Descumprimento dos direitos indígenas está ligado à persistência de visão colonial na Justiça

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Por Liana Coll, do Jornal da Unicamp | A intensificação do massacre contra os indígenas, a impunidade em relação às violências a que são submetidos e a paralisia nas demarcações de terras ilustram o grave problema de acesso à justiça pelos povos originários do Brasil que, atualmente, ainda enfrentam ameaças de retrocessos. A fim de entender esse cenário de descumprimento de direitos, o Jornal de Unicamp convidou Luiz Eloy Terena, coordenador jurídico da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Anderson Santos, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário, Regional Mato Grosso do Sul (CIMI-MS), e Pedro Peruzzo, advogado popular e professor do mestrado em Direitos Humanos e Desenvolvimento Social da PUC-Campinas, para analisar as raízes da questão e situar os desafios na esfera jurídica para os indígenas.

Os advogados pontuam os entraves e as perspectivas no cumprimento dos direitos dos povos originários. A persistência de uma visão colonial no Poder Judiciário e a influência de setores que ameaçam os indígenas nas esferas da justiça, na economia e na política são alguns dos argumentos levantados. O histórico de exclusão dos povos originários enquanto porta-vozes dos seus próprios interesses, que tem como um dos reflexos a quase inexistência de indígenas em espaços decisórios como o da política, por exemplo, agudiza o problema. Além disso, eles indicam que um retrocesso nos direitos conquistados está pautado no Supremo Tribunal Federal (STF): a tese do Marco Temporal.

Persistência de massacres

Um dos casos mais graves e reveladores das barreiras para garantir o acesso à justiça ocorre com os guarani-kaiowá no Mato Grosso do Sul (MS). Resistindo a confinamento, assassinatos e violências de toda ordem desde o início do século passado, a população de indígenas sofreu, só nos últimos três meses, três assassinatos, além de ameaças e atentados que feriram a dezenas. Anderson Santos é um dos advogados que atua junto às comunidades da região. Para ele, existe um racismo institucional que se reflete no descumprimento de direitos indígenas e na lentidão de andamento de casos de assassinatos.

“Há diversas barreiras para garantir a justiça para a população em geral e o que já é difícil para a população comum é mais difícil ainda para os indígenas. A cultura, a língua e a organização social causam mais complicações para que tenham acesso à justiça”, afirma.

A discriminação, que traz impedimentos para acesso a direitos de toda ordem, também está presente no Judiciário, conforme o advogado. “No Tribunal de Mato Grosso do Sul, tanto na esfera federal quanto estadual, se percebe claramente um racismo institucional, dentro da estrutura de poder, em relação aos indígenas. Simplesmente por serem indígenas há um tratamento mais precário. Até mesmo as defensorias têm dificuldade em atendê-los. Há muitos relatos de negativa de atendimento ou de que não há um atendimento adequado”, conta.

Assessor jurídico do CIMI-MS, Anderson destaca que a entidade acompanha todos os casos envolvendo os conflitos pela terra e os assassinatos decorrentes das investidas de ruralistas, que recentemente contaram inclusive com a Polícia Militar do Estado do MS para ações violentas contra os guarani-kaiowá.

Em relação ao andamento de processos, diz, se percebe, por um lado, uma atuação importante do Ministério Público Federal (MPF) em fazer as acusações e, por outro, uma lentidão no andamento das ações. “Os juízes são muito lentos em fazer processos de assassinatos de lideranças andarem. Existem casos ocorridos em 2006 e 2006 em que não houve sequer uma oitiva das testemunhas. Às vezes passam mais de 10 anos até que tenha início a fase instrutória”.

A única exceção, cita, é o processo relativo ao assassinato de Clodiode Aquileu Rodrigues de Souza, agente de saúde de Caarapó, ainda que já tenham se passado seis anos do caso. O guarani-kaiowá foi morto em 2016 por fazendeiros que cercaram os indígenas e atiraram contra eles, matando Clodiode e ferindo mais cinco pessoas, incluindo uma criança de 12 anos. “Nesse ano concluíram todas as oitivas, o que é algo inédito, pois geralmente levam décadas para concluir essa fase”.

Os assassinatos, que ocorrem em grande parte nas áreas de retomada, também expõem os diversos interesses que travam as demarcações de terras para os guarani-kaiowá, problema que tem semelhanças com o que acontece com diversas outras etnias no país.

Para compreender as retomadas, é preciso voltar ao início do século XX, entre 1915 e 1927, quando foram foram criadas oito reservas indígenas. Essas reservas, que deveriam ter ao menos 3.600 hectares cada, já foram entregues reduzidas e o avanço das atividades agropecuárias tomou conta de territórios ancestrais dos guarani-kaiowá, inclusive áreas de cemitério. É por isso que ocorrem as retomadas, na tentativa de reivindicar um território cuja comprovação enquanto terra tradicional já foi realizada pela Fundação Nacional do Índio (Funai).

“Os indígenas, percebendo que tinham sido expulsos de forma violenta ou sendo enganados, passaram a reivindicar o retorno para o território tradicional perto da década de 1980. Com a Constituição de 1988, começaram as demarcações de terras, mas no MS, por conta dos conflitos decorrentes de disputa de poder econômico e político, há morosidade em concluir os processos. Há um estudo já feito pela Funai que comprova que aquelas terras pertencem aos índios e a forma que encontram de pressionar os governos é através das retomadas”, explica.

Anderson acompanha as comunidades guarani-kaiowá desde 2013 e aponta que sempre houve episódios graves de violação de direitos e violência nesse período. Existiam caravanas de fazendeiros, relata, que chegavam a sair com mais de 100 carros para intimidar e expulsar os indígenas. O que há de diferente hoje, indica, é que o próprio Estado do Mato Grosso do Sul colocou a Polícia Militar à disposição dos ruralistas para que eles não corram risco de serem processados, como ocorreu no caso do assassinato do cacique Marco Veron, torturado e morto em 2003.

“Para não colocar o fazendeiro nessa situação direta de conflito, estão utilizando a força do Estado. Nessa última investida, a própria PM tentou promover um despejo sem ordem judicial. Foi o quinto despejo só no mandato do atual governador, fazendeiro e com articulações na Famasul, um dos principais sindicatos rurais do Mato Grosso do Sul. O Estado é dominado pelos ruralistas e coloca a força policial a favor deles. E, com o governo federal sinalizando de que tudo eles podem – matar, agredir e violentar – a gente vê esse tipo de coisa acontecendo”.

Mas diante de tamanha violência, o que é possível fazer? Para o advogado, a exposição dos crimes em nível nacional e internacional é uma forma de pressionar por respostas e impedir distorções dos conflitos. “[Nesse último caso] o Secretário de Segurança Pública tentou criar uma história fictícia do porquê a polícia estava agindo naquele local. Se não tivéssemos feito uma mobilização grande para comprovar que se tratava de uma situação de retomada de território indígena, mostrando que a reivindicação da comunidade é legítima, teríamos dado brecha para que continuassem agindo dessa forma”, conta.

Discriminação e genocídio

O advogado e professor da PUC-Campinas, Pedro Peruzzo, acompanhou a situação dos guarani-kaiowá do MS e traz uma série de reflexões sobre o que vivenciou ao, por exemplo, ver um delegado prender e humilhar indígenas.

Refletindo sobre o histórico de violências e sobre os recentes assassinatos e ataques, ele aponta que “o sistema jurídico faz pouco perto do que deveria”. Para o advogado, o que ocorre com os povos originários é um genocídio e a resistência em tipificar denunciar o Estado brasileiro por esse crime é a prova de que “o Legislativo, o Executivo e o Judiciário estão marcados pela visão colonial de que o índio precisa ser integrado. E, dentro dessa chave, há uma visão dual da sociedade, de uma sociedade arcaica e outra urbanizada”.

A política de integração, institucionalizada até 1988, carrega a concepção de que os povos originários devem abandonar identidades e práticas ancestrais para se incorporar a uma sociedade tida como superior. Tal visão, presente até mesmo em discursos do atual chefe do Executivo, traz discriminações que há séculos são reproduzidas no Brasil, como o enquadramento da população branca enquanto superior em relação aos povos originários.

Os problemas de conflitos de terras, analisa, têm raízes profundas. Uma das origens foi o fato do Estado conceder títulos de terras para colonos em locais onde havia presença indígena, ainda na primeira metade do século XX, um embrião de conflitos. “Olha o problema: o Estado dá um documento dizendo que não tinha índio naquela terra e de repente passa um grupo de índios. O direito, em tese, autorizaria o desforço imediato, ou seja, seria legítimo você matar aquelas pessoas porque estão na sua terra”, diz.

Em muitos casos, conforme Pedro, ocorre um embate entre instâncias do judiciário a respeito disso. O judiciário concede liminares de despejo em favor dos não-indígenas, que são derrubados pelo STF em função da ausência de requisitos processuais para despejos em liminares, além da necessidade de proteção de crianças e outros grupos vulneráveis presentes nas comunidades indígenas. Depois, outras instâncias do Estado atuam para driblar a lei em função dos interesses do agronegócio. “A constituição fala que o Estado deve prioritariamente proteger os direitos das crianças. E o que já aconteceu em alguns casos? Destituir o poder familiar e colocar as crianças para adoção. Novamente, aí se pratica o crime de genocídio”.

O advogado é enfático em apontar o que o Estado pratica como genocídio, uma vez que as definições do crime se aplicam ao que ocorre no Brasil, dentre elas matar membros do grupo e causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo com a finalidade de destruição total ou parcial do grupo. Por isso, conclui, “não tem como pensar em ausência de responsabilidade do Estado brasileiro”.

Em relação às demarcações, ele lembra que a Constituição de 1988 deu o prazo de cinco anos para que o Estado as realizasse, o que não foi cumprido. Mais uma vez,  frisa que a justiça falha em não cobrar essa responsabilidade. “O Estado brasileiro não conseguiu cumprir e o Judiciário teria condições de resolver isso, por exemplo impondo multa por atraso na demarcação de terras. Sendo terra indígena, são terras da União, então o governo federal está colocando bens da União a serviço de particulares, inclusive para atividades que vão destruir o meio ambiente de forma irrecuperável”.

Além disso, observa, “o sistema de justiça, especialmente no MS, seja na esfera estadual ou na federal – onde tramitam os processos de demarcação de terras – é, em muitos casos, contaminado por uma visão preconceituosa em relação aos povos indígenas. O preconceito é evidente na forma como os juízes analisam os processos de demarcação de terras”, analisa.

Há órgãos que buscam cumprir o que é assegurado enquanto direito, no entanto, conforme o advogado, é preciso intensificar os esforços. “O MPF tem  competência constitucional para atuar nos direitos coletivos dos povos indígenas, mas diante da gravidade do que vimos assistindo e das ferramentas que tem para avançar, tem muita coisa que não está sendo feita. É necessário um movimento coordenado nacionalmente para resolver as questões dos povos indígenas”.

Judiciário está baseado na relação colonial

A tentativa de articulação e de atuar nesse sistema jurídico ainda colonialista é uma das formas de atuação do advogado da APIB, Eloy Terena, uma das vozes mais proeminentes na luta pelos direitos indígenas. O jurista foi o primeiro indígena a ir ao STF representar os interesses dos povos originários em uma ação de jurisdição constitucional. Na ocasião, em 2020, ele defendeu a Arguição de Descumprimento de Preceito Constitucional (ADPF) 709, que pretendia combater as omissões do governo Jair Bolsonaro em relação aos povos indígenas durante a pandemia de Covid-19.

Ele foi vitorioso na decisão, que representou um momento importante para o movimento indígena. A conquista histórica de um indígena representando o seu próprio grupo, no entanto, revela também um espaço que foi sistematicamente negado aos povos originários. Só com a Constituição de 1988 teve fim a tutela do Estado em relação aos indígenas. Antes disso, eles não eram reconhecidos como os porta-vozes dos seus interesses.

“Imposto ainda no Brasil-Colônia, o regime tutelar continuou presente na legislação republicana com guarida legal até os dias atuais, já que o Estatuto do Índio, de 1973, ainda não foi revogado expressamente. No âmbito do judiciário, a tutela sempre esteve presente, e seu modo de exercê-la acarreta muitos prejuízos aos povos indígenas”, aponta Eloy.

Além da arguição no caso da pandemia, o advogado também garantiu fala no STF em duas outras ocasiões: na defesa da ADPF 760, que pauta a proteção da Amazônia Legal, e no início do julgamento do Marco Temporal, marcando posição contrária à tese que afirma que os indígenas só podem reivindicar demarcação das terras em que se encontravam no ano de 1988.

Quanto à última proposta, o jurista afirma que é clara a sua inconstitucionalidade. “Trata-se de um dos maiores ataques aos direitos indígenas reconhecidos na Constituição Federal de 1988, podendo ser considerada como uma tentativa de genocídio. Dizer que os indígenas que não se encontrassem em suas terras na data da promulgação da Constituição de 1988 não poderiam reivindicar a demarcação da área ignora totalmente o histórico de expulsões e violência sofridos pelos diferentes povos”, avalia.

Somente durante a ditadura, dezenas de etnias foram removidas dos seus locais de origem, tendo como argumento dos militares o impedimento dessas populações para obras de grande porte, como a Transamazônica. A estrada foi responsável por desmatamento e remoção de povos da Amazônia dos seus territórios.

Na avaliação de Eloy Terena, a negativa desses eventos, a tentativa de implementar o Marco Temporal e a lentidão em demarcar terras indígenas acontecem sob um regime jurídico que carrega um padrão colonial e eurocêntrico – ou seja, que interpreta o mundo segundo valores europeus. Uma das consequências é a dificuldade em reconhecer o direito coletivo à terra em um modelo de Estado que privilegia o direito privado. “No Brasil, há um modelo colonial disfuncional de direito privado que permanece restrito no sentido liberal e eurocêntrico de propriedade privada, assim dificultando o exercício da propriedade coletiva e gerando desafios para o registro de terras indígenas”.

Além disso, prossegue, “os processos administrativos de titulação, demarcação e desintrusão de terras indígenas são extremamente lentos e muitas vezes ineficazes especialmente graças à falta de cumprimento das obrigações positivas estatais para garantir o direito à propriedade coletiva”. A lentidão, frisa, ocorre também no julgamento de processos de não-indígenas sobre as terras dos povos originários, “o que exacerba a falta de segurança jurídica sobre o uso e gozo pacífico dos territórios tradicionais”.

A falta de responsabilização daqueles que praticam crimes nas terras indígenas, além da ausência de escuta das comunidades em processos que dizem respeito aos seus direitos são outros problemas apontados por Eloy. “Neste sentido, para se garantir o acesso à Justiça aos povos indígenas, é fundamental que rompamos com os paradigmas tutelares, que se baseiam na relação colonial de subjugação dos povos indígenas”, diz.

Recentes resoluções do Conselho Nacional de Justiça que dizem respeito aos direitos dos povos originários – Resolução 454/2022, Resolução 287/2019 – são analisadas como avanços por ele. A primeira estabelece diretrizes e procedimentos para efetivar a garantia do direito ao acesso ao Judiciário de pessoas e povos indígenas e a segunda estabelece procedimentos ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, e dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do Poder Judiciário.

Como horizonte para o rompimento da distância do campo judiciário em relação às comunidades indígenas, o advogado cita a necessidades de “demarcar os territórios tradicionais, bem como proteger as terras indígenas já demarcadas de invasores como garimpeiros e madeireiros”, além de “ocupar a política partidária para ocupar o poder, acabar com a política da morte, e levarmos a Brasília a política da vida originária” e “capacitar os magistrados e todo o corpo de operadores do Direito para lidarem com as questões indígenas de maneira adequada”. Para que a promessa de “passar a boiada” do governo federal não vá ainda mais adiante.

Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da Unicamp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Thaís Niero

Bióloga marinha formada pela Unesp e graduanda de gestão ambiental. Tentando consumir menos e melhor e agir para alcançar as mudanças que desejo ver na sociedade.

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