Depressão, ansiedade e suicídios: a realidade dos que plantam tabaco no Brasil

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Por André PicolottoClarissa LevyManoela Bonaldo em Agência PúblicaLídia Maria Bandacheski do Prado plantou fumo dos 9 anos até o dia em que sentiu seu corpo paralisar e precisou ser carregada às pressas da lavoura para o hospital. Tinha 39 anos quando um médico lhe disse: “Você não tem mais jeito: está inválida para trabalhar”. Antes de adoecer e ser diagnosticada com uma doença neurológica para a qual não há cura, Lídia dedicou seus dias e noites à atividade econômica que toma conta de encostas isoladas na região Sul do país: o cultivo de folhas de tabaco, em um sistema de produção integrado à indústria do cigarro. 

A agricultora é natural de Rio Azul, um município pequeno do estado do Paraná onde vivem cerca de 15 mil pessoas e se planta a sexta maior área de lavoura de fumo do país. “Desde criança a vida aqui era assim: passava dia e noite trabalhando e na época de colheita nem sabia o que era dormir”, conta. Por mais de 20 anos, Lídia cultivou as folhas de tabaco seguindo a “receita” determinada pela fumageira com a qual assinava contratos anuais de compra e venda. “Eles davam a receita [agronômica] com os agrotóxicos e falavam: “Passa”. Não contavam pra gente que tipo de produto era ou que era preciso se proteger.” 

Lídia desenvolveu uma polineuropatia, doença nos nervos dos braços e pernas, causada pela exposição continuada a agrotóxicos organofosforados — apontam laudos médicos. “Eu lembro quando um médico disse pela primeira vez que talvez fosse o meu trabalho que estava me deixando doente.” Foi um choque descobrir que a causa da atrofia muscular que paralisava suas pernas e mãos poderia ser o contato com os produtos químicos que manejava repetidamente, safra após safra, ano após ano. “Se eu tivesse informação, poderia decidir: vou fazer isso ou não. Mas me negaram a informação. Se eu soubesse o que o agrotóxico faria, eu teria alguma escolha. Mas não tive”, diz. 

Bem antes do dia em que foi levada ao hospital sem conseguir se mexer, Lídia já sofria com problemas de saúde mental e dores no corpo. A depressão começou ainda na adolescência, período em que também sentia os sintomas da doença da folha verde do tabaco — uma intoxicação causada pela alta concentração de nicotina que é absorvida durante o manejo das folhas. “Quando eu trabalhava com a folha verde, tinha alucinações à noite. Mas precisava ajudar a família na colheita. Passei anos assim”, conta. 

No município de Lídia e em outros dedicados à fumicultura, trajetórias parecidas se repetem. Uma pesquisa publicada em 2017 por profissionais da Secretaria de Saúde do Paraná, em Rio Azul, identificou transtornos psiquiátricos como depressão e ansiedade e polineuropatia em agricultores que haviam sofrido intoxicações por agrotóxicos. 

“A utilização prolongada de diferentes agrotóxicos pode ocasionar neuropatias tardias, síndromes neurocomportamentais e distúrbios neuropsiquiátricos, com alta incidência de suicídio, tal como descrito sobre os fumicultores do município de Venâncio Aires (RS)”, aponta. A pesquisa se soma a mais de uma dezena de estudos científicos feitos sobre as condições de saúde de agricultores do tabaco no Brasil. 

Ainda que pouco conhecida pela população em geral, a fumicultura brasileira ostenta números altos de produção anual, colocando o Brasil como o segundo maior produtor de folhas de tabaco no mundo. O Brasil é líder mundial em exportação do produto, e as folhas produzidas aqui são fundamentais para abastecer os cigarros produzidos na Bélgica e na China, principalmente. De sol a sol e muitas vezes madrugada adentro, cerca de 149.060 mil famílias cultivam e colhem, manualmente, o fumo. Nas áreas rurais de pequenos municípios nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, está concentrada 98,2% da produção nacional.

Agência Pública viajou para três municípios cuja economia é centrada no cultivo do fumo e colheu relatos que destacam o sofrimento mental como uma das principais preocupações de saúde. O alerta vermelho para depressão, ansiedade e até suicídios é uma realidade conhecida onde se planta o tabaco.

“As intoxicações por agrotóxicos estão associadas, em muitos casos, a problemas de ordem psiquiátrica. Encontramos essa correlação em nossas pesquisas de campo assim como outros pesquisadores ao redor do mundo já apontaram”, diz Neice Faria, médica especializada em saúde do trabalho que fez pesquisas focadas em fumicultores junto à Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Em entrevista à Pública,Neice é taxativa ao afirmar que análises estatísticas feitas no Brasil e em outros países mostram que o contato com agrotóxicos organofosforados — uma classe de inseticidas usados para combater pragas — tem relação com o desenvolvimento de distúrbios psiquiátricos. 

No caso de Lídia, a correlação entre a exposição aos agrotóxicos e o adoecimento virou uma disputa na Justiça. Desde 2015 a agricultora espera sentença para uma ação trabalhista que move contra a fumageira Alliance One. Lídia pede indenização por danos causados pelas condições de trabalho impostas pela empresa — em especial, o uso de agrotóxicos —, reivindicando reparação e custeio para seu tratamento de saúde. Como acontece com os produtores de tabaco da região Sul, Lídia cultivava sua lavoura seguindo à risca a receita de sementes, fertilizantes e inseticidas exigidos pela empresa nos contratos firmados sob o chamado “sistema de produção integrada”.

“Financeiramente, os mais de 20 anos de contrato não me trouxeram nada. Tudo que consegui tive que gastar depois com remédios, só não abri mão da casa.” A agricultora conta que, apesar de o trabalho tomar conta das madrugadas e finais de semana, tanto ela como familiares e vizinhos passaram por momentos de endividamento com as fumageiras, em anos em que o resultado das safras não cobriu os custos dos insumos adiantados pela empresa. “Essas dívidas amarram você a vida inteira para plantar fumo. É uma escravidão, porque, quando você tem dívida, eles são donos de você”, diz. 

O endividamento é mencionado como um dos fatores que pesa na saúde mental, pelos próprios fumicultores e por pesquisas científicas. Em uma pesquisa apresentada no Departamento de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em 2017, a pesquisadora Vera Borges aponta que a falta de reconhecimento do trabalho, a relação de desigualdade com a indústria do tabaco e a impossibilidade de planejar ganhos e dívidas podem comprometer a saúde mental e, em alguns casos, levar a casos de suicídio. 

A intoxicação aguda por agrotóxicos também é considerada pelo campo científico como um fator que pesa para casos de suicídio. As regiões fumicultoras, que amargam altos índices de intoxicação, foram objeto de um estudo feito pela médica Neice Faria, em parceria com a UFPel, que analisou a possível correlação entre taxas de suicídio e incidência de intoxicação e uso de agrotóxicos. “Percebemos claramente que nas microrregiões que têm maior uso de agrotóxico tem mais suicídio. Não só uso na fumicultura, mas em outras culturas também.” Os achados da pesquisa foram publicados na Neurotoxicology, uma das principais revistas científicas especializadas em toxicologia.   

“O suícidio, como a depressão, nunca tem uma causa só. São eventos multicausais. Mas de acordo com nossas pesquisas está claro que a intoxicação por agrotóxicos é um fator de risco que aumenta as ideações suicidas”, afirma Neice Faria.

Lídia conta sobre o período em que se via pensando em tirar a própria vida. “Eu não aceitava nada: meu principal objetivo era morrer para parar de sofrer”, lembra. Com ajuda psicológica e da família, relata, conseguiu encontrar caminhos para seguir. Hoje, a agricultora costuma dizer que quer “estar viva para ver a justiça acontecer”, ainda que seu processo esteja há seis anos patinando na primeira instância da Justiça do Trabalho. Em 2021, uma nova perícia médica foi marcada para avaliar o caso. Enquanto aguarda o desfecho, Lídia conquistou uma determinação judicial que obriga a fumageira a arcar com cerca de R$6 mil reais que gasta todo mês com medicamentos e consultas médicas. 

“Quando eu vou numa consulta, sempre vejo vários agricultores na fila de espera. E vejo que eles estão adoecidos. Mas não sabem por que, não sabem dos efeitos dos agrotóxicos. Vão atrás de um medicamento, um tratamento. Mas não têm informação. Isso assusta”, lamenta. 

Antidepressivos viraram parte da cultura

“Aqui em Santa Terezinha, o secretário de Saúde brincava que tinha que colocar antidepressivos no sistema de água que abastece a cidade, pro remédio já sair na torneira”, lembra Itamar Rudnik, psicólogo do município que ostenta a posição de terceiro maior produtor de fumo do estado de Santa Catarina. Na cidade, cuja economia gira em torno do tabaco e a maior parte da população vive em sítios plantando fumo, a prefeitura oferta mais classes de antidepressivos do que o padrão do SUS para o país. 

O adoecimento mental dos moradores de Santa Terezinha é a principal questão de saúde no município, segundo Luís Eduardo Andrade, médico especializado em psiquiatria que atende há mais de dez anos na região. Ele classifica o consumo de remédios psiquiátricos como “altíssimo” e diz que o uso de antidepressivos e ansiolíticos virou um costume. As versões genéricas de Rivotril e Prozac estão entre as mais consumidas. “Uma vizinha indica para outra. Você entende como é?”, diz.

 A farmacêutica Vitória Wibbelt, que trabalhava no posto de saúde municipal, conta que era preciso controlar a saída dos medicamentos. “Se deixar, o pessoal tenta pegar mais remédio que o receitado. Eles têm muito medo de que falte, aí tentam fazer estoque”, diz. 

Com poucas alternativas para tratar o sofrimento psíquico, o que se faz no município é prescrever medicamentos. “O remédio é como uma muleta, algo que eu dou para que a pessoa consiga seguir vivendo naquele cotidiano de vida que ela não consegue mudar”, diz o médico. Na opinião dele, seus pacientes sofrem de depressão como uma reação às condições de vida e de trabalho: se o jeito de viver não muda, fica difícil tratar o adoecimento psíquico. “Quando alguém me diz para ir tirando o medicamento, eu penso: ‘Tiro o remédio e dou o quê? O que posso fazer em troca? É angustiante”.

Em Santa Terezinha, apesar de existir consenso na equipe de saúde de que o número de diagnósticos psiquiátricos é muito alto, os profissionais locais não conseguem definir as causas do consumo disseminado de antidepressivos. O psicólogo Itamar Rudnik, que cresceu no pequeno município catarinense vendo os pais plantarem fumo e tomarem medicamentos para depressão, decidiu estudar o alto índice de adoecimento mental na região. “Não dá para sabermos todas as causas. O que tem são essas pesquisas que mostram a relação da depressão com agrotóxicos. Mas a gente sabe que, além do agrotóxico, a própria rotina de trabalho na fumicultura é muito exaustiva”, diz.

Durante a colheita, que geralmente ocorre no verão, sob altas temperaturas, o suor contribui para que a pele absorva grandes quantidades de nicotina das folhas do tabaco (doença da folha verde). Com a substância no corpo, os fumicultores sentem o que chamam de “porre do fumo”: enjoo, fraqueza, tonturas, insônia e pesadelos. Os sintomas variam de agricultor para agricultor — alguns passam mal de vez em quando; outros, em toda safra, e alguns, todas às tardes, ao final do expediente. 

“Esses aí já estão tudo envenenado”, brinca o agricultor Onadir Nardi, fumicultor de Santa Terezinha, apontando para os vizinhos que havia contratado para ajudar na colheita. “Até existe equipamento de proteção, mas são horríveis. Nunca vi um que aguenta passar mais de meia hora na roça com aquela roupa de plástico”, diz.

Para quem “planta fumo desde que se conhece por gente”, uma fala frequente entre fumicultores, o caráter nocivo do trabalho sempre foi naturalizado e não impede que continuem fazendo a atividade aprendida por herança dos pais. Nessas famílias, plantar fumo é tradição antiga, e o “sofrimento dos nervos”, como dizem, também é velho conhecido. 

Um grave fator de risco

As regiões dedicadas ao plantio do fumo se destacam dentre os municípios com maiores índices de intoxicações por agrotóxicos, revela cruzamento de dados feito pela Pública a partir de informações do Sistema Nacional de Agravo de Notificações (Sinan) e dos dados das safras de tabaco. 

Equipe eCycle

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