“Jeca Tatu não é assim. Ele está assim”. Essa é a frase usada por Monteiro Lobato para justificar a preguiça de um dos seus personagens mais famosos. A história que todos conhecemos mostra um caipira preguiçoso que passa os dias bebendo e não fazendo nada. Essa foi a sua rotina durante anos, até que um médico, espantado pela sua pobreza, resolveu examiná-lo, diagnosticando-o como portador de “amarelão”.
O “amarelão” é uma doença tropical, causada por vermes que entram no organismo via epiderme, principalmente pelos pés. Como Jeca Tatu morava em um lugar muito sujo e vivia descalço, acabou contraindo a doença sem perceber. Após um tratamento com remédios e o uso de um par de botas, ele se transformou em uma pessoa ativa, saudável e trabalhadora e sua fazenda prosperou como nunca antes.
Muitos acreditam que o autor estava criticando o espírito brasileiro, oriundo do descaso do governo, que transformava o cidadão brasileiro em um ser mediano, que não tinha condições de aspirar nada melhor na vida. Pois bem, ressalvas à parte, essa crítica é cabível, pois todos precisam de condições mínimas para serem pessoas respeitáveis e que possam ter algo que seja mais que uma mera subsistência – viver com o suficiente não é algo ruim, mas viver com qualquer coisa só por viver tampouco é correto.
Apesar de saneamento e outras necessidades básicas ainda serem uma preocupação no Brasil, é natural que tenhamos uma evolução no patamar de vida do brasileiro; 95 anos depois da publicação da história do Jeca Tatu, milhões de pessoas deixaram a linha da pobreza e outros milhares ascenderam à classe média. Porém, para alguns políticos, o povo ainda merece “estar” como o caboclo de Monteiro Lobato.
“Milhares de brasileiros que ganham salário mínimo ou que não ganham nada e que, portanto, precisam comer alimento com defensivo sim. Porque á a única forma de se fazer alimento mais barato”. Essas são as palavras da senadora Kátia Abreu, do PSD, ditas em 2011, quando ela queria que a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) agilizasse a aprovação de agroquímicos. O pedido pegou mal, principalmente por conta dos casos de intoxicação do leite materno por agrotóxicos, no Mato Grosso.
Nessa ocasião, todas as amostras de leite materno de um grupo de sessenta e duas nutrizes locais apresentaram pelo menos um tipo de agrotóxico analisado pela ANVISA. Os resultados podem vir da exposição ocupacional, ambiental e alimentar do processo produtivo da agricultura que expôs a população a 136 litros de agrotóxico por habitante na safra agrícola de 2010. Nessa exposição estão incluídas as gestantes e nutrizes, que podem ter sido contaminadas nesse ano ou em anos anteriores.
Atualmente, o Brasil é o país que mais usa agrotóxico no mundo.
A ABRASCO (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) produziu um dossiê (veja na íntegra) sobre o tema, que apontou que na safra de 2011 no Brasil foram plantados 71 milhões de hectares de lavoura temporária (soja, milho, cana, algodão) e permanente (café, cítricos, frutas, eucaliptos). Isso corresponde a cerca de 853 milhões de litros (produtos formulados) de agrotóxicos pulverizados nessas lavouras, principalmente de herbicidas, fungicidas e inseticidas, representando média de uso de 12 litros/hectare e exposição média ambiental/ocupacional/alimentar de 4,5 litros de agrotóxicos por habitante.
As maiores concentrações de utilização de agrotóxicos coincidem com as regiões de maior intensidade de monoculturas de soja, milho, cana, cítricos, algodão e arroz. Mato Grosso é o maior consumidor de agrotóxicos, representando 18,9%, seguido de São Paulo (14,5%), Paraná (14,3%) e Rio Grande do Sul (10,8%), segundo o IBGE (2006), SINDAG (2011) e Theisen (2012).
Ainda existem dados mais alarmantes: um terço dos alimentos consumidos cotidianamente pelos brasileiros está contaminado pelos agrotóxicos, segundo análise de amostras coletadas em todas as 26 Unidades Federadas do Brasil, realizadas pelo Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA) da ANVISA (2011).
Mesmo que alguns dos ingredientes ativos possam ser classificados como medianamente ou pouco tóxicos – baseado em seus efeitos agudos – não se pode perder de vista os efeitos crônicos que podem ocorrer meses, anos ou até décadas após a exposição, manifestando-se em várias doenças, como cânceres, malformação congênita, distúrbios endócrinos, neurológicos e mentais (entenda mais sobre os efeitos dos agrotóxicos).
Existe o perigo de contaminação da água que, apesar de ser um assunto pouco pesquisado no Brasil, é preocupante. Segundo o IBGE, juntos, o esgoto sanitário, os resíduos de agrotóxicos e a destinação inadequada do lixo foram relatados como responsáveis por 72% das incidências de poluição na captação em mananciais superficiais, 54% em poços profundos e 60% em poços rasos. Ou seja, a presença de agrotóxicos nas fontes de água usadas para consumo e irrigação é real, mesmo que não se possa mensurar precisamente o quanto.
Outra importante questão envolvendo o uso dos agrotóxicos é a sua regulamentação. De acordo com o EMBRAPA:
A classificação dos produtos agrotóxicos é apresentada no parágrafo único do art. 2º da Lei, sendo classificados de acordo com a toxicidade em:
classe I – extremamente tóxico (faixa vermelha); classe II – altamente tóxica (faixa amarela); classe III – medianamente tóxica (faixa azul); classe IV – pouco tóxica (faixa verde).
O artigo 72 trata das responsabilidades para todos os envolvidos no setor. São responsáveis, administrativa, civil e penalmente pelos danos causados à saúde das pessoas e ao meio ambiente as seguintes pessoas:
Diante desse cenário, parece que os agrotóxicos são uma verdade absoluta que o mundo moderno professa como necessária. Assim como a senadora Kátia Abreu, muitos dizem ser impossível que se produzam alimentos sem o auxílio dos agrotóxicos. Mas outros – como o coordenador da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, Cléber Folgado – questionam.
Em entrevista, Cléber disse que é possível produzir alimentos em quantidade suficiente para atender as demandas da população sem o uso de agrotóxicos: “Hoje, a agricultura familiar produz 70% da comida que chega à mesa dos brasileiros, e faz isso com pouco veneno. De acordo com o Censo agropecuário do IBGE, apenas 30% das pequenas propriedades usam agrotóxico. Das grandes propriedades, são 80%. O que acontece é que a soja e o milho produzidos com muito agrotóxico acabam sendo exportadas como ração pra China”.
A respeito dos problemas de saúde que chegam à Campanha, Folgado é claro em dizer que o maior perigo são as intoxicações crônicas. “São pequenas quantidades de agrotóxico que vão se acumulando no organismo ao longo dos anos e às vezes com 5, 10, 15 anos, isso varia de organismo para organismo, dá problema. Aí tem várias doenças. Por exemplo, infertilidade masculina, muito comum, ou má formação das crianças. Outro problema muito grave é o câncer”, complementa.
Quanto ao futuro dos agrotóxicos ou ao uso deles em excesso, Cléber Folgado isenta a Legislação de culpa e afirma que o problema está na fiscalização feita pelas agências reguladoras : “A legislação brasileira de agrotóxicos é boa. O problema é que a maior parte do que está no papel não é cumprida ou cumprida apenas pela metade, porque o Estado não oferece condições para as agências fiscalizarem”.
Os biopesticidas aparecem como uma alternativa ao uso de agrotóxicos. Sua criação veio através da biomimética, área da ciência que estuda as estratégias e soluções da natureza para seus problemas, para que possam ser utilizadas pelo homem. Entre as vantagens do uso dos biopesticidas estão a menor toxicidade e o fato de causarem problemas apenas a pestes específicas, e não a pássaros e mamíferos (veja mais).
Segundo a EMBRAPA, em 2012, uma parceria com a Secretaria de Agricultura do Estado do Ceará possibilitou a construção de uma biofábrica para a produção de biopesticida BT, para ser distribuída gratuitamente entre pequenos produtores do estado, com propriedades de 2 a 10 hectares. A previsão é de que mais de 5.000 famílias já foram beneficiadas, tanto financeiramente, devido ao menor custo do biopesticida em relação ao defensivo convencional, quanto ambientalmente, por causa da não contaminação de rios e nascentes por produtos químicos
Apesar de algumas iniciativas sustentáveis pulularem por algumas regiões do País, ainda há muito a ser discutido para que possamos ter um desfecho satisfatório para ruralistas e ambientalistas. O grande problema é que, enquanto isso, pessoas podem ser lesadas e pagarem um preço muito alto: sua saúde. No caso do Jeca Tatu, o remédio foi um par de sapatos. Mas, infelizmente, a solução não é tão simples para àqueles afetados pela exposição química no uso e no consumo de agrotóxicos. Decerto a vocação agropecuária de nosso país é enorme, em sua fronteira agrícola reside o potencial para solução dos problemas com a fome para além de nossa própria nação. Trata-se de um ativo estratégico, portanto é inegável a importância deste setor da economia para o país. No entanto, não se justifica, em hipótese alguma, o argumento de que seja necessário e fundamental o envenenamento das pessoas que consomem estes produtos, por quaisquer motivos apresentáveis. A questão, embora complexa, reside em um fundamento básico que aponta o nível de civilidade da espécie, a ética que a norteia, elemento escasso em algumas instâncias de poder, infelizmente.
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