Emissões recentes de dióxido de carbono, principal gás de efeito estufa, dobram na Amazônia

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Por Marcos Pivetta, da Pesquisa Fapesp | Uma tendência que vinha se insinuando desde meados da década passada virou agora realidade nos quatro cantos da Amazônia: a maior floresta tropical do planeta deixou de ser um sorvedouro e se tornou uma fonte de carbono para a atmosfera. Isso significa que as emissões de dióxido de carbono (CO2), principal gás que causa o aquecimento global, ultrapassaram com folga as absorções em todas as grandes sub-regiões do bioma. De norte a sul, de leste a oeste, o ecossistema passou a liberar mais CO2 do que suas plantas conseguem captar.

Segundo um estudo recente, publicado em 19 de setembro no repositório on-line Research Square na forma de preprint (artigo ainda não revisado por pesquisadores independentes de uma revista científica), o valor do superávit a favor das emissões de carbono dobrou na Amazônia em 2019 e 2020 quando comparado com a média dos nove anos anteriores, de 2010 a 2018. Mais carbono na atmosfera, na forma de CO2 e também de metano (outro gás de efeito estufa), eleva a temperatura do planeta e intensifica o cenário das mudanças climáticas. Desde meados do século XIX, a concentração de dióxido de carbono na atmosfera terrestre aumentou quase 50% e a temperatura média do planeta elevou-se em 1,1 grau Celsius (º C).

“Esse incremento das emissões se deu porque, nesses dois anos, o oeste da Amazônia também passou a ser fonte significativa de dióxido de carbono para a atmosfera, a exemplo do que já havia ocorrido anteriormente com o leste”, comenta a química Luciana Gatti, coordenadora do Laboratório de Gases de Efeito Estufa do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), principal autora do estudo. “Antes mais concentrado no sul do Pará e no norte de Mato Grosso, numa área historicamente conhecida como arco do desmatamento, o corte de vegetação nativa agora se espalhou fortemente para o sul do Amazonas, o Acre e Rondônia.” Trinta pesquisadores do Brasil e do exterior também assinam o artigo, que está em processo de aceitação para ser publicado em uma revista científica internacional

Foto: Alexandre Affonso

Estudiosos do desmatamento apelidaram a região desses três estados amazônicos de Amacro. É uma referência ao início do nome das unidades federativas que a compõem e também uma alusão ao Matopiba, acrônimo empregado para descrever uma fronteira agrícola (e de desmatamento) do Cerrado, os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

Até agora, cerca de 20% do bioma da Amazônia em terras brasileiras foi desflorestado, segundo dados do Inpe. Desde 1988, quando o Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes) do Inpe passou a fornecer a taxa oficial de desflorestamento da região, Pará e Mato Grosso são os estados campeões de corte da cobertura vegetal nativa. Juntos, respondem por cerca de dois terços do desflorestamento acumulado em pouco mais de três décadas. Em 2021, pela primeira vez o Amazonas derrubou mais área de cobertura vegetal nativa do que Mato Grosso – 2.300 quilômetros quadrados (km2) ante 2.200 km2 – e ficou na segunda posição do ranking. O Pará permaneceu em primeiro lugar com 5,2 mil km2 de vegetação derrubados.

A mudança de sorvedouro para fonte de carbono na Amazônia se cristalizou entre a passagem da década passada para a atual. Nesse período, o superávit a favor das emissões no chamado balanço de carbono – que leva em conta todos os processos de absorções e liberações, naturais ou estimuladas pelo homem, de CO2 – dobrou de tamanho quando o cálculo é feito para toda a Amazônia. De acordo com o novo estudo, o bioma liberou para a atmosfera diariamente, entre 2010 e 2018, 0,09 grama (g) de carbono por km2 a mais do que absorveu. Em 2019, o superávit das emissões diárias foi de 0,17 g. Em 2020, aumentou para 0,20 g.

Vista aérea em setembro de 2021 de floresta desmatada em torno de estrada em Apuí, no sul do Amazonas. Foto: Bruno Kelly / Reuters  / Fotoarena

Na parte ocidental da Amazônia, que segue mais preservada do que o setor oriental a despeito das novas pressões ambientais, o balanço de carbono a favor das emissões tornou-se, em algumas sub-regiões, de quatro a 10 vezes maior em 2019 e 2020 do que a média histórica (ver quadro). “Não houve nenhuma grande anomalia climática nesses dois anos que justificasse essa elevação nos níveis de emissão. O avanço recente do desmatamento e das queimadas e o desmonte da fiscalização ambiental estão por trás desse aumento nas emissões de carbono no bioma”, diz Gatti. “A liberação de carbono em 2019 e 2020 foi da mesma ordem que ocorreu na grande seca amazônica de 2015-2016, quando houve um El Niño recorde.”

Caracterizado pelo aquecimento das águas superficiais do sul do oceano Pacífico, o El Niño é um fenômeno que altera o clima em várias partes do planeta. Na Amazônia, costuma provocar elevações de temperatura e estiagem prolongada, alterações que diminuem a capacidade de o bioma absorver o carbono da atmosfera.

O artigo também destaca que a área de queimadas em florestas, um fenômeno que caminha de mãos dadas com o desflorestamento, aumentou 42% em 2020 na Amazônia em relação à média anual do período entre 2010 e 2018. “A quantidade de focos ativos de queimada no Amazonas ao longo de um ano é atualmente da ordem de 20 mil detecções feitas por satélite, o dobro do que era o padrão 10 anos atrás”, diz o engenheiro Alberto Setzer, pesquisador do programa Queimadas, do Inpe, também coautor do artigo. O trabalho ainda aponta que, em 2019 e 2020, houve queda de 42% na emissão de notificações por desmatamentos e crimes ambientais e de 89% na cobrança de multas expedidas, sempre em relação aos dados dos primeiros oito anos da década passada.

Foto: Alexandre Affonso

“A situação é muito preocupante”, alerta o climatologista Carlos Nobre, pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), que participou do estudo. “Além de colocar em risco toda a riqueza de biodiversidade da região, o desmatamento da Amazônia torna mais difícil o cumprimento das metas do Acordo de Paris.”

Costurado com o apoio das Nações Unidas, o acordo é um tratado internacional assinado em 2015 por quase 200 países, incluindo o Brasil. Seu objetivo é reduzir as emissões de gases de efeito estufa com o intuito de limitar o aumento do aquecimento global a no máximo 1,5 ºC acima dos níveis da sociedade pré-industrial, de meados do século XIX. Em teoria, esse seria o teto de elevação da temperatura média do planeta que ainda daria margem para que as sociedades humanas se adaptassem de forma satisfatória às mudanças climáticas e mitigassem seus efeitos.

O problema é que o cenário atual na região Norte não é alvissareiro. Desde 2015, a taxa oficial de desmatamento da Amazônia calculada pelo Prodes do Inpe cresce ano a ano. Em 2019, atingiu a marca anual dos 10 mil km2 desflorestados, algo que não ocorria desde 2008. No ano passado, passou dos 13 mil km2 e continua com tendência de alta (ver quadro). Na início dos anos 2000, o desmatamento bateu recordes negativos e chegou a ultrapassar os 25 mil km2 em dois anos consecutivos, 2003 e 2004. Em seguida, em razão da adoção de políticas públicas, retrocedeu aos seus menores níveis no início da década passada, quando a Amazônia chegou a perder cerca de 5 mil km2 de cobertura vegetal por ano. A partir de 2016, o desflorestamento retomou tendência de alta.

Pastagem com bois em Rio Pardo, norte de Rondônia, em setembro de 2019. Foto: Bruno Kelly / Reuters / Fotoarena

“Até 2018, o Amazonas costumava ser o quarto estado que mais desmatava na região, atrás de Pará, Mato Grosso e Rondônia [que é seis vezes e meia menor do que o Amazonas]”, diz o especialista em sensoriamento remoto Claudio Almeida, coordenador do Programa de Monitoramento da Amazônia e Outros Biomas do Inpe, outro coautor do estudo de Gatti e colaboradores. “Agora ele é o segundo, depois apenas do Pará, que historicamente é o estado que mais retira a cobertura vegetal nativa. O desmonte recente da fiscalização ambiental é um estímulo ao desmatamento.”

Com buracos crescentes em sua cobertura vegetal e suas margens do sul degradadas pelo avanço do desmatamento e das queimadas e o estabelecimento de pastagens, a Amazônia parece ter perdido, ao menos por ora, parte de sua capacidade de retirar carbono do ar e ser contrapeso às mudanças climáticas. Espalhada por nove países da América do Sul em uma área que atinge cerca de 7 milhões de km2, dos quais cerca de 60% em terras brasileiras, a maior floresta tropical do planeta, apesar das pressões crescentes, ainda representa uma grande mancha verde no mapa-múndi. “Uma parte considerável da vegetação nativa desse bioma no Brasil continua preservada”, comenta o geógrafo Marcos Rosa, coordenador técnico do MapBiomas, uma rede colaborativa formada por ONGs, universidades e startups de tecnologia.

Rosa não fez parte da equipe que produziu o novo estudo sobre o balanço de carbono, mas os dados da mais recente edição do levantamento anual do MapBiomas sobre a situação do uso e da cobertura do solo na Amazônia brasileira corroboram o cenário descrito no trabalho de Gatti e colaboradores. De acordo com a publicação, lançada em setembro, a área de pecuária triplicou na Amazônia entre 1985 e 2021 e representa 13% da superfície do bioma no Brasil. Os dados oficiais indicam que o tamanho do rebanho bovino nacional, hoje de 220 milhões de cabeças, aumenta na Amazônia Legal e diminui no restante do país. O território ocupado por cultivos agrícolas, basicamente soja, restringe-se a 2% do total.

Foto: Alexandre Affonso

“O desmatamento é um movimento especulativo, não planejado, que ocorre em razão da expectativa de ganhar a posse legal da área desflorestada. Abrir uma pastagem e colocar bois é a forma mais rápida e barata de ocupar uma região recém-desmatada, que quase sempre era uma área pública”, comenta Rosa. A sojicultura poderá eventualmente substituir essa nova pastagem se a terra desmatada e agora ocupada por pastagem vier a ser legalizada e sua posse garantida ao ocupante, procedimento decorrente de processos de anistia e perdão aprovados pelas autoridades. “Esse processo costuma demorar anos. A soja é cultivada em grandes propriedades na Amazônia e esses agricultores dependem de financiamento bancário para o plantio. Os bancos só emprestam dinheiro para donos de terras legalizadas”, explica Rosa.

A abertura, ampliação e revitalização de estradas, como a BR-319, que liga Manaus e Porto Velho, é um indutor de desmatamento. De acordo com o sistema Prodes, o município amazonense de Lábrea, no sul do estado, perto da divisa com Acre e Rondônia, é o quarto em desmatamento acumulado na Amazônia. Com menos de 50 mil habitantes, Lábrea perdeu 3 mil km2 de vegetação desde 2008, menos apenas do que as paraenses Altamira e São Félix do Xingu, e Porto Velho, capital de Rondônia. Seu único meio de acesso terrestre é pelo trecho final da rodovia BR-230, a popular Transamazônica, que se conecta à BR-319.

Fatores naturais e estimulados pelo homem alteram o balanço de carbono de uma região, ou seja, a capacidade de emitir e de absorver dióxido de carbono. Grosso modo, apenas um processo contribui para a retirada de quantidades significativas de CO2 atmosférico: a fotossíntese das plantas, um mecanismo essencial para seu crescimento e sobrevivência. Esses vegetais podem viver sobre a superfície, como as árvores da floresta amazônica, no interior do solo ou dentro de rios e mares (algas). Na conta das emissões, o cenário é mais complexo. A queima de combustíveis fósseis, como petróleo, gás natural e carvão mineral, e a perda de biomassa vegetal liberam tanto dióxido de carbono como monóxido de carbono (CO). A respiração das plantas e a decomposição de material orgânico também emitem CO2.

Na história recente das últimas décadas, desde que o homem passou a se preocupar mais detalhadamente com o balanço de carbono em razão do aquecimento global, as florestas são vistas como grandes sugadoras de CO2 da atmosfera. Uma vez dentro das plantas, o carbono se converte em açúcares e é estocado como biomassa (raiz, caule e folhas). Ele só volta para a atmosfera quando esse vegetal morrer e for lentamente decomposto pela ação de insetos, bactérias e fungos. As queimadas nas florestas também promovem o retorno do carbono presente na biomassa vegetal ao ar – só que de maneira muito mais abrupta e imediata. Esse ciclo é estimulado e realimenta o aquecimento global.

Foto: Alexandre Affonso

A rigor, estudos anteriores do grupo de Gatti, em 2014 e 2021, já vinham indicando que a Amazônia como um todo estava virando uma fonte de carbono. Mas os números que sustentavam essa condição vinham sobretudo de sua porção leste, onde o desmatamento é historicamente maior. Dependendo do ano considerado, a parte oeste, mais bem conservada, comportava-se ainda como um sorvedouro de carbono, de uma forma neutra (emissões iguais às absorções) ou até como uma discreta, mas não clara, fonte de carbono, dentro da margem de erro dos cálculos dos trabalhos. A partir de 2019, os números se tornaram mais robustos e restam poucas dúvidas de que a parte ocidental seguiu o mesmo caminho da oriental.

Não falta literatura científica mostrando que a Amazônia está ficando mais quente e seca nos últimos anos, como os trabalhos do climatologista José Marengo, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), e de pesquisadores do Inpe (ver Pesquisa FAPESP nos249 e 285). Uma das consequências desse calor extra e da estiagem prolongada é a diminuição da presença da água na Amazônia, cuja vegetação é chamada, em inglês, de floresta da chuva (rainforest). O levantamento mais recente do MapBiomas aponta, por exemplo, que a superfície de água na região decresceu 14,5% nos últimos 20 anos. Como parte da umidade da Amazônia é transportada para o Centro-Oeste e Sudeste, uma região Norte mais seca tende a exportar menos chuva para outras partes do país.

Os novos dados sobre o balanço de carbono na Amazônia provêm de um esforço contínuo de 12 anos coordenado por Gatti, um projeto de pesquisa que conta com financiamento da FAPESP. Desde 2010, a cada duas semanas, em média, um avião de pequeno porte sobrevoa quatro pontos da Amazônia e coleta perfis verticais atmosféricos, entre 300 metros e 4,4 km de altitude em relação ao nível do mar. As localidades de partida da aeronave se situam em regiões distintas do bioma: Alta Floresta, em Mato Grosso, no sudeste da região; Rio Branco, no Acre, no sudoeste; Santarém, no Pará, no nordeste; e Tefé ou Tabatinga, no Amazonas, no noroeste. A composição química dessas amostras do ar é analisada e usada para calcular se diferentes porções do bioma estão emitindo ou absorvendo mais carbono. “Essa metodologia nos permitiu publicar três artigos na revista Nature, dois sobre dióxido de carbono e um sobre metano. É uma abordagem consagrada”, diz a química.

Para Carlos Nobre, a tendência atual de a Amazônia se comportar como uma fonte de carbono em vez de um sorvedouro, apesar de inquietante, pode ser revertida em pouco tempo se o desmatamento for zerado nos próximos anos ou ao menos reduzido a patamares baixos, na faixa dos 5 mil km2 anuais. “A floresta secundária cresce rapidamente e ajuda a retirar carbono da atmosfera”, explica o climatologista. A vegetação que brota e se regenera espontaneamente em áreas desmatadas abandonadas, sem nenhum uso, é denominada floresta secundária. Ela não é tão densa e rica como a floresta intacta, mas faz fotossíntese e se alimenta de CO2. Segundo o mais recente levantamento do MapBiomas, cerca de 4% da cobertura vegetal da Amazônia era formada em 2019 por vegetação secundária, algo como 130 mil km2.


Este texto foi originalmente publicado pela Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Carolina Hisatomi

Graduanda em Gestão Ambiental pela Universidade de São Paulo e protetora de abelhas nas horas vagas.

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