Pesquisadores investigam relação entre o desflorestamento e a quitridiomicose, doença que tem devastado populações de sapos e rãs em vários países
Pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) estão investigando como o desflorestamento pode afetar a ação de patógenos que causam doenças como a quitridiomicose, que tem devastado populações de sapos e rãs no mundo nas últimas décadas.
Em artigo publicado na revista Proceedings of the Royal Society of London B – Biological Sciences, os pesquisadores analisaram como a interação entre o desmatamento e o microbioma da pele pode afetar os anfíbios atingidos por fungos como o Batrachochytrium dendrobatidis, causador da quitridiomicose.
“Existe a suspeita de que esse fungo possa ter mais dificuldade de se estabelecer e proliferar em um animal cuja biota cutânea encontra-se íntegra”, disse Célio Haddad, professor do Instituto de Biociências da Unesp. A pesquisa integra o Projeto Temático “Diversity and conservation of Brazilian amphibians”, coordenado por Haddad e financiado pela FAPESP no âmbito do programa BIOTA.
O microbioma funciona como uma espécie de ecossistema que dificulta a ação de patógenos invasores. Para verificar qual seria a composição do microbioma na pele dos anfíbios da Mata Atlântica, habitando áreas de mata contínua ou mata degradada, os pesquisadores precisavam escolher uma espécie que não fosse exclusiva e que vivesse em ambas.
Precisaria também ser uma espécie com certo grau de tolerância ao fungo Batrachochytrium dendrobatidis, ou Bd. Ou seja, uma espécie cujo maior ou menor grau de tolerância individual pudesse ser associada à diversidade do microbioma cutâneo de cada indivíduo e avaliada de acordo com o local que habita.
A candidata eleita foi a pererequinha-do-brejo (Dendropsophus minutus), com moderada tolerância ao fungo e distribuição ampla na Mata Atlântica, tanto em ambientes de mata fechada como em áreas fragmentadas ou abertas.
Em 2010, os pesquisadores estudaram 10 populações de D. minutus em áreas da Mata Atlântica em São Luiz do Paraitinga (SP) e outras 10 populações da Mata de Araucárias, na Serra Gaúcha, em áreas degradadas e íntegras.
Foram amostrados cerca de 600 indivíduos. Entre esses, foram selecionados 187 indivíduos para estudo molecular. “Usamos luvas descartáveis para manusear cada animal, que foram limpos em campo com água destilada. Em seguida, usamos cotonetes para coletar material cutâneo de cada espécime, que foi armazenado em frascos estéreis”, disse outro autor do estudo, Guilherme Becker, pós-doutorando na Unesp na época e atualmente professor visitante do PPG de Ecologia da Unicamp.
Foi realizado o sequenciamento genético do material cutâneo coletado de cada indivíduo. “O processo gerou uma lista de bactérias presentes em cada indivíduo e em qual abundância. O resultado foi uma base de dados enorme, uma vez que cada indivíduo tinha centenas de bactérias”, disse Becker.
Os pesquisadores empregaram técnicas estatísticas para estabelecer relações e inferir padrões na base de dados. “Pela abordagem molecular, podemos verificar a carga de infecção do patógeno em relação à diversidade da biota cutânea de cada indivíduo. A partir daquele banco de dados, conseguimos gerar outros índices de diversidade, como o número de espécies de bactérias, sua abundância relativa e sua diversidade filogenética”, disse Becker.
Haddad conta que foi observado, em áreas abertas ou degradadas, que a composição do microbioma cutâneo é menos diversificada em termos de espécies de bactérias e menos homogênea entre os indivíduos.
“Em contraposição, nas áreas de floresta íntegra a composição do microbioma mostrou-se mais homogênea entre os indivíduos e mais diversificada em termos de microrganismos”, disse.
Os autores do estudo constataram que nas pererequinhas-do-brejo dos ambientes de floresta natural a diversidade do microbioma era maior. “O desmatamento diminuiu a diversidade da microbiota cutânea das pererequinhas, mas é difícil afirmar categoricamente que este empobrecimento da microbiota aumenta o risco de infecção pelo fungo”, disse Becker.
O pesquisador explica que, uma vez que um anfíbio é infectado pelo fungo Bd, a quantidade de bactérias aumenta muito em um primeiro momento, talvez pelo comprometimento do sistema imune causado pelo ataque de bactérias oportunistas.
“Os animais começam a ficar doentes, a pele fica mais grossa, o fungo cobre a pele. Uma vez que eles ficam muito doentes a carga de bactérias despenca. É um sinal ruim. Significa que o microbioma está em disbiose [ou em crise]. Quando a quantidade de bactérias cai dramaticamente, o anfíbio geralmente morre”, disse Becker.
A ecologia da quitridiomicose é ainda mais complexa. O fungo Bd se espalha pelo meio ambiente por meio de esporos suspensos na água de lagoas e rios.
“É uma das piores epidemias atuais. Nenhuma outra doença de vertebrados atua como o fungo Bd. Trata-se de um patógeno generalista que prolifera melhor nos ambientes naturais, o que não favorece em nada os anfíbios. Por isso a quitridiomicose é tão devastadora”, disse Becker.
Endêmica na Mata Atlântica
A quitridiomicose está dizimando não apenas as espécies conhecidas de anfíbios, mas centenas ainda desconhecidas da ciência. Na doença, o fungo Bd se instala na pele, afetando a respiração e a fisiologia dos hospedeiros. O Bd é endêmico na Mata Atlântica brasileira, onde infecta inúmeras espécies, com maior ou menor suscetibilidade.
A suscetibilidade dos anfíbios ao fungo Bd varia bastante. Há espécies muito tolerantes, como é o caso da rã-touro norte-americana (Lithobates catesbeianus), espécies com tolerância intermediária e muitas outras onde a mortalidade pode chegar a 100%. A doença está espalhada pelas três Américas, mas também atinge a Austrália, Europa, Nova Zelândia e partes da África.
Os anfíbios apresentam mais de um sistema respiratório. Na fase do girino, respiram por meio de brânquias, como os peixes. Já na fase adulta, os anfíbios dependem principalmente da respiração cutânea, que podem associar ou não, dependendo do grupo, à respiração pulmonar e à respiração por meio da cavidade oral.
Quando o fungo Bd se instala na pele, ele ataca a queratina, principal proteína constituinte do tecido cutâneo, levando a uma maior impermeabilidade da pele do anfíbio, o que interfere na troca de gases com o meio ambiente.
A quitridiomicose atualmente é endêmica na Mata Atlântica brasileira, ainda que aqui ela ainda não seja tão devastadora como nas matas da Costa Rica, por exemplo, onde diversas espécies de anfíbios já desapareceram. Há relatos de pesquisadores dando conta de áreas antes livres da doença e que, em um ano, encontravam-se repletas de anfíbios, e no ano seguinte não se achou mais nenhum.
Não se sabe ao certo a razão pela qual a quitridiomicose é mais severa na Costa Rica e, aparentemente, mais branda entre as populações de anfíbios da Mata Atlântica. Talvez nem sempre tenha sido assim. Sabe-se que, no final dos anos 1970, houve um grande declínio entre as populações de anfíbios da Mata Atlântica.
“No fim da década de 1970 observamos o pico da prevalência do fungo Bd na pele de anfíbios depositados em museus, em relação aos animais depositados antes ou depois. Possivelmente, foi esse fungo que causou os declínios de populações de anfíbios na Mata Atlântica daquela época. Tudo isso coincide com declínios em massa ocorridos na mesma época em outros locais, como os Estados Unidos, os Andes e a Austrália”, disse Becker.
Segundo ele, o próximo passo da pesquisa é identificar se existem bactérias do microbioma dos anfíbios que conferem maior resistência à proliferação do fungo Bd na Mata Atlântica. Ao descobrir qual agente combate o fungo, pode ser possível formular probióticos para tentar proteger populações de anfíbios endêmicos ainda não afetadas, ajudando o microbioma a combater o fungo.
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