A hibridização entre felinos selvagens e gatos domésticos (Felis catus) vem ameaçando populações já vulneráveis, além de alterar a aparência, o comportamento e os perfis genéticos, criando dilemas de conservação sobre a melhor forma de definir e proteger uma espécie
Por Elizabeth Devitt em Mongabay |
- Na Escócia, a hibridização causou a extinção funcional de uma subpopulação de gato-selvagem-europeu (Felis silvestris silvestris), mas cientistas e conservacionistas estão trabalhando em conjunto para reconstruir a população silvestre com filhotes criados em cativeiro.
- Para proteger o gato-selvagem-africano (Felis silvestris cafra) na África do Sul, cientistas estão esterilizando gatos domésticos e perto dos limites do Parque Nacional Kruger.
- No sul do Brasil, o desafio é conter o cruzamento entre duas espécies silvestres de felinos: o gato-do-mato-grande (Leopardus geoffroyi) e o gato-do-mato-pequeno (Leopardus guttulus).
Embora não recebam tanta atenção da mídia e dos projetos de conservação, pequenos felinos também sofrem todo tipo de ameaça à sua sobrevivência. Assim como leões, tigres e leopardos, 33 espécies de pequenos gatos selvagens espalhados pelos cinco continentes lutam contra a caça e a perda de habitat. Alguns, porém, têm um desafio a mais: resistir à hibridização com o Felis catus, o gato doméstico.
Na Europa e na África do Sul, o cruzamento de pequenos felinos selvagens com gatos domésticos vem alterando a composição genética das espécies silvestres e criando dilemas de conservação. No sul do Brasil, é o cruzamento de duas espécies selvagens que vem desafiando os pesquisadores.
Para preservar a integridade genética desses felinos selvagens, os conservacionistas tem adotado diversas estratégias, entre elas introduzir filhotes criados em cativeiro na natureza e esterilizar gatos domésticos. Fazer isso é importante não apenas para espécies individuais, mas também para proteger os ecossistemas da instabilidade. “Os pequenos felinos selvagens são especialistas em habitat e suas perdas podem ter grandes impactos”, diz Wai-Ming Wong, diretor do programa de pequenos felinos da ONG Panthera. “Dada a atual crise de biodiversidade, é realmente importante manter o equilíbrio do ecossistema.”
Os híbridos sempre representaram um dilema para os conservacionistas. A mistura de genes “domésticos” com o DNA de espécies selvagens por meio de cruzamentos – um processo conhecido como introgressão – pode aumentar a diversidade genética e até mesmo melhorar a capacidade de uma espécie de prevalecer em um cenário em transformação. No entanto, o patrimônio genético das espécies silvestres pode ser perdido por conta da mistura.
Os felinos híbridos, por exemplo, podem apresentar comportamentos diferentes dos felinos selvagens, alterar o uso do habitat ou ser mais suscetíveis a doenças. Esses gatos cruzados também podem não atender aos critérios genéticos e taxonômicos específicos que formam a base das proteções legais para gatos selvagens.
Recuperando o legado genético dos gatos selvagens da Escócia
“A hibridização é uma questão complicada”, diz Helen Senn, chefe de conservação da Real Sociedade Zoológica da Escócia, em Edimburgo, e líder de projeto da ONG Saving Wildcats. Esse é especialmente o caso de uma subpopulação de gato-selvagem-europeu (Felis silvestris) que era comum na Escócia, mas que foi duramente impactada pela hibridização entre animais selvagens e domésticos.
Atualmente, estudos mostram que poucos dos felinos silvestres remanescentes na natureza escocesa apresentam marcadores genéticos e traços físicos distintos suficientes para serem definidos como uma espécie própria, conhecida em inglês como Highland tiger, “tigre das Terras Altas”. Embora os gatos domésticos provavelmente tenham sido introduzidos no Reino Unido na época romana, os estudos do genoma completo apontam para a hibridização como “um fenômeno recente que provavelmente só aconteceu nos últimos 60 anos ou mais”, diz Senn.
Esse é um ponto importante para os conservacionistas, “porque isso nos diz que algo mudou para gerar uma ruptura entre essas duas espécies”, explica ela. Como a perda de habitat e a perseguição aos felinos selvagens da Escócia aumentaram nas últimas décadas, a população cada vez menor de Felis silvestris provavelmente acasalou com o gato doméstico mais disponível, Felis catus.
“Então, as coisas rapidamente se transformaram no que chamamos de ‘enxame híbrido’”, diz Senn. “Isso significa que tudo está muito misturado [geneticamente].” Em outros países europeus, as análises revelam que o cruzamento com felinos domésticos afeta de 3 a 21% das populações de gatos-selvagens. Mas, na Escócia, todos os gatos-selvagens das amostras do estudo mostram evidências de hibridização.
Hoje, Senn lidera um projeto encarregado de reconstruir a população de gatos selvagens da Escócia. O plano é reintroduzir felinos silvestres em áreas remotas onde a ONG ainda pode monitorar o bem-estar das populações mais isoladas.
Nos próximos três anos, Senn e seus parceiros querem devolver à natureza anualmente cerca de 20 filhotes de gatos-selvagens-europeus – resultantes do cruzamento de felinos de cativeiro e silvestres – que tenham obtido pelo menos 75% de pontuação em uma combinação de marcas genéticas específicas e características de pelagem. “A genética é muito importante para nos ajudar a resolver a taxonomia e entender o que estamos tentando conservar”, diz Senn.
No início deste ano, o primeiro grupo de filhotes de gatos-selvagens teve idade suficiente para se mudar para recintos individuais no Highland Wildlife Park, área de conservação no norte da Escócia, onde podem continuar a amadurecer e desenvolver suas habilidades de sobrevivência. Eles devem estar prontos para serem soltos ainda este ano.
Após a soltura, os gatos jovens serão rastreados por meio de dispositivos fotográficos e coleiras com GPS. Senn também quer monitorar a genética das gerações subsequentes por meio de amostras fecais, armadilhas para pelos e imagens de câmeras. A cientista também comparará os perfis de DNA dos gato- selvagens com amostras de felinos domésticos selvagens que perambulam pela mesma área.
Estudos sobre a recuperação dos gatos-selvagens-europeus nos Alpes suíços modelaram o tamanho das populações necessárias para preservar o legado genético da espécie, mas Senn não sabe exatamente quantos gatos precisam ser reintroduzidos para evitar que o felino escocês seja dominado pelo DNA do gato doméstico.
“Queremos ver uma população de gatos-selvagens que estejam basicamente em forma, com números saudáveis, que estejam se reproduzindo entre si e não com gatos domésticos”, diz ela. “Se conseguirmos fazer isso, estaremos sendo vitoriosos.”
Combatendo a hibridização felina na África do Sul
A hibridização também é uma preocupação na África do Sul, onde vive o gato-selvagem-africano (Felis silvestris cafra). Embora um estudo da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN) de 2016 tenha constatado que o cruzamento dessa espéciecom gatos domésticos tenha sido relativamente baixo em todo o cenário africano, a ameaça ao felino silvestre tende a ser maior em partes da África do Sul onde as populações humanas (e o número de gatos domésticos) são maiores, especialmente perto dos limites dos parques nacionais.
Uma das principais recomendações da pesquisa da IUCN é a castração ativa de gatos domésticos nessas áreas limítrofes para criar zonas de amortecimento que reduzam a reprodução cruzada, diz Louise Holton, presidente da Alley Cat Rescue (ACR), uma organização sem fins lucrativos com sede nos EUA. Os veterinários locais já estavam adotando essa abordagem, mas o financiamento da ACR ajudou a aumentar a capacidade de captura, esterilização e devolução em torno do Parque Nacional Kruger. Essa abordagem tem o cuidado de devolver os gatos esterilizados às áreas onde foram encontrados, de modo que as populações felinas estabelecidas sejam mantidas e não haja “vagas” criadas para um influxo de novos gatos.
Mais de 5 mil gatos domésticos ferais (que vivem na natureza) e de rua foram esterilizados desde 2019, a um custo de cerca de US$ 45 por gato. O projeto expandiu sua capacidade para incluir mais três organizações, mas Holton estima que ainda existam pelo menos 3.500 gatos não castrados no Parque Nacional Kruger e milhares de outros perto de outros parques. Ela quer especialmente obter amostras de sangue para análise genética de gatos de aparência híbrida submetidos à esterilização para obter mais dados de DNA sobre a hibridização.
Holton observa que os gatos-selvagens-africanos e os gatos malhados domésticos têm algumas semelhanças, mas os selvagens têm pernas dianteiras longas e uma coloração alaranjada nas orelhas, enquanto os híbridos sempre têm manchas brancas em algum lugar – distinções visuais pequenas, mas importantes, quando se tenta identificar e manter a integridade de uma espécie silvestre.
Além do trabalho de campo, Holton está trabalhando rigorosamente para obter mais financiamento para manter esses projetos em andamento. “Os gatos-selvagens-africanos são criaturas incríveis”, diz ela. “E foi lá que nossos amados gatos domésticos começaram há 10 mil anos. Por que não usar um programa de esterilização que interrompa a hibridização e, ainda assim, mantenha a população [de gatos selvagens] fazendo o que deve fazer?”
Híbridos selvagens no sul do Brasil
Os gatos domésticos não são a única ameaça às linhagens genéticas puras de várias espécies de pequenos gatos selvagens. No sul do Brasil, por exemplo, os pesquisadores encontraram pelo menos 40% de hibridização entre duas espécies silvestres, o gato-do-mato-grande (Leopardus geoffroyi) e o gato-do-mato-pequeno (Leopardus guttulus), quando analisaram amostras de DNA no estado do Rio Grande do Sul. A principal “zona híbrida” estava na extremidade sul da Mata Atlântica, muito fragmentada e ecologicamente estressada, e na extremidade norte dos Pampas, onde as áreas de distribuição das duas espécies se sobrepõem.
Os híbridos não são fáceis de distinguir apenas pela aparência: os gatos-do-mato-grandes puros são geralmente mais robustos e manchados, com caudas curtas; os gatos-do-mato-pequenos são tipicamente ágeis, com caudas longas, listras ou manchas abertas e orelhas maiores.
Mas a aparência não é a questão principal, diz Jim Sanderson, fundador e diretor da ONG Small Wild Cat Conservation Foundation (SWCCF) e especialista em pequenos felinos da IUCN. “Acho que é mais importante [manter um papel ecológico específico] na natureza do que se fixar na [aparência] híbrida”, diz Sanderson. “A extinção funcional é uma perda terrível. Portanto, prefiro ter um gato de aparência estranha do que não ter nenhum gato.”
Nas paisagens cada vez mais dominadas pelo homem em que Sanderson trabalha, ele se concentra em encontrar maneiras de atenuar os conflitos que levam à morte de felinos silvestres. No Chile, por exemplo, o pequeno gato-chileno, ou güiña (Leopardus guigna), costuma caçar galinhas criadas por fazendeiros locais. O gato-palheiro (Leopardus colocolo), habitante das savanas e campos sul-americanos, tem uma tendência semelhante.
Menos felinos são vítimas de assassinatos por retaliação quando os galinheiros são consertados e fortificados para gatos, ou quando as pessoas recebem galinhas sem cauda, que são mais difíceis de serem capturadas por gatos silvestres.
Outras abordagens práticas de conservação incluem equipar os pastores rurais com cães de guarda para impedir a predação de alpacas, lhamas e cabras associada a gatos selvagens. A proteção de felinos maiores, como os leões da montanha, também pode ajudar os pequenos felinos, pois os grandes felinos podem reduzir as populações de cães selvagens que ameaçam os felinos menores. “Eu só quero manter os gatos vivos”, diz Sanderson.
O futuro dos pequenos felinos silvestres
Um grande obstáculo para a compreensão dos impactos dos híbridos sobre os papéis ecológicos desempenhados pelos pequenos felinos selvagens é a falta de estudos para determinar do que essas espécies precisam para prosperar. Isso se deve, em parte, ao fato de os pequenos felinos serem esquivos, sendo que muitos conservacionistas raramente – ou nunca – viram as espécies que estão tentando salvar. E também porque as 33 espécies de pequenos felinos selvagens nem de longe recebem o volume de financiamento em pesquisa similar àquele destinado aos grandes felinos.
“Temos milhares de tigres detectados em armadilhas fotográficas”, observa Wai-Ming Wong, da Panthera. “Mas temos talvez 15 ou 20 imagens da pantera-nebulosa [Neofelis nebulosa], que ocupa o mesmo habitat.” Com tão poucas detecções, as análises estatísticas usuais não podem ser aplicadas a essas espécies menores, explica Wong.
Uma solução para aumentar o conhecimento sobre espécies de pequenos felinos é a coleta de amostras de DNA ambiental de solos ou corpos d’água. Para obter linhas de base da população e detectar a hibridização, os cientistas precisam analisar materiais genéticos em nível de espécie e de indivíduo e comparar o parentesco genético. “A genética é um método fundamental para que possamos entender a ecologia dos gatos selvagens”, diz Wong. Sem esses dados fundamentais, é difícil avaliar com precisão as ameaças a essas espécies e elaborar planos de gerenciamento de conservação.
Embora os grandes felinos tenham capturado a imaginação do público há muito tempo, Wong acredita que os pequenos gatos silvestres são carismáticos e capazes de conquistar o coração das pessoas. Em suas palestras sobre conservação, toda vez que as pessoas veem fotos do gato-de-pallas (Otocolobus manul), nativo da Ásia Central, ela diz que são imediatamente cativadas e querem saber tudo sobre ele.
Com sua função trófica de nível médio nos ecossistemas, atuando tanto como predador quanto como presa, os pequenos felinos silvestres são sentinelas importantes para detectar a degradação de um habitat. Eles também podem ser vitais para o controle de roedores e pequenos mamíferos (essencial para o equilíbrio dos ecossistemas e para ajudar os agricultores a proteger as plantações sem nenhum custo). Uma coisa que está clara, diz Wong, é que cada espécie de pequeno felino tem seu próprio conjunto exclusivo de desafios. “Isso significa que não há uma abordagem única para sua conservação”, diz ele.
Este texto foi originalmente publicado por Mongabay de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.