Com apoio do governo alemão, iniciativa aplica em comunidade de Santos metodologia de adaptação inovadora que investe na recuperação de ecossistemas para a diminuição da vulnerabilidade socioambiental
Por Malena Stariolo, do Jornal da Unesp | A cidade de Santos, no litoral paulista, tem sido pioneira na elaboração e implementação de planos de mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Por esse motivo, o governo de São Paulo escolheu dois projetos, desenvolvidos na cidade litorânea, para representar o estado durante a 27ª Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (COP 27). Os projetos foram: o Plano de Ação Climática de Santos (PACS), desenvolvido desde 2016, e o Projeto de Adaptação Baseada em Ecossistemas no Monte Serrat, que surgiu em 2019 a partir de uma parceria com o governo alemão.
O biólogo João Vicente Coffani Nunes, docente da Faculdade de Ciências Agrárias do Vale do Ribeira da Unesp, campus de Registro, participa do projeto do Monte Serrat desde 2019. Ele é o responsável pela aplicação da metodologia de Adaptação Baseada em Ecossistemas (AbE) na região do Monte Serrat. A AbE é uma metodologia proposta pelo Governo Alemão por meio da Cooperação Internacional (GIZ), que se baseia na utilização da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos como parte de uma estratégia de adaptação às mudanças climáticas. A iniciativa foi desenvolvida em parceria entre a Prefeitura Municipal de Santos e o Projeto ProAdapta, convênio entre o Governo Alemão e o Ministério do Meio Ambiente, executado pela GIZ Brasil, que visa uma ampliação, capacitação e divulgação sobre questões climáticas dentro do Brasil.
Situado em meio à Mata Atlântica, na região central de Santos, o Monte Serrat é o morro mais alto da cidade. Sua história remonta ao ano de 1603, quando a Igreja de Nossa Senhora do Monte Serrat foi erguida no cume da elevação. A região acabou sendo selecionada para o projeto de AbE por apresentar um histórico de deslizamentos, situação que a ocupação irregular tem agravado ao longo dos anos. Ademais, seu acesso é desafiador. Para irem e voltarem de casa, os moradores do local precisam recorrer diariamente à escadaria principal, que possui 402 degraus, ou a escadaria da rua Tiro Naval, que é mais estreita e de infraestrutura inferior.
Com o objetivo de diminuir a vulnerabilidade socioambiental da comunidade do Monte Serrat, a AbE começou a ser implementada no começo de 2019, contando com a participação ativa da comunidade. Coffani envolveu-se no processo a partir do segundo semestre de 2019, envolvendo-se com o planejamento e a aplicação de ações necessárias para a implementação da metodologia pioneira no país.
Em entrevista, o professor comenta em detalhes quais os objetivos da AbE, de que maneira a comunidade do Monte Serrat está sendo integrada ao projeto e a relevância da apresentação na COP 27.
Por que Santos é considerada uma cidade pioneira nos projetos sobre adaptação e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas?
João Vicente Coffani Nunes: A cidade é uma das poucas no Brasil que tem um banco de dados extenso sobre o município, com informações sobre climatologia e seu histórico de ocupação urbana. Desde antes da década de 1990, Santos foi pioneira em desenvolver um mapeamento geológico, responsável por identificar e categorizar todas as áreas de risco. Além disso, também é realizado um acompanhamento da variação do nível do mar, tanto para o mar aberto como para o mar estuarino. Além disso, a defesa civil de Santos tem um trabalho muito atuante, na cidade como um todo e, em especial, nos morros. Tudo isso foi fundamental para que Santos fosse colocada como uma cidade prioritária para o desenvolvimento de um projeto como o de Adaptação Baseada nos Ecossistemas.
Também é importante citar que Santos tem uma Comissão Municipal de Mudanças do Clima. Então você vê que, historicamente, a cidade tem uma preocupação com questões climáticas. Se considerarmos esse conjunto de fatores, a organização de Santos é colocada em uma posição diferenciada em relação aos demais municípios.
O que é a metodologia de Adaptação Baseada nos Ecossistemas?
A proposta dessa metodologia é buscar melhorar a adaptação do ser humano às mudanças do clima, possibilitando, por meio da recuperação do meio ambiente e do aproveitamento dos serviços ecossistêmicos, que as comunidades tenham uma melhor qualidade de vida e diminuição da sua vulnerabilidade e do risco climático. Dando o exemplo de uma área de morro: quando se retira a cobertura vegetal da área e casas são construídas, não se obtém um sistema de drenagem muito adequado, e isso ocasiona uma impermeabilização do solo. Isso faz com que, em períodos de chuva, o volume de água superficial que escorre seja grande e rápido. Por outro lado, quando se faz a recuperação de áreas verdes, aumenta-se a absorção de água pelo solo, diminuindo o impacto da chuva sobre a superfície, e desacelerando a velocidade dessas águas. Quando aproveitamos os serviços ecossistêmicos a nosso favor, nós conseguimos diminuir o impacto de eventos extremos e da mudança climática. Consequentemente, diminuímos o risco climático, que está relacionado à vulnerabilidade socioambiental de uma comunidade.
Para aplicar a metodologia, inicialmente é feito um mapeamento de uma região, a fim de identificar as áreas de vulnerabilidade e analisar qual é o risco climático de cada uma. Uma vez definidas as regiões, é feito um trabalho, junto com a comunidade, visando a recuperação desses espaços, adequando as ações de maneira a conciliar as necessidades da comunidade com a viabilidade técnica.
A partir da parceria com a GIZ, foram escolhidas duas áreas de ocupação que apresentavam um altíssimo risco de desmoronamento no Monte Serrat. Posteriormente, houve uma conversa com as famílias que moravam nessas áreas, para que pudessem sair de lá. Atualmente, o projeto de recuperação será desenvolvido nessas áreas desocupadas, tendo como base algumas sugestões da própria comunidade.
É importante ressaltar que o projeto não é um pacote tecnológico, mas um conjunto de propostas a serem construídas com a participação interativa das equipes, tanto técnicas como da comunidade onde ele será realizado. Essa característica garante sua replicabilidade em outras regiões, mesmo fora de Santos. A ideia, inclusive, é que ele seja replicável.
Apesar da ocupação irregular ter impactos na preservação do meio ambiente, e até mesmo aumentar os riscos para as pessoas que residem nestes locais, esses moradores criam um senso de comunidade e desenvolvem relações interpessoais, compartilhando costumes e rotinas. De que maneira o projeto lidou com essas particularidades no momento de realocação das famílias?
João Vicente Coffani Nunes: Todas as famílias consultadas optaram por se mudar. Para elas, foi oferecido um apartamento em um conjunto habitacional do município, na própria ilha, em Santos, para que não ficassem longe do seu trabalho. A saída ocorreu de uma maneira muito humanitária, no sentido de que foi respeitado o sistema social dessas pessoas. Elas não foram acomodadas em apartamentos sorteados; cada pessoa escolheu seu apartamento. Isso permitiu escolher os vizinhos e preservar a rede de contatos e de apoio. Dessa forma, o ambiente social que existia no morro foi mantido no conjunto habitacional.
Vale ressaltar que a AbE é uma metodologia focada no ser humano, na comunidade, e que usa o meio ambiente como um processo, para facilitar a adaptação das pessoas. Então, não é um projeto de restauração ambiental, é um projeto focado nas pessoas para diminuir o impacto das mudanças climáticas, em especial os efeitos dos eventos extremos, possibilitando que essa comunidade se mantenha e mantenha sua estrutura social.
Grande parte da metodologia da AbE se baseia na participação da comunidade, tanto na fase de planejamento sobre a ocupação dos espaços, como na sua execução. De que maneira a comunidade do Monte Serrat foi incluída nesses processos?
João Vicente Coffani Nunes: Primeiro, a associação de moradores, conhecida como Associação de Melhoramentos, foi convidada para uma reunião, na qual foi apresentada a metodologia e a proposta do projeto. Eles concordaram que era uma proposta válida. Posterior a essa reunião, em fevereiro de 2020, foram feitas oficinas com a comunidade, em duas tardes de sábado. Na primeira tarde foi feita a apresentação da metodologia e, na segunda, foram levantadas propostas da comunidade sobre como utilizar as áreas desocupadas.
Bom, durante essas discussões, algumas das propostas que surgiram consistiam em transformar as regiões desocupadas em um roteiro ampliado da visitação turística, porque têm potencial para se tornar um mirante para o outro lado da cidade. Isso está dentro da proposta, porque é um trabalho de baixo impacto, não tem adensamento populacional. Em locais de menor risco, conforme a viabilidade técnica e sugestões da comunidade, será feita a implantação de aparelho público. As mães falaram que é necessário um playground, porque as crianças não têm onde brincar, e também mostraram interesse em ter uma horta de plantas medicinais. Isso são coisas que vão ser discutidas para determinar de que maneira serão executadas porque, a princípio, são sugestões viáveis de serem aplicadas.
Dentro da proposta do projeto, também está criar possibilidades de renda para as pessoas do local. Por esse motivo, foi feito o mapeamento dos serviços prestados por pessoas da comunidade. Então, por exemplo, nos dias das oficinas, em vez de contratar um buffet para fazer o coffee break, foi buscado na comunidade quem poderia prestar esse serviço. Como eram dois dias, foram contratadas duas pessoas. Outro exemplo, o Monte Serrat não tem rua, os carros não chegam até lá, então existem profissionais que são os carregadores. Qualquer compra de móveis, qualquer obra, qualquer reforma que a pessoa fizer, é necessário contratar um carregador. No mapeamento dos serviços, também foi encontrada uma empresa de podas de árvores. Eles participaram das oficinas e das reuniões e devem ser contratados para fazer o plantio de árvores nas áreas desocupadas. Esse é um processo importante de entender: para fazer o projeto, mesmo tendo uma equipe da prefeitura, é importante respeitar a estrutura da comunidade e contratar pessoas de lá para atuar na sua execução.
Além disso, ao mesmo tempo em que a comunidade participa do planejamento, ela se torna corresponsável pelo processo e pela própria fiscalização, porque as áreas desocupadas não podem ser reocupadas. Eles mesmos ajudam nesse controle, pois estão cientes do que está acontecendo. Eu comecei a participar em 2019, os moradores já tinham se mudado, as casas já tinham sido demolidas e até hoje nada foi construído no lugar delas. Então essa questão está sendo bastante respeitada pelos moradores.
O sumário executivo do Plano de Ação Climática de Santos (PACS) informa que o projeto interrompido em 2020 e retomado no começo de 2021. Qual é a situação atual do projeto?
João Vicente Coffani Nunes: Em fevereiro de 2020, após as oficinas com a comunidade, Santos começou a sofrer chuvas torrenciais, classificadas como eventos extremos. Para termos uma ideia, no mês de fevereiro, a média de chuvas em Santos é por volta de 280 mm. Mas em fevereiro de 2020 choveu mais de 700 mm. Se você pensar que as cidades foram construídas nas médias de precipitação dos últimos 50 anos, não há como a estrutura urbana de qualquer município comportar esses eventos. Ainda mais em uma área de crescimento irregular.
Com as chuvas, o projeto foi interrompido porque a comunidade se voltou para si, para uma rede de apoio. Na oficina foi perguntado o que acontecia com eles quando as chuvas começavam. Aa resposta foi “a gente começa a não dormir, a ter ansiedade. Quando vemos chuvas muito fortes, a gente fica de vigília para saber se vai precisar sair correndo ou não. Se cair uma parede da casa, nós temos que construir. Com isso, as pessoas acabam perdendo o emprego, porque começam a faltar no trabalho. As crianças deixam de frequentar a escola, pois mesmo que consigam ir, é difícil voltar para casa, porque exige subir ‘cachoeira acima’ as escadas.” Isso mostrou aspectos psíquicos, emocionais e de estrutura social e financeira que são abalados pela chuva. Nós, que não passamos por isso, ne, fazemos ideia. A verdade é essa, a gente não faz ideia. O Arquimedes, que é o presidente da Associação de Melhoramentos, em fevereiro de 2020 fez um post impressionante. Ele está falando em um vídeo e, atrás dele, tem uma cachoeira. A cachoeira é a escadaria do Monte Serrat. Ter contato com essas realidades foi algo muito forte para mim.
Depois das chuvas, veio a COVID-19. Passamos dois anos sem poder subir ao morro. Agora está em andamento uma retomada. Foi feita uma cartilha para esse processo, fizemos uma visita ao morro para falar sobre o projeto, é algo que está voltando. Apesar desse hiato, nós fomos bem recebidos pela comunidade. Isso me fez pensar que foi feito um bom trabalho até agora. Eles entendem que a paralisação do projeto não foi por uma questão política. Ele não vai acabar com a mudança do governo. Mesmo que a equipe técnica seja da prefeitura, eles são comprometidos, querem continuar com o projeto e replicar a experiência para outras áreas do município, isso faz muita diferença na confiança que se estabelece junto a comunidade. O nosso papel é mostrar que estamos correndo atrás.
O projeto da AbE no Monte Serrat foi escolhido para representar o estado de São Paulo na COP 27. Quais motivos levaram a essa escolha e qual é a importância de apresentar o projeto em um espaço de grande visibilidade internacional?
João Vicente Coffani Nunes: São Paulo levou Santos como modelo porque é o único projeto de adaptação às mudanças climáticas sendo executado. O projeto do Monte Serrat é um piloto, não só para São Paulo, mas para o Brasil. É o primeiro projeto de adaptação feito dentro de uma área urbana, dentro de uma área de morro e que está em execução. Isso é um grande diferencial.
É importante ressaltar que ele não está em um estágio avançado, mas ele representa um exemplo concreto. Parece pouco, as casas estão demolidas e nada foi feito na área desocupada, mas veja quantas ações já foram realizadas na construção da relação com a comunidade e na capacitação da equipe de Santos. Isso é difícil de quantificar, no entanto, é isso que vai dar sustentação para levar o projeto adiante.
A importância de Santos ser vista nesse nível é que aumenta a responsabilidade do município em dar continuidade ao projeto porque, bem ou mal, quando muda de uma prefeitura para outra você não sabe exatamente o que vai acontecer. Então, ter esse holofote sobre Santos aumenta a responsabilidade do município na execução do projeto, isso fortalece as equipes e dá mais segurança para a comunidade. Esse é o aspecto principal, para nós, de ter essa visibilidade. É um projeto, o do Monte Serrat, mas todas as ações necessárias para sua execução têm um efeito sinérgico no processo. Isso fortalece o município, e o município é pioneiro nesse conjunto de ações no Brasil.
Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da Unesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.