É preciso estimular formas de alimentação como a agricultura urbana

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“O sistema alimentar global é hoje o mais importante vetor de destruição da biodiversidade, o segundo determinante das mudanças climáticas e uma ameaça decisiva à saúde humana.” É com essas palavras que o professor Ricardo Abramovay, do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, inicia um artigo sobre os desafios da produção e consumo de alimentos no mundo.

Esse sistema interconecta diversas partes do processo produtivo, tem caráter econômico e está diretamente relacionado com o avanço da fome no mundo. A guerra entre Rússia e Ucrânia, dois importantes produtores agrícolas, e a imposição de barreiras comerciais são responsáveis por elevar o preço dos alimentos e agravar ainda mais essa crise. Ao Jornal da USP no Ar 1ª Edição, Abramovay analisa esses cenários.

Alimentação em crise

O professor conta que a agricultura contemporânea contribuiu para reduzir a fome no mundo a partir dos anos 1960, quando atingia mais da metade da população. “Hoje ela atinge um número escandaloso de mais de 800 milhões de pessoas, mas isso corresponde a 10% da população mundial, houve um avanço muito grande.”

Esse avanço foi possível durante a chamada Revolução Verde, quando a utilização de novas tecnologias permitiu a modernização da agricultura e o aumento da produtividade. “Mas essas tecnologias geraram as fragilidades que nós enfrentamos agora”, afirma Abramovay. Essas técnicas são altamente dependentes de fertilizantes químicos e agrotóxicos e exigem uma grande concentração das produções em culturas extensas.

“Alguns poucos países concentram a grande maioria da oferta de grãos no mundo. Quando dá algum problema nessas regiões, o conjunto do sistema sofre.” A guerra entre Rússia e Ucrânia ilustra esse aspecto: juntas, elas correspondem a 10% da produção global de calorias, 30% das exportações mundiais de trigo e 60% das de óleo de girassol. E a guerra tem prejudicado não só a produção, mas também o escoamento e distribuição para os muitos países que importam grãos dessas duas nações. 

Quando fala em problemas, o professor refere-se também às questões climáticas. Outros grandes produtores globais como Índia, França e Estados Unidos sofrem com secas intensas atualmente. O cenário brasileiro é semelhante: os episódios de seca no País implicaram prejuízos de R$ 70 bilhões em alguns Estados. “A Revolução Verde funcionou até determinado momento. Agora, de certa forma, o tiro está saindo pela culatra”, avalia. “São técnicas que estão empobrecendo cada vez mais o solo, exigindo cada vez mais insumos químicos.”

A concentração, segundo o professor, reflete-se também na oferta de alimentos para os consumidores. “Quando a gente entra no supermercado a gente tem a impressão de que tem uma variedade enorme de alimentos, não é assim. O que nós temos é o consumo de um número restrito de alimentos naturais e muitos aditivos industriais”, afirma. Isso é prejudicial à saúde e um dos fatores da pandemia global de obesidade. 

“Não basta dizer que quando a guerra terminar e o comércio voltar o problema da fome estará resolvido. Não, o problema da fome precisa de políticas voltadas a oferecer renda e alimentação adequada sobretudo para as populações mais pobres. E, em segundo lugar, exige um sistema agroalimentar que seja adequado às necessidades humanas. Nós não podemos continuar consumindo tantos alimentos ultraprocessados.”

Estoques e agroecologia

Apesar dos avanços citados pelo professor, a fome ainda é uma realidade. Isso é especialmente grave se considerarmos que a quantidade de grãos produzida é mais que suficiente para alimentar a população mundial. O problema é que uma parte cada vez menor desses produtos é destinada à alimentação humana.

“Hoje, 70% dos dez grãos mais importantes produzidos pela humanidade voltam-se a finalidades que não são diretamente a alimentação humana nos países em que eles são produzidos. Esses grãos são exportados, transformados em proteínas animais, em energia ou transformados em outros usos industriais”, afirma Abramovay.

O professor defende a manutenção dos estoques de alimentos monitorados pela Organização das Nações Unidas em países produtores. “É inadmissível em um país como o Brasil, que está entre os quatro maiores exportadores globais de alimento, nós termos uma situação em que metade da população passa por insegurança alimentar e 20 milhões de pessoas passam fome, literalmente”, questiona. Abramovay vê com otimismo as mudanças no sistema produtivo rumo à agroecologia. Ele cita iniciativas para reduzir o uso de agrotóxicos e fertilizantes, a produção de calorias e adaptar a produção alimentar às necessidades das pessoas.

“Nós precisamos estimular a agricultura urbana, periurbana e vertical, ou seja, formas de alimentação mais próximas às pessoas.” Para ele, a produção de alimentos não precisa visar apenas ao mercado mundial. “Claro, para uma parte do setor agroalimentar isso sempre vai ser importante, mas é fundamental que o sistema se volte também às reais necessidades das pessoas, não só em termos de proteínas e calorias, mas em termos de um conjunto de nutrientes que só existem nos alimentos frescos, que devem estar disponíveis para a grande maioria da população, o que hoje está muito longe de acontecer”, finaliza.

Este texto foi originalmente publicado por Jornal da USP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Vitor Barreiros

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