O genoma não é nenhuma “bola de cristal”, para dizer o que vai acontecer com a gente no futuro. Mas pode, sim, revelar muitas informações sobre o nosso passado e a história das populações que nos antecederam — inclusive daquelas que não existem mais, porque foram exterminadas ou propositalmente deletadas do registro histórico, como as centenas de populações indígenas que habitavam o Brasil antes da chegada dos europeus, e dos africanos que foram trazidos para cá pelo tráfico negreiro, cujos documentos foram destruídos após a abolição de escravatura.
O que se apaga do papel, porém, não se apaga tão facilmente do DNA. Uma parte do legado desses povos escravizados e extintos permanece viva no genoma da população brasileira, graças a um processo intenso de miscigenação, que cientistas da USP buscam elucidar melhor agora, “preenchendo com dados genéticos uma história que ainda tem muitos buracos”, diz a pesquisadora Tábita Hünemeier, do Instituto de Biociências (IB) da USP. Ela foi uma das participantes do USP Talks deste mês, ao lado da professora Lygia Pereira, também do IB, que tratou das origens históricas e das implicações clínicas da variabilidade genética do povo brasileiro.
Tábita e Lygia estão à frente de um projeto chamado DNA do Brasil, lançado em dezembro de 2019, que já sequenciou o genoma completo de 1,2 mil brasileiros, e almeja chegar a 15 mil. O objetivo é garimpar as informações contidas nesses genomas para identificar características genéticas, específicas da população brasileira, que possam ter relevância médica, e também resgatar histórias perdidas do processo — frequentemente violento — de colonização do Brasil.
“A gente consegue recuperar essa diversidade, tanto dos indivíduos que ainda existem quanto daqueles que foram extintos, ou do que restou deles dentro do DNA de populações miscigenadas, como é a população brasileira”, explicou Tábita, que é especialista em genética e ancestralidade de populações humanas. Isso porque muitas dessas populações tinham características genéticas específicas, que foram incorporadas ao genoma da população brasileira, por meio da miscigenação. Analisando um número grande de genomas, portanto, talvez seja possível elucidar de quais regiões e em quais épocas vieram pessoas escravizadas da África para o Brasil, e como o legado genético desses povos está distribuído pela população brasileira atual.
Estima-se, segundo Tábita, que mais de 5 milhões de pessoas escravizadas foram trazidas para o Brasil, de diversas partes da África. Além disso, estima-se que 4 milhões de indígenas, falando mais de mil línguas, já habitavam o território brasileiro antes das chegada dos europeus, em 1500. A maior parte dessas populações e etnias foi extinta no processo de colonização.
Os dados iniciais do DNA do Brasil confirmam o altíssimo índice de miscigenação histórica da população brasileira. Mais de 40% das variantes genéticas encontradas nesses primeiros 1.200 genomas são inéditas no mundo. “Estamos desbravando um território novo”, destacou Lygia.
Na área da saúde, o mapeamento dessa variabilidade genética extrema pode dar pistas importantes para o desenvolvimento de novas drogas, tratamentos e métodos diagnósticos que sejam “customizados” para a população brasileira. Cerca de 80% dos genomas que são usados como referência no mundo para o desenvolvimento dessa chamada “medicina de precisão” são de populações brancas — principalmente europeias e norte-americana, segundo Lygia. O problema é que nem tudo que se aplica a essas populações, do ponto de vista da saúde, se aplica da mesma forma a populações de ancestralidades diferentes, com características genéticas diferentes.
“Se a gente não sequenciar o genoma do brasileiro, o brasileiro não vai se beneficiar dessa medicina de precisão”, afirmou Lygia, que é chefe do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do IB.
Muitas empresas já oferecem serviços de sequenciamento genético, voltados para a identificação de características que impliquem em algum benefício ou risco para a saúde. Lygia recomenda cautela, porém, na interpretação dessas informações, já que muitas dessas características não são tão determinísticas quanto se imagina, e o conhecimento da ciência sobre a genética humana ainda é limitado. “Esse tipo de informação está sendo comercializado prematuramente, a meu ver”, disse. “O genoma não é uma bola de cristal.”
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