O desmatamento na Amazônia voltou a acelerar nos primeiros meses de 2020. Entre janeiro e abril, pouco mais de 1.200 quilômetros quadrados de floresta foram destruídos, um aumento de 55% em relação ao mesmo período de 2019, segundo dados divulgados em maio pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O desmatamento é um problema antigo no Brasil. No entanto, em um momento em que os olhos do mundo estão todos voltados para a pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2), a preocupação com a degradação do meio ambiente ganhou um significado ainda mais grave: a destruição das florestas aumenta o risco de seres humanos entrarem em contato com animais hospedeiros de vírus que podem causar doenças desconhecidas, como a Covid-19.
Essa preocupação foi reforçada em um estudo publicado em abril na revista Landscape Ecology por pesquisadores da Universidade Stanford, nos Estados Unidos. Eles cruzaram imagens de satélite com dados obtidos por meio de entrevistas com mais de 900 pessoas em áreas agrícolas próximas ao Parque Nacional da Floresta Kibale, em Uganda, África. A ideia era determinar o grau de contato entre seres humanos e macacos, em qual parte da região estudada ocorriam e se esses fatores aumentavam o risco de vírus pularem de animais para pessoas. Os pesquisadores verificaram que o avanço da agricultura sobre a floresta aumentou a densidade populacional na região. Muitas pessoas se estabeleceram em áreas próximas a fragmentos florestais, onde humanos e animais compartilham o mesmo espaço e amiúde competem pela mesma comida.
A maior proximidade abriu brechas para situações de risco de transmissão de vírus entre animais e seres humanos. Algumas delas foram registradas pelos pesquisadores: um menino mordido por um macaco da espécie Colobus guereza enquanto brincava no quintal de sua casa; um homem embrenhado na floresta em busca de madeira que tentou salvar um macaco de L’Hoest (Cercopithecus lhoesti) das garras de um cachorro do mato; e uma mulher que encontrou o corpo de um macaco-vervet (Chlorocebus pygerythrus) no meio da sua plantação de milho e o manuseou sem nenhuma proteção, entrando em contato com sangue e secreções.
“Essas situações exemplificam algumas maneiras pelas quais os vírus podem quebrar seu ciclo zoonótico e infectar os seres humanos”, esclarece a bióloga Paula Prist, do Laboratório de Ecologia da Paisagem e Conservação da Universidade de São Paulo (USP). “Pode-se dizer que todas se deram em razão da degradação do meio ambiente”, comenta a pesquisadora, que estuda como o desmatamento em São Paulo afeta o risco de disseminação do hantavírus, transmitido por roedores e responsável por uma síndrome pulmonar pouco frequente em humanos, mas quase sempre fatal.
Uma das causas do aumento do risco de transmissão é a redução da diversidade de espécies em regiões desmatadas. “A transformação de ambientes florestais em pastos ou áreas agrícolas quase sempre diminui a variedade de espécies locais”, explica Prist. “Sem predadores naturais, algumas espécies se adaptam à nova paisagem e se reproduzem de forma descontrolada.” O aumento da população desses animais, muitas vezes reservatórios de vírus, pode elevar o risco de contato e transmissão de microrganismos antes restritos ao ambiente florestal para seres humanos. É o caso dos roedores selvagens transmissores do hantavírus, que se adaptaram bem às áreas de plantações de cana-de-açúcar no interior de São Paulo a partir dos anos 2000.
Os vírus são os seres mais abundantes no mundo. “Estima-se que para cada bactéria existam até 100 vírus”, destaca o biomédico William Marciel de Souza, do Centro de Pesquisas em Virologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP. O número de vírus estudados e descritos, porém, é relativamente pequeno. O Comitê Internacional de Taxonomia dos Vírus (ICTV), órgão responsável por nomear os vírus e organizar o conhecimento sobre eles, tem catalogadas apenas 6.590 espécies. No entanto, sabe-se que o número total de espécies desconhecidas é muito maior.
Em geral, ambientes ricos em biodiversidade, com muitas espécies de plantas, animais, fungos e bactérias, também abrigam muitos tipos de vírus. A Amazônia, por exemplo, é considerada a região com a maior diversidade e abundância desses agentes infecciosos no mundo. Muitos deles foram identificados por pesquisadores do Instituto Evandro Chagas (IEC), no Pará. “Temos mais de 220 espécies catalogadas, a maioria transmitida por artrópodes, das quais 90 foram descritas pela primeira vez”, diz a arbovirologista Lívia Carício, chefe da Seção de Arbovirologia e Febres Hemorrágicas do IEC.
Nas florestas, os vírus se encontram em equilíbrio com os seus hospedeiros — em geral, mamíferos —, infectando-os, na maioria das vezes, sem lhes causar mal. Morcegos e ratos são os hospedeiros mais frequentes, por causa da ampla distribuição de espécies e por viverem em comunidades com alta densidade de indivíduos. “Há cavernas com mais de 20 milhões de morcegos da mesma espécie”, diz Souza. Em contato com esses animais, os vírus invadem suas células e usam seu maquinário molecular para se replicar dentro delas. Ao atingirem grandes quantidades de cópias, rompem a membrana celular e ganham a corrente sanguínea, espalhando-se pelo organismo hospedeiro até serem excretados com a urina e as fezes. No ambiente, contaminam outros animais da mesma espécie e o processo se repete.
Nem todos os vírus estabelecem esse ciclo de transmissão. Algumas espécies desaparecem porque não resistem tempo suficiente no ambiente para infectar outro hospedeiro. Outras somem porque sua forma de transmissão é pouco eficaz ou porque não há muitos indivíduos da mesma espécie de hospedeiro para infectar e se propagar em determinada região.
Os vírus que se adaptam a um animal, transformando-o em seu hospedeiro, podem circular por milhares de anos até entrarem em contato com o ser humano. O biólogo José Luiz Proença Módena, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp), explica que esse primeiro contato pode não desencadear complicações mais graves. “No entanto”, esclarece o pesquisador, “os vírus estão em constante mutação e podem originar variedades capazes de invadir as células humanas em outra oportunidade”. É o que os cientistas chamam de quebra de barreira: um vírus, antes transmitido apenas entre animais, adapta-se geneticamente e infecta o ser humano. Foi assim com os vírus responsáveis por algumas das doenças que hoje acometem a humanidade, como ebola e Aids. Também pode ser o que ocorreu no caso do Sars-CoV-2 — ainda que não se saiba com certeza qual animal teria servido de reservatório e desencadeado sua transmissão para seres humanos na China.
Essa quebra de barreira também pode acontecer quando os vírus que circulam em uma espécie de animal se adaptam a artrópodes, como os mosquitos. Transformados em vetores, os mosquitos transportam esses agentes infecciosos para os seres humanos, como aconteceu com os vírus da zika, dengue e chikungunya. “Seja como for, para que exista essa quebra de barreira, necessariamente há de ter uma interferência humana em um ecossistema que antes funcionava em equilíbrio”, diz Silva. “Observamos esse fenômeno mais recentemente com os surtos de febre mayaro e oropouche em pequenas cidades da Amazônia”, diz o virologista Pedro Vasconcelos, do IEC. “Essas doenças só não ganharam a mesma dimensão da Covid-19 porque a densidade populacional e a circulação de pessoas na região são muito menores que a de países da Ásia. Do contrário, muito provavelmente algum vírus tão devastador quanto o Sars-CoV-2 já teria emergido da Amazônia e ganhado o mundo.”
Uma das estratégias usadas pelos pesquisadores para se antecipar ao surgimento de novos vírus é tentar localizá-los na natureza e estudá-los antes que se tornem um problema. “A identificação desses agentes infecciosos nos permite compreender seus mecanismos de transmissão na natureza, quais animais usam como reservatório, por quais órgãos têm mais afinidade e que complicações eles podem causar”, destaca Módena. “Com essas informações, podemos nos preparar melhor para possíveis surtos e epidemias.” Ele cita como exemplo a epidemia do vírus zika que se instalou no Brasil a partir de 2014. “Se tivéssemos estudado esse vírus antes, mesmo que em modelos animais, poderíamos ter antecipado alguns de seus impactos na gestação em humanos.”
Em suas pesquisas, Módena tenta caracterizar como as células do sistema imunológico humano respondem a diferentes vírus que emergiram da natureza. Um deles é o oropouche, transmitido pelo mosquito Culicoides paraensis. Antes restrito a alguns vilarejos da Amazônia, mais recentemente esse parasita intracelular se espalhou por outras cidades do Brasil, inclusive na região Sudeste. Em geral, as pessoas infectadas apresentam sintomas como febre, dor de cabeça e dores no corpo e nas articulações. Em alguns casos, porém, a doença pode desencadear problemas neurológicos, como encefalite e meningite.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original.
Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos.
Saiba mais