Por Marcos do Amaral Jorge, do Jornal da UNESP | As vegetações de campos cobrem nada menos do que 40% da superfície terrestre. No Brasil, sua presença equivale a 27% do território do país. Porém, quando se debatem os projetos de restauração de biomas devastados e desmatados — especialmente no contexto do combate às mudanças climáticas — a atenção que elas recebem, mesmo por parte dos pesquisadores, costuma ser muito inferior à área que efetivamente ocupam no planeta.
Um artigo publicado nesta semana em uma edição especial da revista científica Science aponta a necessidade de se incluir as vegetações de campos em programas de restauração, e de que se amplie o conhecimento sobre as técnicas e as estratégias que são mais eficazes para a sua regeneração. A publicação, que tem como uma de suas coautoras a professora Alessandra Fidelis, do Laboratório de Ecologia da Vegetação do Instituto de Biociências da Unesp, câmpus de Rio Claro, destaca a complexidade deste bioma, e também o intenso processo de devastação a que tem sido submetido, motivado pelas mudanças no uso da terra. O texto aponta ainda que o desconhecimento das características desses biomas abertos vem dando brecha para a ocorrência de sérios equívocos na seleção e plantio de espécies em projetos de restauração da vegetação.
As formações campestres são ecossistemas antigos marcados principalmente pela presença de espécies gramíneas e de pequenas ervas. São genericamente chamadas de grasslands pela comunidade científica. Este perfil de vegetação acaba por formar paisagens abertas e com poucas árvores de grande porte. No Brasil, essas características podem ser encontradas em diversos biomas, como o Cerrado, a Caatinga, o Pampa e o Pantanal. Fidelis explica que, embora a fisionomia deste ecossistema aparente certa simplicidade, abriga uma grande riqueza de espécies e de interações entre elas.
Falar em savanização é erro
“Grande parte das pessoas acha que esses ecossistemas abertos seriam originalmente florestas degradadas, ecossistemas recentes e que poderiam se recuperar rapidamente”, aponta a bióloga. Ela ressalta como exemplo o uso equivocado do termo “savanização” para descrever o processo de degradação das florestas. “Falar em savanização é um erro. Savanas são ambientes complexos e ricos em espécies. Já as florestas degradadas são ambientes pobres em espécies e de baixa complexidade. Em comum mesmo, elas têm apenas o fato de serem abertos”, diz.
A confusão entre espaços degradados e ambientes campestres tem estimulado projetos de restauração que promovem o plantio de árvores nos biomas campestres. “Isso é um problema porque as gramíneas e herbáceas presentes nesses campos precisam da exposição ao sol, e a primeira coisa que a árvore vai fazer é criar sombra e consumir água, provocando a perda dessa diversidade rasteira”, explica Fidelis. Atualmente, pesquisas têm apontado que alguns ambientes campestres, como o Cerrado brasileiro, são na realidade ecossistemas extremamente antigos (primários) e que demoram décadas ou até séculos para se regenerarem.
Para além do que é visível na superfície, esses ecossistemas também se caracterizam por uma complexa formação subterrânea que está intimamente ligada à sua resiliência ao longo dos séculos. Grande parte dessas espécies possuem sob a terra estruturas formadas por um tecido meristemático que funciona como um banco de gemas: à medida que sua parte aérea sofre algum distúrbio, o tecido é capaz de rebrotar, permitindo uma sobrevida à planta. A lista de eventos que os biólogos classificam como distúrbios é ampla. Pode incluir, por exemplo, simplesmente um grupo de animais que se alimentam do capim, que após alguns dias vai rebrotar. Ao realizar esse processo particular de regeneração, a vegetação campestre também armazena uma quantidade significativa de carbono no subsolo.
Fogo também tem um papel
Boa parte das pesquisas de Alessandra Fidelis no câmpus de Rio Claro envolve o melhor entendimento da capacidade de recuperação dessas espécies após um tipo específico de distúrbio: o fogo. “O distúrbio é um fator ecológico e evolutivo importante para o qual essas espécies vêm se adaptando de forma recorrente ao longo dos séculos”, explica a bióloga. Por isso, em muitas vegetações savânicas o fogo não é necessariamente algo ruim. Políticas de perfil “fogo zero” podem inclusive causar desequilíbrio neste sistema por levarem ao crescimento das árvores e ao adensamento lenhoso. “Estudos mostram que, apesar da presença de árvores ocasionar um aumento no armazenamento de carbono sobre o solo, observa-se uma perda de 80% das espécies de plantas rasteiras de savana, e de 90% das espécies de formigas que interagem com elas. Isso não quer dizer que a gente tenha que queimar tudo. Hoje, fala-se em um manejo integrado de forma a evitar grandes incêndios e ao mesmo tempo manter a biodiversidade”, diz Fidelis.
Tendo em vista a vasta ocupação territorial e a complexidade de seu processo de regeneração, espera-se que os pesquisadores estejam se debruçando sobre os sistemas campestres para ampliar o seu entendimento e criar novas técnicas e estratégias para sua restauração. Os dados, entretanto, apontam que esta não é a realidade. Um levantamento da literatura realizado na base de dados Web of Science selecionou 367 publicações entre 1980 e 2021 e avaliou a localização do estudo e a menção ao plantio de árvores para fins de restauração de ecossistemas. O resultado apontou que florestas foram amplamente priorizadas entre os temas de pesquisa, em detrimento, por exemplo, dos campos abertos.
Mineração é novo foco de preocupação
A situação soa ainda mais urgente quando se observa o cenário de degradação desses sistemas. Tomando novamente o Cerrado como exemplo, embora seja reconhecido como um bioma de altíssima biodiversidade e provedor de uma série de serviços ambientais, estima-se que mais de 50% de sua cobertura original já tenha sido degradada em função principalmente do avanço da fronteira agrícola. Mais recentemente, a mineração também vem despertando a preocupação dos pesquisadores. Alessandra Fidelis explica que tanto na mineração quanto no processo de mudança do uso do solo, as estruturas subterrâneas que permitem a resiliência do sistema são removidas, facilitando a entrada de espécies invasoras de difícil remoção e alto impacto. “Na Serra do Espinhaço (MG), por exemplo, temos visto a mineração causar altíssimos graus de degradação. Não sabemos como poderia ser possível restaurar a vegetação na região”, lamenta.
Para a pesquisadora, diante do contexto de intensa degradação, torna-se fundamental a pesquisa para o melhor entendimento do processo de restauração e o desenvolvimento de técnicas eficientes. ”Ainda conhecemos pouco sobre a complexidade desse sistema subterrâneo. Quando perdemos essa fonte de renascimento, não sabemos muito bem como trazê-la de volta. Precisamos de mais estudos que foquem em formas de restaurar essa faixa abaixo do solo. Se conseguirmos recuperar a complexidade que existiu ali, teremos sucesso nas iniciativas de restauração da vegetação”, afirma.
No ano passado, a ONU declarou esta como a década da Restauração dos Ecossistemas, buscando fomentar a proteção e a conservação dos ecossistemas de todo o mundo. A fotografia atual, entretanto, revela uma prioridade de esforços e de pesquisas voltados para a recuperação das florestas. O outro lado da moeda é relegar a segundo plano iniciativas destinadas a um bioma que ocupa mais de 40% do território terrestre. “O artigo publicado na Science chama a atenção para o fato de que ambientes campestres antigos não são florestas e não devem ser restaurados da mesma maneira. Eles demoram centenas de anos para se regenerarem sozinhos e até o momento nós ainda não sabemos bem como trazê-los de volta em toda a sua complexidade e riqueza”, resume Fidelis.
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