Por Jornal da Universidade | Desde a Tia Nastácia do “Sítio do Pica-pau Amarelo” até a Val de “Que horas ela volta?”, as empregadas domésticas estão presentes nas casas dos brasileiros tanto dentro quanto fora da ficção – no país, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 5,7 milhões de pessoas atuam no trabalho doméstico. Nesse cenário, a pesquisadora Kelly Demo Christ buscou, durante o mestrado em Comunicação na UFRGS, compreender os lugares sócio-simbólicos das empregadas domésticas no cinema brasileiro. No estudo, orientado pela professora Miriam de Souza Rossini, a pesquisadora discutiu os aspectos de “ponto de partida”, “obediência”, “desobediência”, “solidão” e “afeto” presentes nas narrativas para entender o papel desempenhado pelas empregadas.
Os filmes selecionados para a pesquisa foram produzidos depois dos anos 2000 e tinham empregadas domésticas como personagens secundárias. Foram eles: “Cronicamente inviável” (2000), de Sérgio Bianchi; “A partilha” (2011), de Daniel Filho; “Trabalhar cansa” (2011), de Juliana Rojas e Marco Dutra; “O som ao redor” (2012) e “Aquarius” (2016), de Kleber Mendonça Filho; “Casa grande” (2015), de Fellipe Gamarano Barbosa; e “Domingo” (2018), de Clara Linhart e Fellipe Gamarano Barbosa. Para a análise, Kelly fez montagens com as cenas nas quais as personagens aparecem – os trechos montados estão disponíveis no blog Cinema de Porão, de autoria da pesquisadora.
Muito antes de Kelly começar o mestrado, ainda durante a graduação em Cinema e Audiovisual na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), a ideia de estudar as empregadas domésticas nas telonas já era de interesse da pesquisadora. Com a PEC das Domésticas em evidência e debates frequentes na faculdade sobre o assunto e outras questões sociais, a pesquisadora percebeu que essas personagens sempre estiveram ali, mas nem sempre eram vistas. “Às vezes elas são quase que objetos de cena, elas aparecem no fundo, aparece às vezes um braço, mas não aparece o rosto. Ali por 2014 e 2015 foi também um período em que surgiram filmes que as colocavam em lugar de protagonismo, como é o caso do ‘Que horas ela volta?’, que foi um filme que me marcou bastante”, relata Kelly.
A partir dessa observação – de que são poucos os filmes que colocam as empregadas como protagonistas –, Kelly decidiu utilizar os longas em que elas são personagens secundárias, pois haveria um material mais amplo para análise. “Se eu fosse falar sobre uma empregada doméstica que é protagonista da história, eu teria que analisar um filme ou dois, mas se eu falasse da secundárias eu podia falar de muitos filmes. E, também, ninguém fala das secundárias justamente porque se pensa que elas não vão render muito para discussão – eu já pensei o contrário”, completa.
Segundo a pesquisadora, as personagens secundárias têm muito mais a dizer sobre o imaginário construído sobre as empregadas no cinema do que as protagonistas, que costumam ser a exceção. Quando as empregadas são protagonistas, é possível entender todo o contexto da vida da personagem, algo que não costuma ser aplicado às personagens secundárias, das quais muitas vezes sequer se cita o nome.
“Quando estamos falando de lugar, também estamos falando de arquitetura, de espaço físico e da forma como as nossas casas são construídas. Muitas vezes, nos apartamentos, há um quarto de empregada nos fundos como se fosse uma herança da senzala, em que estamos dizendo que ali é o espaço dos nossos empregados. Por isso eu também discuto o lugar sócio-simbólico, mas também trabalhando dentro dessa ambiguidade”
Na dissertação, Kelly reuniu as cenas em que as personagens apareciam e fez uma montagem para analisar os lugares e papéis das empregadas. A primeira categoria foi chamada de “ponto de partida”, pois reuniu cenas das primeiras vezes em que as empregadas apareciam nos filmes. A partir disso, ela notou que havia muitas cenas que mostravam a relação do patrão com a trabalhadora. “Me incomodava a forma como eles falavam com elas. Isso ocorria muitas vezes de uma forma super-ríspida e, também, como se fosse um favor, como se fosse uma amiga a quem tu estás pedindo algo, e não a empregada doméstica, que é uma funcionária e com quem tu tens uma relação de trabalho”, afirma. Foi então que Kelly colocou essas cenas na categoria da “obediência”, em razão da grande frequência em que o exercício de poder estava presente nas narrativas.
Em contraste com a “obediência”, a pesquisadora também notou que a “desobediência” era um aspecto recorrente nas tramas, já que muitas vezes as empregadas quebravam o protocolo de convivência ou tinham comportamentos diferentes do esperado. De acordo com Kelly, são imaginários construídos no Brasil ao longo de muitos séculos, desde os períodos escravistas, e que ainda refletem no cinema. “É muito comum na cinematografia brasileira haver cenas em que as empregadas domésticas fazem coisas ‘erradas’ e ocultam das patroas. A patroa sai de casa, e ela aproveita para ficar na cama do casal, ou usar a roupa da patroa, ficar com o patrão, ou então sair para ficar com outra pessoa na rua, o que acontece no filme ‘O som ao redor’, por exemplo”, destaca.
Outro enfoque que chamou a atenção da pesquisadora foram as várias cenas em que as profissionais estavam sozinhas. Mesmo em momentos em que a trama se desenrolava com os protagonistas – muitas vezes as famílias dos filmes –, as empregadas apareciam rapidamente na cozinha se alimentando ou trabalhando. Essas cenas foram caracterizadas como “solidão”. “Grande parte da categoria deixa sua família em casa para ir cuidar da família de outras pessoas. Então, muitas vezes, elas estão deixando de cuidar dos próprios filhos para cuidar dos filhos da sua patroa”, explica Kelly.
Para discutir o outro lado, também foi destacada a categoria “afeto”, que contrasta com as imagens de “solidão”, mostrando relações entre empregadas e família que ultrapassam a esfera profissional. “Minha intenção era discutir especificamente esse afeto no sentido de haver uma relação entre patrões e empregados, ou entre filhos dos patrões e empregados, porque é muito comum na cinematografia e na realidade as empregadas acabaram ficando amigas e confidentes das patroas em função da convivência diária.”
A cinematografia brasileira ajuda a construir imaginários sobre aquilo que está apresentando e, seja como protagonistas, seja como personagens secundárias, as empregadas domésticas também têm papéis importantes nesse sentido. Kelly reflete que, cada vez mais, os filmes estão colocando empregadas domésticas como protagonistas e mostrando a vida dessas pessoas para além da profissão e das relações de trabalho. É o caso de uma das protagonistas de “Marte Um” (2022), de Gabriel Martins, que é empregada doméstica, mas cuja história não se resume a isso.
Outro ponto observado a partir da análise dos filmes é que as empregadas domésticas como personagens são construídas de diversas formas, ainda que todas elas partilhem de questões de classe e gênero, e a grande maioria de questões de raça. Essa constatação converge com a realidade do trabalho doméstico no país, já que as mulheres representam mais de 92% dos empregados domésticos, e entre essas mais de 65% são negras, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do IBGE.
“Eu acredito que a minha pesquisa faz com que as pessoas comecem a olhar para essas personagens como um pouco mais do que um objeto de cena ou uma pessoa que entra e sai sem nome. Porque muitas vezes elas estão ali nesses filmes meramente como se fossem um símbolo de status da família. Isso é meio absurdo porque elas deveriam ter nome, deveriam ter história, deveriam ter trajetória, assim como todos os personagens”, completa a pesquisadora.
Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da Universidade de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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