Empresa paulista cria “pulmão artificial” para tratar Covid-19

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Aparelho que realiza oxigenação fora do corpo pode ajudar a manter pacientes vivos até que a doença regrida

A empresa Braile Biomédica, uma das pioneiras no país no desenvolvimento de equipamentos médicos na área de cardiologia, acaba de colocar no mercado um dispositivo de alta complexidade que pode auxiliar no tratamento de pacientes de Covid-19 em estado crítico. Batizado de Sistema Solis, ele é direcionado para uma terapia conhecida no meio médico pela sigla Ecmo, de oxigenação por membrana extracorpórea. O aparelho possibilita uma forma de respiração extracorpórea (fora do corpo), utilizada como recurso final quando aparelhos de ventilação mecânica, que atuam como respiradores artificiais, já não surtem mais efeito.

“Trata-se de uma espécie de pulmão artificial, que pode ser usado em adultos e crianças”, explica o engenheiro mecânico Rafael Braile, diretor de Operações e Pesquisa e Desenvolvimento da empresa, sediada em São José do Rio Preto, no interior paulista. “Ele drena o sangue para fora do paciente através de cateteres, faz sua oxigenação com auxílio de uma membrana polimérica e o devolve para o doente. É um tratamento invasivo de suporte à vida que pode ajudar a manter o paciente até que seu pulmão se recupere.”

Além de indicado para casos de insuficiência respiratória aguda, comuns em pacientes graves infectados pelo vírus Sars-CoV-2, aparelhos para Ecmo, como o Sistema Solis, também podem ser utilizados temporariamente como coração artificial por quem sofreu transplante do coração, infarto do miocárdio ou parada cardíaca.

O equipamento paulista foi desenvolvido em menos de um ano e teve apoio técnico do Instituto de Pesquisas Eldorado, de Campinas (SP), uma das unidades da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii). O projeto recebeu um investimento total de R$ 7,8 milhões, sendo R$ 2,3 milhões bancados igualmente pela Embrapii e Braile, R$ 2,5 milhões financiados pela Agência de Desenvolvimento Paulista (Desenvolve SP) e R$ 3 milhões pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Fundada pelo cirurgião cardiovascular Domingo Marcolino Braile (1938-2020) em 1977 (ver Pesquisa FAPESP no 176), a empresa, que atualmente conta com apoio do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP para desenvolver um stent periférico (prótese usada em vasos sanguíneos que sofrem oclusão), já tinha know-how na fabricação de equipamentos similares. “Desde os anos 1990 dominamos a tecnologia de fabricação de membranas de oxigenação para cirurgias cardíacas, que fazem o papel do pulmão por um período mais curto, entre seis e oito horas. O conceito do Sistema Solis é parecido, com a diferença de que ele precisa funcionar por 30 dias ou mais, enquanto o paciente está na UTI [Unidade de Terapia Intensiva] recuperando o seu sistema cardiorrespiratório”, diz Braile, destacando que o Solis é o primeiro dispositivo para Ecmo desenvolvido no hemisfério Sul.

Para o médico Luiz Fernando Canêo, cirurgião cardíaco pediátrico do Instituto do Coração (InCor) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), a tecnologia que a Braile está usando é de ponta. “O equipamento paulista deve competir com o que há hoje no mercado. Todos os aparelhos para Ecmo do país são importados. O Sistema Solis vem para somar”, avalia Canêo, que foi presidente da seção latino-americana da Organização de Suporte Extracorpóreo à Vida (Elso), entre 2015 e 2018.

O mercado de aparelhos para Ecmo é formado por cerca de uma dezena de empresas, entre elas Getinge, da Suécia, Medtronic, da Irlanda, LivaNova, do Reino Unido, Nipro, do Japão, Terumo, dos Estados Unidos. Segundo o especialista do InCor, o equipamento brasileiro está, teoricamente, no mesmo patamar dos sistemas feitos no exterior. “Agora, precisamos ter a experiência clínica para comprovar que ele funciona bem.” O preço do equipamento no mercado global gira em torno de US$ 35 mil a US$ 50 mil – a Braile não divulga quanto o Sistema Solis vai custar.

Uma primeira unidade já foi comercializada para um distribuidor de equipamentos médicos com sede em Pernambuco. O aparelho é destinado a um centro hospitalar do Ceará. “Recebemos consultas de vários estados brasileiros e do exterior. Temos negociações avançadas com centros da Alemanha e da Ucrânia. Instituições da Colômbia e da Venezuela também demonstraram interesse no Solis”, diz Braile.

Peças descartáveis

Os equipamentos para Ecmo consistem basicamente de duas partes. A primeira é uma máquina, contendo a inteligência do sistema, que controla os parâmetros do fluxo de sangue (volume, pressão, temperatura), bombeado para fora do corpo e de volta ao paciente. A outra é formada por um conjunto de peças descartáveis: duas cânulas que fazem a drenagem do sangue do paciente para a máquina e de volta ao doente; um conjunto de tubos por onde o sangue circula; uma bomba centrífuga, que bombeia o sangue; e o oxigenador de membrana, que mimetiza o papel do pulmão, fazendo a troca gasosa. Os itens descartáveis são renovados a cada novo usuário.

“Nosso sistema é o único que contempla todos os itens que compõem um aparelho para Ecmo, pois fabricamos todas as peças. Os principais competidores não desenvolvem tudo; adquirem um componente ou outro de fornecedores”, diz Braile. Segundo ele, outra inovação do Sistema Solis é o revestimento interno de todas as peças descartáveis por um biofilme de albumina recombinante com o objetivo de evitar a formação de trombos e coágulos.

A terapia de Ecmo, de acordo com o executivo, foi amplamente empregada durante o surto de H1N1, entre 2009 e 2010. Naquela ocasião, diz Braile, os resultados foram positivos, da mesma forma como ocorre agora na Europa e nos Estados Unidos, onde os aparelhos têm sido usados no apoio ao tratamento de Covid-19. “A curva de mortalidade nesses países tem sido menor. Esperamos que nosso sistema ajude a salvar vidas durante a pandemia do novo coronavírus”, destaca Braile.

Por se tratar de um procedimento complexo, que exige pessoal altamente capacitado, e de elevado custo – “nem sempre coberto pelos planos de saúde”, ressalva Canêo –, poucos hospitais do país têm equipamentos para Ecmo. “Apenas 28 centros médicos são associados à Organização de Suporte Extracorpóreo à Vida, o que significa que reportam o que fazem para a entidade. A afiliação é uma espécie de selo de qualidade”, afirma o especialista do InCor, destacando que outras instituições não associadas à Elso também realizam o tratamento no Brasil.

Canêo avalia que ter uma solução nacional do equipamento pode ajudar a expandir a terapia de Ecmo no país. “Há uma cultura por aqui de que o hospital não compra o equipamento. Ele é consignado e somente os componentes descartáveis são comprados. No resto da América Latina, as instituições adquirem o sistema completo”, explica. “Com um fabricante local, vai ser mais fácil realizar a manutenção do aparelho, pois não será preciso importar peças. Pode ser que haja uma mudança dessa cultura.”


Fonte: Yuri Vasconcelos em Revista FAPESP


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