Cerca de 2.260 famílias, muitas delas indígenas, foram desalojadas em março de 2020 quando as autoridades desmantelaram o assentamento informal Monte Horebe, na periferia de Manaus, retirando todos os moradores do local
Por Ana Ionova em Mongabay —
- Dois anos depois, muitos seguem em moradias precárias em meio à pobreza e à atual crise da covid-19, segundo lideranças indígenas.
- Os indígenas atualmente lutam para recuperar Monte Horebe, reivindicando compensações aos moradores expulsos e permissão para retornar à área.
- Assentamentos informais acabam sendo o último recurso de sobrevivência dos povos indígenas mais vulneráveis, muitas vezes forçados a migrarem às cidades em busca de emprego, educação e assistência médica. Para líderes comunitários, a repressão das autoridades sobre as ocupações ameaça seu direito à moradia.
Enquanto caminha pelos escombros, Yawaratsuni Kokama pisa sobre tijolos soltos e pilhas de azulejos quebrados, com os olhos marejados. De vez em quando, ela para para colher uma manga madura de uma árvore ou arrancar uma mandioca do chão.
“Este é o lugar onde nossa horta comunitária ficava. Ali era a escola”, diz a cacique Yawaratsuni enquanto aponta para um terreno próximo sendo engolido pela Floresta Amazônica ao seu redor. “Agora só resta o mato.”
Até recentemente, essa vasta extensão de terra era Monte Horebe, um assentamento informal na periferia de Manaus. De acordo com dados do governo do estado do Amazonas, a comunidade já foi o lar de 2.260 famílias, incluindo centenas de indígenas de mais de 30 etnias diferentes.https://www.youtube.com/embed/dzd2V6IUsBc
Monte Horebe surgiu em 2015, quando posseiros limparam e ocuparam um pedaço de floresta tropical a cerca de 20 km do centro de Manaus, de acordo com as lideranças indígenas. Como outros assentamentos informais espalhados às margens da cidade, Monte Horebe oferecia as tão necessárias – ainda que precárias – moradias para famílias de baixa renda, incluindo centenas de refugiados do Haiti e da Venezuela.
As lideranças comunitárias relatam que tudo isso mudou quando as autoridades estaduais se articularam para acabar com o assentamento em março de 2020, despejando os moradores e derrubando suas casas. Embora títulos de propriedade tenham sido previamente prometidos aos moradores, as autoridades alegaram que a remoção do assentamento era necessária por ter se tornado um ponto de tráfico de drogas.
“Disseram que estava cheio de bandidos”, disse Yawaratsuni, conhecida como Bia. “Só que não estava. Tinha seus problemas como qualquer lugar, mas havia pais, mães e famílias vivendo aqui, realizando seus sonhos.”
Os moradores despejados deveriam ser alojados em uma instalação residencial do governo próxima, mas lideranças indígenas disseram que muitos ficaram desamparados e foram abandonados quando a crise da covid-19 se aprofundou em Manaus, uma das cidades mais atingidas pela pandemia.
No lugar de Monte Horebe, as autoridades estaduais planejaram construir uma escola e uma delegacia, embora esses planos tenham sido deixados em segundo plano durante a pandemia. Quase dois anos depois, a área onde um dia a comunidade se encontrava permanece vazia. Restam apenas os escombros das casas demolidas.
Em fevereiro de 2021, um grupo de moradores tentou reocupar Monte Horebe, mas foi detido pelas autoridades, de acordo com o Governo do Estado do Amazonas. Os indígenas que ali viviam dizem que ainda estão lutando para voltar ao assentamento. A comunidade está agora pedindo a um tribunal indenização aos moradores por parte das autoridades e que lhes permita retornar à área formalmente, de acordo com documentos aos quais a Mongabay teve acesso.
“Com um pouco de compensação, seríamos capazes de reconstruir [as moradias] novamente”, disse Bia à Mongabay. “As pessoas só querem um pedaço de terra para chamar de seu, para replantar o que tinham antes”.
As autoridades do Amazonas não responderam aos pedidos de comentários da Mongabay.
Habitações precárias
Antes de ser demolido, Monte Horebe era como dezenas de outros assentamentos informais espalhados por Manaus: sem água potável e ruas pavimentadas, mas com duas escolas e um posto de saúde. Todas as quartas-feiras, a enfermeira indígena Vanda Ortega realizava um atendimento básico aos moradores.
“Era uma comunidade, onde as pessoas voltavam à sua cultura e modo de vida”, disse Ortega, membra do grupo indígena Witoto. “Havia pessoas que investiam o pouco que tinham naquela casinha, naquela barraquinha. E de um momento para o outro, esses lares foram destruídos”, lamenta.
Monte Horebe estava entre os maiores assentamentos informais de Manaus, nascido da necessidade de moradias populares após outro assentamento ilegal, a Cidade das Luzes, ter sido desocupado pelas autoridades em 2015. Diante do aumento da desigualdade e da pobreza, as famílias de baixa renda muitas vezes dependem desses assentamentos para sobreviver e lidar com os custos crescentes da vida urbana.
Segundo a enfermeira, os povos indígenas são moradores frequentes de tais comunidades informais, geralmente chegando à cidade depois de serem forçados a sair de seus territórios por falta de assistência médica, oportunidades de emprego e educação. Atualmente, Vanda Ortega vive no Parque das Tribos, outro assentamento informal ocupado por povos indígenas.
“Nossos ancestrais já habitavam esta terra e foram expulsos”, disse ela à Mongabay em uma entrevista no Centro de Associação Comunitária Indígena Monte Horebe. “Hoje, em muitos de nossos territórios, as condições de vida são extremamente difíceis, o que obriga nosso povo a deixar suas comunidades e ir para a cidade”.
Porém, as autoridades continuam a reprimir os assentamentos informais, argumentando que sua localização às margens da cidade os tornam locais perfeitos para o crime organizado. Para Ortega, isso cria uma profunda incerteza para indígenas que vivem nessas comunidades.
“Sem documento ou garantia dos direitos de terra, eles são forçados a viver com esse medo de não poderem ficar”, disse ela. “É muito, muito doloroso”.
Como os territórios indígenas são atacados em outras partes do Brasil, esses despejos urbanos são mais um assalto ao direito dos indígenas à moradia e ao território, disse Josué Kokama, um cacique que vive no Cemitério dos Índios, outro assentamento nos arredores de Manaus.
“Hoje, eles estão tirando os direitos que nos são dados pela Constituição”, disse Josué à Mongabay. “Porque eles pensam que os indígenas só têm que ficar na floresta, em suas aldeias. Mas no meio da floresta, não há universidade. Você acha que lá os índios terão uma boa educação?”, questiona.
A comunidade Cemitério dos Índios, lar de mais de 2 mil famílias de várias etnias indígenas, também está na mira das autoridades. Em 2020, um juiz federal decidiu que o local deveria ser desocupado, baseado em relatórios locais que dizem que o assentamento fica no topo de um sítio arqueológico que estaria sendo danificado pela ocupação. Os membros da comunidade dizem que têm direito à terra de seus antepassados e argumentam que estão preservando o antigo local de sepultamento.
Esses despejos, além de não resolverem a falta de moradia para os indígenas que vivem nos centros urbanos do Brasil, só fazem com que o expulsos de uma comunidade acabam em outro assentamento ilegal em outra parte de Manaus, segundo Josué.
“A situação do meu povo hoje é uma situação profundamente precária”, disse ele. “As pessoas estão lutando e não têm um teto sobre suas cabeças. Portanto, continuamos ocupando e lutando por nossos direitos básicos”.
Forçados a sair
Muitos dos despejados do Monte Horebe foram obrigados a se mudar para outros assentamentos informais ou para apartamentos alugados superlotados. Sem terra para cultivar alimentos, alguns acabaram passando fome e caíram na pobreza extrema.
O despejo causou estragos na vida de Neila Santos dos Santos. Com a demolição do Monte Horebe, ela perdeu a casa que dividia com seus três filhos pequenos e foi obrigada a se mudar para o apartamento apertado de sua mãe em um bairro próximo, na periferia de Manaus.
“Fui forçada a sair de minha casa. Eles levaram tudo o que tínhamos trabalhado tanto para construir”, disse Neila, que é da etnia Kokama, em uma entrevista em Monte Horebe, a poucos metros de onde sua casa um dia se encontrava. “Meu filho cresceu lá, e ele ainda me pergunta: ‘O que aconteceu com minha casa, o que aconteceu com minha terra? Onde está minha rua?’ Mas tudo se foi”, lamenta.
Antes do despejo, sua família sobrevivia com a renda que ela tinha como costureira e alimentos que eles podiam cultivar na horta comunitária. Aos moradores despejados, foi prometida uma ajuda de 600 reais por mês, mas Neila diz que ela e muitos outros nunca receberam nenhuma ajuda.
“Em Monte Horebe, não tínhamos eletricidade, não tínhamos a infraestrutura do Estado”, disse ela. “Mas nós tínhamos uma casa, tínhamos nossa horta. Não estávamos necessitados da mesma forma que estamos agora. Até hoje, não recebi nenhum auxílio do governo”.
Com sua comunidade fragmentada e a ligação com a terra cortada, o próprio modo de vida dos moradores indígenas ficou ameaçado. Além do mais, com a pandemia fora de controle, o despejo os deixou ainda mais vulneráveis ao coronavírus, dizem os líderes comunitários.
A população indígena do Brasil, que em sua grande parte vive em áreas remotas ou com pouco acesso à saúde, tem sido particularmente atingida pela pandemia, segundo o Instituto Socioambiental (ISA). Ainda de acordo com a entidade, no modelo de vida comunitária é quase impossível isolar os membros da família infectados pelo vírus, o que dificulta a contenção de sua propagação.
Um estudo do ano passado mostrou que a covid-19 estava matando os povos indígenas no Amazonas em taxas mais altas comparadas à população geral. A propagação da variante Ômicron no país atingiu cerca de 300 mil infecções por dia no início de fevereiro, quebrando recordes anteriores, de acordo com dados do Ministério da Saúde. Sob essa nova onda, o deslocamento contínuo dos residentes de Monte Horebe os coloca numa condição ainda mais vulnerável.
“Hoje, quase dois anos depois, vemos a comunidade Monte Horebe abandonada”, disse a cacique Bia. “E estamos pedindo ajuda. Eles tiraram essa terra de pessoas que não tinham para onde ir.”