Desmatamento no Matopiba põe em risco o abastecimento de água de mais de 300 cidades

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Por Giovana Girardi em Agência Pública | Na região por onde o agronegócio mais avança no Cerrado, o chamado Matopiba (polígono entre as fronteiras dos Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), pelo menos 373 municípios correm risco de desabastecimento e de perda da qualidade de água se os níveis atuais de desmatamento se mantiverem nos próximos anos.  

É o que sugere uma análise lançada dia 22 de março, Dia Mundial da Água, por pesquisadores do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e do MapBiomas a partir de dados dos níveis de desmatamento observados pelo sistema SAD Cerrado no ano passado.

O levantamento, compartilhado com exclusividade com a Agência Pública, mostra a perda de vegetação pelo ângulo das bacias hidrográficas da região. O trabalho mostra em quais houve mais desmatamento e indica o que isso pode representar em termos de abastecimento tanto para uso humano, quanto para o agropecuário e também para a geração de energia.

De acordo com o SAD Cerrado, em 2022, 74,5% de todo o desmatamento no bioma ocorreu nas bacias dos rios Tocantins (210.804 hectares), São Francisco (116.367 ha), Parnaíba (105.419 ha), Itapecuru (88.049 ha) e Araguaia (78.368 ha). Nessas bacias estão 373 municípios, mas os impactos, estimam os pesquisadores, podem ir além. 

Os rios São Francisco e Parnaíba são fundamentais para o abastecimento de todo o Nordeste. Tocantins e Araguaia compõem também a bacia amazônica. São fontes de água para populações urbanas, rurais e também para o agronegócio.

Essas cinco bacias hidrográficas apontadas na análise — que foram as mais desmatadas do bioma no ano passado —, são também as que ainda mantêm os maiores remanescentes de vegetação nativa e estão na fronteira da expansão do agronegócio. 

Foto: Acervo IPAM. Expansão do agronegócio na região coloca 373 municípios em risco de perda da qualidade da água

“A gente quis identificar quais são as bacias que estão sendo mais afetadas atualmente no Cerrado. E é justamente nelas onde ainda estão os maiores remanescentes da vegetação. Outras regiões do bioma já foram muito mais desmatadas. Isso serve como um alerta. Ainda temos a oportunidade de manter a água no local se esse processo de desmatamento parar”, afirma Julia Shimbo, pesquisadora no Ipam e coordenadora científica do MapBiomas.

Já é bem entendido pela ciência o papel de caixa d’água que o Cerrado exerce no Brasil. É no bioma onde estão as nascentes de alguns dos principais rios do país e diversos estudos vêm mostrando que são as árvores do Cerrado que garantem o abastecimento dessas bacias. 

Com raízes maiores que as copas, e muito profundas, as árvores do bioma fazem com que o solo fique mais poroso, o que facilita uma maior penetração da água das chuvas, como uma espécie de esponja. E é essa água que fica armazenada no solo que depois volta para os rios nos períodos de seca, garantindo a vazão mesmo quando não há chuva.

Quase metade da vegetação original do bioma, porém, já desapareceu nas últimas décadas, e os impactos do desmatamento nesse ciclo hidrológico já estão ocorrendo e vêm sendo medidos por diversas pesquisas. 

Um trabalho liderado por pesquisadores da UnB (Universidade de Brasília), em colaboração com Ipam, UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Universidade Federal Rural da Amazônia e o Woodwell Climate Research Center, publicado em setembro do ano passado na revista Global Change Biology, calculou que a conversão da vegetação nativa em áreas de pastagens e agricultura já tornou o clima em todo o Cerrado quase 1°C mais quente e 10% mais seco.

Quase metade da vegetação original do bioma já desapareceu nas últimas décadas. Foto: José Cícero/Agência Pública
José Cícero/Agência Pública

Um outro estudo, publicado no fim de fevereiro no periódico Sustainability, analisou o comportamento de 81 bacias hidrográficas no Cerrado, entre 1985 e 2022, e concluiu que 88% delas já apresentaram diminuição da vazão em decorrência, principalmente, da mudança do uso do solo. Ou seja, desmatamento da cobertura nativa e substituição por práticas agropecuárias.

O trabalho, liderado pelo cientista florestal doutor Yuri Salmona, diretor executivo do Instituto Cerrados, com apoio do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), buscou identificar o tamanho da contribuição tanto da perda de vegetação quanto das mudanças climáticas na redução da água e concluiu que há uma combinação de fatores perigosa.

Pelos cálculos do grupo, composto também por pesquisadores da Universidade Estadual de Michigan (EUA), da UnB, da UFSCar, da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro e da Agência Nacional de Águas (ANA), as mudanças climáticas respondem por cerca de 44% da redução da vazão e as mudanças do uso do solo, por 56%. Mas um retroalimenta o outro.

Por um lado, sem a presença de árvores, o solo profundo não consegue armazenar água. “Com o desmatamento, a presença de grandes plantações de soja, por exemplo, a água da chuva vai correr mais superficialmente para os rios, não penetra no solo. Pode ter aumento de vazão nos períodos chuvosos, causando enchentes, alagamentos”, afirma Salmona. 

Por outro lado, lembra o pesquisador, a agricultura é a maior consumidora de água do país, de acordo com dados da ANA, sobretudo com irrigação. E é no Cerrado onde estão 80% dos pivôs de irrigação do país.

“Aí junta com o fator climático, que está mexendo com a quantidade de chuva. Está chovendo em períodos menores de tempo. O que era pra cair em seis meses, está caindo em três. Isso causa um efeito tipo de funil, um gargalo. O papel de esponja do solo, que já está prejudicado por causa do desmatamento, não consegue absorver tanta água que cai de uma vez. Ela escoa superficialmente, não ficando disponível para quando a reserva no solo profundo é mais necessária. É uma somatória de efeitos que vão aumentar a vulnerabilidade no período de seca”, ressalta Salmona.

O trabalho também avaliou o impacto que essa combinação de fatores pode ter nas vazões no médio prazo. A partir de modelagem matemática, os autores projetaram que até 2050 a redução no fluxo dos rios deve chegar a 34%, na comparação com os valores observados em 1985. “Isso causará severa descontinuidade de fluxo em muitos rios e afetará fortemente a agricultura, a produção de energia elétrica, a biodiversidade e o abastecimento de água, especialmente durante as estações secas naquela região”, escreve o grupo.

Salmona também chama atenção para o impacto no Matopiba. “É uma das áreas mais críticas, principalmente no oeste da Bahia, em municípios como São Desidério, Formosa do Rio Preto, Correntina e Barreiras. Lá os rios estão impactados pelo desmatamento e pela irrigação”, diz. Há também uma série de conflitos por terra e por água com comunidades tradicionais.

“O pessoal do agronegócio tende a ver a expansão da fronteira agrícola por aquela região como um modelo a ser replicado, mas isso não pode. Tem de ser revisto de modo a conter a sobreexploração de água. Ou a tendência é que os conflitos se agravem.”

Um outro dado divulgado em fevereiro reforça esse conflito pelo uso de água. Levantamento feito pela plataforma MapBiomas, que analisa por imagens de satélite as mudanças na cobertura do solo no país, desde 1985, observou uma espécie de “transferência” da água. 

Reservatórios criados para a geração de energia no Cerrado apresentaram no ano passado a maior superfície de água dos últimos 10 anos: 16,2% acima da média histórica. Já dentro de áreas protegidas, a cobertura de água diminuiu em 66% das regiões hidrográficas do bioma. De acordo com o mapeamento do projeto MapBiomas Água, 7 das 10 regiões mais afetadas estão na bacia dos rios Tocantins-Araguaia.


Este texto foi originalmente publicado pela Agência Pública de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Carolina Hisatomi

Graduanda em Gestão Ambiental pela Universidade de São Paulo e protetora de abelhas nas horas vagas.

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