Elétricos movidos a etanol

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Por Domingos Zaparolli em Revista Pesquisa Fapesp – Combustível renovável e amplamente disponível no país, o etanol está sendo avaliado como uma opção para movimentar veículos elétricos, substituindo a eletricidade da rede pública e dispensando o sistema de recarga do tipo plug-in, por meio de tomadas, das baterias de lítio. A corrida para que essa alternativa chegue ao mercado é disputada por grupos de pesquisa em universidades, empresas do setor automotivo e centros de estudos no Brasil e em outros países. A solução passa pelo desenvolvimento de um modelo de célula a combustível movida a etanol que seja técnica e economicamente viável. Espécie de bateria que converte a energia química em elétrica, as células a combustível tradicionalmente utilizam hidrogênio como insumo.

Algumas montadoras de automóveis e fabricantes de autopeças instalados no país firmaram acordos para o desenvolvimento dessa tecnologia. Parte desses entendimentos tem a participação do Centro de Inovação em Novas Energias (Cine), um Centro de Pesquisa em Engenharia (CPE) apoiado pela FAPESP e a Shell que reúne pesquisadores das universidades Estadual de Campinas (Unicamp) e de São Paulo (USP) e do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen).

A parceria mais antiga e avançada envolve a montadora japonesa Nissan e o Ipen. Firmada em 2019, foi renovada em junho deste ano após obter avanços. “A tecnologia da célula a combustível a etanol permite abastecer o veículo com esse combustível em qualquer posto do país, como já ocorre hoje. A partir daí, o etanol é convertido [em moléculas de hidrogênio e gás carbônico] e o hidrogênio resultante do processo é injetado na célula, gerando a energia necessária para a propulsão do motor elétrico”, explica o físico Fabio Coral Fonseca, gerente do Centro de Células a Combustível e Hidrogênio do Ipen.

Hoje, os veículos automotores movidos a hidrogênio produzidos e comercializados no mundo por fabricantes como Toyota, Honda, BMW e Hyundai são dotados de tanques cheios desse gás. O combustível é bombeado para dentro da célula a combustível, onde sofre reações químicas e gera energia elétrica, que faz a propulsão do motor. O único resíduo devolvido à atmosfera pelo cano de escapamento é vapor d’água – ser ambientalmente sustentável é a grande vantagem dessa tecnologia.

A célula a combustível a etanol projetada pela Nissan e pelo Ipen aproveita o hidrogênio contido no etanol (C2H6O) para gerar energia. O processo, explica Fonseca, inicia-se quando um catalisador, composto por óxido de cério (CeO2) e metais preciosos, por exemplo, quebra as moléculas do etanol, separando o hidrogênio. Na sequência, esse gás é injetado em um dispositivo que opera entre 600 graus Celsius (oC) e 800 oC. São as células a combustível de óxido sólido (SOFC), que levam esse nome porque seu eletrólito é composto por material sólido, geralmente um óxido. Reações eletroquímicas nas SOFC transformam o hidrogênio em eletricidade, que é armazenada numa bateria recarregável e utilizada para mover o veículo.

A vantagem do novo sistema é que ele não demanda hidrogênio puro, como ocorre no modelo tradicional, e está apto a trabalhar com moléculas presentes no etanol, como o carbono, que é liberado durante o processo. “O veículo, portanto, não é isento de emissões de gases de efeito estufa, mas a emissão é neutralizada pelo plantio da cana-de-açúcar”, diz Fonseca. “É um combustível com cadeia produtiva sustentável.”

As pesquisas do Ipen têm como meta reduzir a temperatura de trabalho das SOFC para mais próximo de 600 oC. Objetivam também substituir o uso de metais preciosos, como platina e irídio, que hoje fazem parte de sua composição, por outros economicamente mais acessíveis, como níquel, zircônio e nióbio. “Já estamos obtendo bons resultados trabalhando a 700 oC”, informa Fonseca. Artigo detalhando esse avanço foi publicado em janeiro no International Journal of Hydrogen Energy.

Outra vantagem das SOFC reside em sua eficiência teórica, entre 10% e 20% superior às células a combustível tradicionais na conversão de energia química em elétrica. Em um primeiro protótipo de veículo dotado de célula a combustível a etanol, produzido pela Nissan em 2016, o automóvel abastecido com 30 litros de etanol rodou mais de 600 quilômetros.

Ricardo Abe, gerente sênior de engenharia da Nissan do Brasil, defende que as SOFC são uma solução para a eletrificação veicular, muito em razão da versatilidade de combustíveis que podem ser utilizados. “Elas podem ser alimentadas com etanol, biogás ou gás natural e utilizam infraestruturas de abastecimento já existentes”, informa. A Karma Automotive, companhia norte-americana especializada em veículos elétricos, anunciou que ainda este ano pretende realizar testes com carros movidos a célula a combustível a metanol, também conhecido como álcool metílico.

No Brasil, a montadora alemã Volkswagen anunciou em julho que irá constituir no país um centro de pesquisa e desenvolvimento (P&D) para biocombustíveis, e a célula a combustível a etanol é um dos objetivos. Procurada por Pesquisa FAPESP, a companhia informou que o centro de P&D ainda está em fase de estruturação e avaliou ser prematuro expor os trabalhos que serão desenvolvidos.

Um consórcio de empresas reunindo as multinacionais Mercedes-Benz, Stellantis (Fiat, Chrysler, Opel, Peugeot e Citroën), Bosch, Umicore, especializada em processos limpos de produção, e a brasileira Ipiranga, estabeleceu dois acordos de parceria com o Ipen para o desenvolvimento de tecnologias para o uso de hidrogênio em veículos. Os projetos ainda estão em fase preliminar. Um deles envolve o uso de células a combustível de baixa temperatura, que opera por volta de 100 oC, para o aproveitamento do etanol como combustível de carros elétricos. O outro projeto tem como meta um sistema que combine etanol e hidrogênio para abastecer os tradicionais motores a combustão.

Outro consórcio, formado por Volkswagen, Stellantis, Toyota, Ford, Shell, Bosch, AVL e a brasileira Caoa, também fechou um contrato de parceria com a Unicamp para desenvolver células a combustível a etanol. O projeto, coordenado pelo físico Hudson Zanin, da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Unicamp, é apoiado pela FAPESP e pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

Zanin explica que a proposta é utilizar células tipo SOFC de terceira geração que operam em temperaturas de 500 oC a 600 oC. As células serão produzidas na Unicamp por meio de manufatura aditiva (impressão tridimensional) e utilizará ligas metálicas, como aço inox, para formar camadas ultrafinas, robustas e termicamente seguras. Um modelo dessas células já está sendo produzido em escala experimental pela empresa inglesa Ceres Power Holdings. Na Europa, a nova célula está sendo projetada para trabalhar com metanol e gás natural. O trabalho da Unicamp prevê a construção de células SOFC de terceira geração no Brasil e o desenvolvimento de um catalisador próprio para operar com etanol. “Nossa expectativa é ter um modelo comercial dentro de cinco a sete anos”, diz Zanin.

Abe prefere não se comprometer com previsões sobre quando o sistema estará disponível para ser colocado no mercado. “Ainda estamos em fase de pesquisa e desenvolvimento. O fato é que identificamos o potencial e estamos acelerando os estudos voltados a desenvolver componentes para o projeto em escala comercial”, afirma. Para a química Ana Flávia Nogueira, diretora-executiva do Cine, a viabilidade da célula a combustível a etanol dependerá de sua internacionalização. “Para ter escala comercial, não pode ser uma tecnologia só do Brasil”, destaca. Zanin, porém, aposta que a tecnologia despertará o interesse de outros países produtores de cana-de-açúcar na África, América Latina e Ásia, principalmente na Índia, segundo maior produtor mundial, atrás apenas do Brasil.

O uso de um combustível renovável, como o etanol, no sistema de propulsão elétrica de veículos tem potencial de remover gargalos importantes relacionados à sustentabilidade ambiental. O hidrogênio é uma substância com alto poder calorífico, quase três vezes superior ao diesel, à gasolina e ao gás natural. Renovável, não emite poluentes na atmosfera, apenas vapor d’água.

O problema é que produzir hidrogênio demanda muita energia. Ele é tradicionalmente obtido em um processo de eletrólise – a separação da molécula do hidrogênio (H2) do oxigênio (O) da água. Para ser ambientalmente sustentável, esse gás precisa ser classificado como verde, ou seja, não pode utilizar reservas de água potável e deve ser produzido com fontes renováveis de energia, como eólica, solar ou biocombustíveis, entre eles o etanol.

Outro desafio é que o hidrogênio é um elemento inflamável e precisa ser armazenado em tanques específicos, aptos a absorver choques e evitar explosões e qualquer vazamento. É preciso, ainda, construir uma rede de distribuição capaz de abastecer os veículos. “O uso do etanol permite aproveitar a rede de distribuição já existente e os tanques comuns utilizados nos veículos atuais”, diz Fonseca.

Os veículos elétricos tradicionais, do tipo plug-in, consomem eletricidade da rede de distribuição. No mundo, predomina uma matriz elétrica que utiliza combustíveis fósseis, o que reduz a sustentabilidade ambiental dessa solução. Outro problema são as baterias dos veículos, produzidas com lítio, um mineral que demanda muita água e energia em seu processo de extração. Além disso, gera impacto ambiental caso seu descarte, depois do uso da bateria, não seja feito de forma adequada, uma vez que se trata de um elemento inflamável. “Para ser verdadeiramente sustentável, o veículo elétrico precisa ter um combustível sustentável. É isso que a célula a combustível a etanol proporciona”, diz Zanin.

Para o Brasil, a tecnologia tem ainda uma outra utilidade. Permite sobrevida ao grande parque de produção de etanol, que corre o risco de cair em obsolescência quando os motores elétricos substituírem os atuais a combustão, o que deve ocorrer nas próximas décadas. O estudo “Electric vehicle outlook 2020”, da Bloomberg New Energy Finance, estima que 58% dos novos veículos comercializados no mundo em 2040 serão elétricos.

No Brasil, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) projeta que em 2031 o veículo elétrico já será vantajoso em termos de custos e, no mínimo, um terço dos carros novos no país em 2035 terá algum grau de eletrificação, seja plug-in ou híbridos, este último uma versão que une motor a combustão e propulsão elétrica.

Projetos

  1. Rota sustentável para a conversão de metano com tecnologias eletroquímicas avançadas (nº 17/11937-4); Modalidade Centros de Pesquisas em Engenharia (CPE); Convênio BG E&P Brasil (Grupo Shell); Pesquisador responsável Fabio Coral Fonseca (Ipen); Investimento R$ 6.138.615,40.
  2. Divisão para armazenamento de energia avançado (nº 17/11958-1); Modalidade Centros de Pesquisas em Engenharia (CPE); Convênio BG E&P Brasil (Grupo Shell); Pesquisador responsável Rubens Maciel Filho (Unicamp); Investimento R$ 7.407.307,17.
  3. Divisão de pesquisa 1: portadores densos de energia (nº 17/11986-5); Modalidade Centros de Pesquisas em Engenharia (CPE); Convênio BG E&P Brasil (Grupo Shell); Pesquisadora responsável Ana Flávia Nogueira (Unicamp); Investimento R$ 7.997.384,81.
  4. Estudos sobre o uso de bioetanol em células a combustível (nº 14/09087-4); Modalidade Auxíio a pesquisa – Projeto temático; Pesquisador responsável Marcelo Linardi (Ipen); Investimento R$ 2.997.714,00.

Artigo científico

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original.

Equipe eCycle

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