os dois fragmentos, Serra do Urubu e Murici, são núcleos do Projeto Mata Atlântica do Nordeste, que atua na região desde o ano 2000. Monitoramentos realizados na Serra do Urubu há 17 anos apontam para o aumento da diversidade de aves. “O número total de espécies de aves registradas saltou de 105, no primeiro ano de monitoramento, para 287, no último monitoramento realizado em dezembro do ano passado”, explica Bárbara.
Ainda que o resultado seja animador, o cenário é frágil. Estudo publicado na revista científica Frontiers in Ecology and Evolution afirma que, nas últimas décadas, sete espécies de aves foram apontadas como provavelmente extintas na Mata Atlântica, sendo que quatro delas tinham como habitat o CEP.
Para além da ameaça que paira sobre a choquinha-de-alagoas, em 2019 o limpa-folha-do-nordeste (Phylidor novaesi) foi declarado extinto — desde 2011 a Save já não observava a ave em seus monitoramentos. Também em 2019, o gritador-do-nordeste (Cichlocolaptes mazarbarnetti), descrito em 2014 como nova espécie endêmica da região, foi declarado extinto. O caburé-de-pernambuco (Glaucidium mooreorum) e o mutum-do-nordeste (Pauxi mitu ou Mitu mitu), também da região, juntam-se à lista dos possivelmente extintos. O último sobrevive em cativeiro com tentativas de reintrodução na natureza.
Para aumentar as chances das espécies que têm a distribuição geográfica restrita, o Projeto Mata Atlântica do Nordeste incentiva a restauração florestal, buscando conectar fragmentos isolados de mata. “Até 2023 temos a meta de implementar 70 hectares de floresta. Até agora, implementamos em oito sítios, entre Pernambuco e Alagoas, a soma de 12,9 hectares. E até julho deste ano serão implementados, pelo menos, 50 hectares”, afirma Bárbara.
Considerando que grande parte dos fragmentos de Mata Atlântica estão nas mãos de pessoas físicas, o projeto também incentiva a criação de RPPNs. “Aqui em Lagoa dos Gatos (Pernambuco) a gente vai ter uma RPPN de 3 hectares”, conta Bárbara, referindo-se à participação de um proprietário rural que também aderiu à restauração florestal. “Eles vão restaurar uma área de pasto e vão proteger esse fragmento de 3 hectares.”
“Isso aqui é uma vitrine. Eu mostro pro pessoal, sempre levo eles pra dentro do projeto”, conta João. “Não é só plantar árvore, mas também cuidar e ver os pássaros voltando. Ver as abelhas polinizando. Isso tudo é benefício.”
João Evangelista de Lima é proprietário de um sítio de 40 hectares, herança de família. Depois de 20 anos morando em São Paulo, João fugiu do trânsito e voltou para a mata de Alagoas, próxima à Esec Murici. “O vale é cheio de águas, nascentes, rios, temos uma faixa de Mata Atlântica que faz parte da Esec Murici. É um vale, a coisa mais linda que eu já vi.”
Atualmente, 30 hectares de seu sítio são destinados ao plantio de banana prata. Em áreas menores crescem coco, laranja e banana-da-terra.
“O pessoal aqui estava desmatando muito, acabando com nosso resto de Mata Atlântica. Seria preciso fazer algo diferenciado pra mostrar que a gente também precisa plantar, reflorestar”, diz. Há 3 anos, João começou o plantio em sistema agroflorestal (SAF) em 3 mil metros quadrados do sítio, introduzindo cítricos, mangueiras, cajueiros, ingás, açaizeiros, cedros e mognos entre feijões e espécies adubadeiras.
“Já temos bastante abelha aqui, abelhas diferenciadas que eu nunca tinha visto na região. Jataí tem bastante, tubiba também. Apareceu bastante abelha sem ferrão”, diz o agricultor, que fez cursos de piscicultor e apicultor e tem a intenção de transformar seu espaço futuramente em agroturismo. “Pássaros, temos bastante que estão visitando aqui nossa SAF: sabiá-laranjeira, sanhaço-azul e -cinzento, beija-flores, saíra-pintor e -sete-cores. Nossa, tá chegando bastante”.
A SAF no sítio de João faz parte da restauração florestal apoiada pela Save e, no início, recebeu mudas, mão-de-obra e suporte técnico. Outras propriedades privadas têm servido também como vitrines ou unidades demonstrativas, exibindo diferentes técnicas de restauração. Toda área reflorestada passa a ter um monitoramento participativo para verificar como a comunidade de aves se comporta nesses ambientes.
“A ideia de ser uma vitrine é que a gente mostre formas possíveis de produzir alimento e gerar renda”, explica Bárbara. “A gente tem adotado o termo ‘agrofloresta amigável às aves’ porque queremos incentivar o estabelecimento de agroflorestas que também sirvam de abrigo e ofereçam alimento aos pássaros.”
O entorno da Esec Murici, onde fica o sítio de João, é uma importante área por impactar diretamente a Estação Ecológica. “Estrategicamente falando, é importante que a gente tenha nessa área de amortecimento atividades compatíves, amigáveis à biodiversidade”, avalia Bárbara. “Assim, a gente garante um cinturão de proteção à Esec”.
Apesar da área de 6 mil hectares ter sido reconhecida em 2001 pelo governo federal como Estação Ecológica de Murici, falta ainda a efetiva implementação e regularização fundiária. “Esse é um dos gargalos das Unidades de Conservação no Brasil. Cria-se a unidade, mas não se implementa de fato. A Esec Murici completou 20 anos no ano passado e ainda não está com a regularização fundiária feita. Tem muita área de pasto com grandes propriedades lá dentro”, comenta Bárbara.
Ao lado da restauração, de articulações com o poder público e de pesquisas científicas, o Projeto Mata Atlântica do Nordeste promove o ecoturismo e desenvolve ações de educação ambiental. A criação do Jardim dos Beija-Flores, a gestão da RPPN Pedra D’Antas, atividades de observação de aves, trabalhos de educação ambiental em escolas e a capacitação de monitores para o turismo estão entre as iniciativas que buscam o engajamento da comunidade local.
“Em cidade do interior é comum as pessoas criarem aves presas. Até hoje nós vemos, mas eu acho que isso tá mudando”, conta Allan. “De tanto conviver, você se adapta àquela coisa. Mas, depois de conhecer e ter o prazer de ver aquela ave livre, ouvir ela… é bonito ela no seu habitat natural. Eu acho que ninguém queria ficar preso.”
José Allanderlanio Rodrigues é pintor e fotografa aves nos finais de semana. Ele criava aves em gaiolas até que conheceu Zezito, ou José Vicente, guarda-parque da RPPN Pedra D’Antas. “Zezito me mostrou outra forma de observar, de apreciar o bicho solto como deve ser”, conta Allan.
Numa entrega voluntária de animais silvestres, Allan se desfez das aves engaioladas e iniciou uma nova atividade: passou a fotografar pássaros livres na natureza. “Não é só um hobby. Trouxe pra mim uma expectativa de vida muito melhor do que eu tinha antes porque é realmente viver, né?”, conta. “Você tem aquela rotina de trabalho a semana inteira. Mas, quando você chega no mato no final de semana você desestressa, traz paz interior. É isso!”
Allan participou recentemente do Curso de Formação de Condutores Locais da Serra do Urubu, que forma condutores credenciados pela Save para guiar visitantes na Reserva Pedra D’Antas, fomentando o turismo e a conservação da biodiversidade. O novo condutor sente orgulho por já ter convencido amigos a deixarem de criar aves presas.
Bárbara conta que a cultura do engaiolamento ainda é muito forte na região e acaba sendo um vetor de ameaça para as espécies endêmicas. “Sabe o saíra-pintor, aquele maravilhoso? É uma das espécies mais traficadas aqui. O pessoal pega o bicho e vai vender nas grandes feiras”.
Com o engajamento da comunidade, o cenário vai mudando. “Conservação é sobre pessoas também”, argumenta a bióloga que, seguindo o lema do romancista paraibano Ariano Suassuna, gosta de se definir como uma “realista esperançosa”.
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