Por Maria Fernanda Ziegler, da Agência FAPESP | O desenvolvimento da Amazônia tem sido pensado pelos governos federais a partir de grandes obras de infraestrutura, como as hidrelétricas, que embora tenham um impacto brutal pouco trouxeram de benefício para a região. Nessa dinâmica, problemas sociais e ambientais comuns a essas grandes obras permanecem invisíveis, cabendo a documentários servirem de instrumento de difusão e legitimação de narrativas pelas vozes da população impactada.
Essa é a conclusão de especialistas que participaram do segundo evento da série “Amazônia em imagem e movimento: as histórias do extrativismo da Amazônia registradas pelas lentes do documentário nacional”, organizado pela FAPESP.
A proposta de debate partiu de pesquisadores que integram o projeto “Depois das Hidrelétricas: Processos sociais e ambientais que ocorrem depois da construção de Belo Monte, Jirau e Santo Antônio na Amazônia Brasileira“, coordenado pelo professor da Universidade Estadual de Campinas Emilio Moran e apoiado pela FAPESP no âmbito do programa São Paulo Excellence Chair (SPEC).
“Documentários, podcasts e demais mídias sobre os impactos da construção de hidrelétricas, realizados com a participação das comunidades impactadas e que foram expulsas de seus territórios, têm um papel fundamental. É importante que o mundo e o Brasil tenham conhecimento das violências sociais e ambientais que vêm ocorrendo como consequência desses empreendimentos na Amazônia”, afirmou Josefa de Oliveira Câmara da Silva, geógrafa e liderança do Conselho Ribeirinho e do Movimento Xingu Vivo para Sempre em Altamira, no Pará.
Silva ressaltou que, com a construção de Belo Monte, comunidades foram expulsas de seus territórios e tiveram seus direitos negados. “Com Belo Monte, houve impacto nas comunidades ribeirinhas, indígenas e da própria população que vive na cidade de Altamira. E a visibilidade da mídia ajudou em muitas causas, como a busca de direitos que a empresa negava e fazia desconhecer essas comunidades como impactadas pela obra”, disse.
Destacou ainda que, durante a construção da barragem, os movimentos sociais foram rapidamente sendo silenciados. “O movimento Xingu Vivo, do qual eu faço parte, foi criminalizado, assim como pessoas da nossa comunidade que resistiram, pois não queriam sair de seus locais, nem parar de pescar. Com a chegada de um número muito grande de pessoas na nossa região tivemos impacto na saúde, educação e no nosso modo de viver”, diz Silva.
No webinário foram debatidos dois documentários Belo Monte: Depois da Inundação e Damocracy, ambos realizados pelo cineasta canadense Todd Southgate. Nos dois filmes, Southgate apresenta a visão de moradores atingidos pelas hidrelétricas na Amazônia brasileira.
Um dos temas abordados é o desaparecimento de peixes no rio Xingu – fonte de alimento e renda para indígenas e ribeirinhos – após a barragem de Belo Monte.
Com a inundação de uma grande área, a reprodução e alimentação dos peixes ficaram comprometidas. O filme mostra que só na região do reservatório mais de 50 piracemas foram extintas, impedindo a reprodução dos peixes. Na área em que a vazão do rio foi reduzida, espécies como pacu, curimatã e matrinxã desapareceram por completo, pois a água não alagou o suficiente para que os peixes pudessem se alimentar.
As consequências foram devastadoras para pescadores e moradores locais. “A gente teme com o que pode acontecer de agora em diante. Porque sobrevivemos do peixe. Para eu sobreviver hoje tenho que comprar em Altamira e é carne e frango, que a gente não tem o costume de comer”, afirma um pescador no documentário Belo Monte: Depois da Inundação.
No seminário on-line, Southgate afirmou que, durante a gravação do documentário, viu que as preocupações vislumbradas por cientistas e ambientalistas antes das obras estavam se tornando realidade.
Segundo estudos realizados pelo programa SPEC, a construção da hidrelétrica de Belo Monte, na região de Altamira, teve como resultado final a conversão massiva de comunidades que viviam integradas à floresta e ao rio em uma população que vive na pobreza.
“Apesar de todos os nossos problemas, é muito positivo que organizações e documentaristas venham à nossa região e façam essa parceria junto à nossa comunidade. Esses documentários têm nos dado visibilidade até hoje. Temos consciência de que apenas com a nossa organização não teríamos conseguido apresentar as nossas narrativas”, disse Silva.
“Hoje temos anunciados novos empreendimentos no nosso território. Por isso, é importante que as mídias produzidas ajudem que nossa voz chegue até a Justiça e às pessoas que apoiam esses empreendimentos construídos na região amazônica”, completou.
Silva contou que, atualmente, o conselho ribeirinho de que faz parte tem por objetivo a reterritorialização das famílias para áreas próximas ao rio.
“Atualmente, o conselho é formado por 321 famílias ribeirinhas. Um total de 121 famílias já foram reassentadas de forma aleatória pela Norte Energia [empresa que construiu Belo Monte], antes da criação do conselho. Temos outras 200 famílias que estão retornando para perto do rio de forma aleatória. No entanto, temos uma proposta para a criação do território ribeirinho que visa mudar a forma pela qual a Norte Energia reassentou os primeiros ribeirinhos”, contou.
Chega de lendas, vamos faturar
Durante o seminário on-line, Evandro Moretto, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), trouxe o contexto histórico do modelo econômico que prioriza a construção de hidrelétricas na região. “Os documentários podem trazer à luz o que o modelo hegemônico invisibiliza da biodiversidade e dos modos de vida da região amazônica, além, é claro, dos vários problemas que aparecem depois que esses megaprojetos são construídos”, disse.
Para demonstrar que essa lógica segue sendo repetida em diversos governos, Moretto lembrou de uma propaganda da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), na década de 1970, cujo slogan era “Chega de lendas, vamos faturar”.
Para Moretto, o cartaz evidencia duas ideias muito poderosas e, embora ele seja do período da ditadura militar, utiliza conceitos que já estavam presentes desde a colonização.
“A primeira ideia é o ‘vamos faturar’, que nos lembra qual modelo hegemônico o Brasil pensa para a Amazônia. É o crescimento econômico de fora para dentro, sem olhar para a região e as características mais importantes. Embora antigo, atualmente esse conceito parece estar sendo revisitado e reeditado a partir das práticas de ocupação”, afirmou.
A segunda ideia, ressaltou Moretto, está no “chega de lendas”. “Essa ideia invisibiliza elementos sócioecológicos em benefício do modelo de desenvolvimento baseado no crescimento econômico de escala nacional. São ideias tão antigas quanto atuais, que nos permitem compreender o motivo de as hidrelétricas com seus vários problemas atrelados sigam sendo planejadas e construídas ainda hoje”, disse.
Outro exemplo de invisibilização das comunidades locais, citado pelo pesquisador, está nas avaliações de impacto ambiental das hidrelétricas, que não contam com a participação dos afetados pelas grandes obras.
“As avaliações de impacto ambiental ainda são muito padronizadas, com indicadores insuficientes, que não trazem à luz questões específicas de cada obra. Normalmente, elas abordam apenas os impactos mais comuns em vários empreendimentos”, ressaltou.
Para Moretto, o problema tem origem no termo de referência [documento que aborda o que será avaliado]. “É nesse momento de planejamento que deveria haver a participação pública. As pessoas querem participar, mas não têm abertura, não tem protocolo de consulta prévia para priorizar as questões que elas consideram mais importantes. A consequência é que os estudos não são representativos dos problemas mais importantes”, diz Moretto, que também é diretor científico da Associação Brasileira de Avaliação de Impacto.
A série de webinário “Amazônia em imagem e movimento: as histórias do extrativismo da Amazônia registradas pelas lentes do documentário nacional” é composta por três encontros virtuais.
A primeira mesa abordou as transformações da atividade extrativista na Amazônia e como tais transformações vêm sendo registradas pelo documentário nacional. A íntegra do evento está disponível em: www.youtube.com/watch?v=TbaACBwT3VM&ab_channel=Ag%C3%AAnciaFAPESP.
O segundo evento debateu a relevância da divulgação, por meio de filmes, de outras versões da história na legitimação de narrativas sobre os impactos dos megaempreendimentos hidrelétricos concretizados na Amazônia brasileira nas duas primeiras décadas do século 21. Para assistir acesse: www.youtube.com/watch?v=6988Ep67U48.
A terceira mesa, que encerra o ciclo de webinários, trata das produções mais recentes, que alertam sobre as consequências do extrativismo, em especial a mineração, realizadas por cineastas e coletivos audiovisuais provenientes dos próprios territórios afetados.
Este texto foi originalmente publicado pela Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.