O governo sancionou em junho o Projeto de Lei Complementar nº 146/2019, conhecido como marco legal das startups e do empreendedorismo inovador. Fruto da articulação entre deputados de diferentes partidos e correntes ideológicas e representantes de empresas de base tecnológica, o texto estabelece medidas de estímulo a investimentos nessas companhias por meio do aprimoramento do ambiente de negócios no país. A legislação entra em vigor em um momento de expansão das startups, definidas na lei como empresas fundadas há menos de 10 anos, com receita bruta anual de até R$ 16 milhões e atuação baseada no desenvolvimento de inovações aplicadas a produtos, serviços ou modelos de negócio. Dados da Associação Brasileira de Startups (ABStartups) estima a existência de 13 mil dessas firmas no Brasil. O número é 20 vezes o registrado há 10 anos, quando o país começava a discutir formas de regulamentar esse novo mercado. “A expectativa é que a nova lei beneficie negócios nascentes em vários segmentos da economia e que amplie os aportes de pequenos e grandes investidores, permitindo que cada vez mais empresas consigam transpor o chamado ‘vale da morte’, o estágio entre o desenvolvimento de inovações e sua consolidação comercial”, diz Júlio Francisco Blumetti Facó, pesquisador da área de gestão da inovação do Centro de Engenharia e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do ABC (UFABC).
Um dos avanços promovidos pela nova lei diz respeito à possibilidade de órgãos de regulação concederem autorização especial para que essas empresas possam testar novas tecnologias e modelos de negócio por tempo determinado e com um número restrito de consumidores, contando, inclusive, com o suporte das agências reguladoras no caso de situações que entram em conflito com as regras vigentes – algo que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) já faz há algum tempo com startups do mercado financeiro, as fintechs. “Esse tipo de benefício, conhecido como sandbox regulatório, costuma ser crucial para que pequenas empresas consigam emplacar seus produtos, já que, pelos meios estabelecidos, teriam dificuldade para transpor as barreiras regulatórias existentes”, explica Facó. Um exemplo recente dessa estratégia foi o sandbox regulatório do Banco Central para testar o Pix, meio de pagamento eletrônico implantado recentemente no Brasil.
Espera-se que a medida impulsione startups que atuam, por exemplo, no desenvolvimento de veículos autônomos e de sistema de automação para gerenciamento de parques de iluminação pública e de apoio e suporte à saúde. “Estamos falando de setores – transporte, energia e saúde – com regras muito rígidas e consolidadas no Brasil, de modo que qualquer nova tecnologia ou modelo de negócio criado por essas pequenas empresas precisará ser testado em um ambiente diferenciado, como este de que fala o texto do novo marco legal”, complementa o pesquisador.
O PLP nº 146/2019, agora transformado na Lei Complementar nº 182/2021, também avança na criação de mecanismos que facilitam a formalização, o desenvolvimento e a consolidação dessas empresas. Um deles diz respeito a um regime especial simplificado que concede às startups prioridade na análise de registro de marca e pedidos de depósito de patentes pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi). Ainda não está claro se a medida resultará em análises mais ágeis por parte do Inpi – hoje, elas podem demorar até 15 anos, mais ou menos o tempo que uma startup bem-sucedida leva para crescer e ganhar mercado.
Outro ponto importante envolve a possibilidade de grandes empresas obrigadas a investir em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I), como as do setor de petróleo e gás, cumprirem seus compromissos aplicando recursos em startups. Isso poderá ser feito por meio de fundos patrimoniais ligados à inovação ou de fundos de investimento voltados à aquisição de participações em startups ou empresas emergentes. Há ainda a possibilidade de investirem em programas e editais de financiamento e aceleração de startups gerenciados por universidades e organizações sem fins lucrativos de ciência e tecnologia.
A lei também regulamenta o papel do investidor-anjo, que aplica recursos em companhias nascentes apostando em seu potencial de crescimento. O texto estipula que esse tipo de investidor não tem necessariamente o status de sócio nem tampouco direito a gerência ou voto na administração da empresa – em caso de falência, ele não responderá por nenhuma obrigação da companhia. “Isso não impede que as partes eventualmente estipulem uma remuneração periódica ao investidor ou convertam seu aporte inicial em participação societária”, destaca Facó. A medida, para ele, deve criar um cenário de segurança jurídica que facilitará os investimentos.
Para alguns especialistas, porém, o dispositivo que pode representar o principal impulso à consolidação dessas empresas é o que cria um regime especial de contratação de soluções inovadoras pela administração pública. “A lei facilita o acesso de startups a licitações, o que permitirá a elas vender mais para o Estado”, informa Moacir de Miranda Oliveira Junior, professor do Departamento de Administração da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP). Dados da ABStartups indicam que 41% das startups lutam para dar escala ao seu negócio no Brasil. “A medida permitirá que o poder público ajude essas empresas a ganhar competitividade ao mesmo tempo que o próprio Estado poderá contar com a capacidade das startups de desenvolver novas tecnologias aplicáveis na resolução de problemas.” Essa estratégia é comum em países como os Estados Unidos e se baseia na ideia de que é melhor fazer encomendas de tecnologias específicas do que distribuir subsídios esperando que a inovação ocorra.
Novo marco legal deve facilitar o acesso de startups a licitações, o que permitirá a elas vender mais para o estado
Segundo o texto da nova lei, a administração pública poderá restringir as licitações que visam a contratação de “soluções inovadoras” exclusivamente a esse tipo de empresa. O projeto também permite a contratação de mais de uma startup por licitação. As propostas apresentadas passarão pelo crivo de uma comissão formada por pelo menos um servidor público do órgão para o qual o serviço está sendo contratado e um professor de instituição pública de ensino e pesquisa na área relacionada ao tema da contratação. Os avaliadores deverão levar em conta fatores como a maturidade do modelo de negócio e seu potencial de resolução do problema.
Apesar dos avanços, há quem afirme que o marco legal poderia ter sido mais ambicioso na remoção de entraves para a consolidação das startups. “É animador que as pequenas empresas inovadoras ganhem mais atenção, já que possuem características diferentes de outros tipos de negócios. Mas, certamente, há pontos que poderiam ser melhores”, comenta Rafael Matone Chanin, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e líder do Tecnopuc Startups, ambiente de desenvolvimento de startups da instituição. Um deles, descartado durante a tramitação do projeto no Congresso, envolvia a possibilidade de essas empresas poderem optar pelo regime do Simples Nacional – com menor carga tributária e arrecadação simplificada de impostos – e, ao mesmo tempo, organizarem-se como sociedades anônimas. “Isso significa que as startups continuarão tendo de escolher entre aderir a um regime fiscal mais favorável ou adotar um tipo societário que atraia mais investidores”, comenta Chanin.
Outra demanda do setor deixada de lado no texto final da nova legislação envolvia a regulamentação dos planos de opção de compra de ações pelos empregados de startups. Esse modelo de remuneração é amplamente usado em empresas dos Estados Unidos e de alguns países da Europa como estratégia para atrair e reter talentos. “Nele, a companhia permite que seus funcionários adquiram ações da própria companhia por valores mais baixos que os praticados no mercado, descontando o investimento de seu salário”, explica.
Um dispositivo que permitiria aumentar os investimentos em startups tratava da diminuição da alíquota de tributação dos rendimentos decorrentes de aportes nessas empresas. “A tributação do investimento em startups recebe hoje o mesmo tratamento fiscal dos rendimentos de fundos de renda fixa”, esclarece a economista Fernanda Cahen, do Departamento de Administração do Centro Universitário da FEI. “Dessa forma, entre fazer um aporte de risco em uma startup e investir em ativos mais seguros, o investidor ficará com a segunda opção.” Esses e outros pontos constavam na versão do projeto aprovada na Câmara dos Deputados no início do ano, mas foram vetados no Senado, que modificou parte do conteúdo do texto.
Júlio Facó, da UFABC, afirma que seria preciso ir além em outro ponto fundamental: “O próprio Estado precisa criar ou aprimorar seus mecanismos de investimento em empresas inovadoras”. Segundo ele, o capital de risco – um tipo de investimento que aposta em firmas com alto potencial de crescimento – ajuda as startups a ingressarem em setores já existentes ou criar nichos de mercado. “Mas o capital de risco tende a ser escasso nos estágios iniciais dessas empresas porque o grau de incerteza em relação às suas tecnologias ou modelos de negócio é muito mais alto nessa fase”, comenta. Nos Estados Unidos, país com um dos mais consolidados sistemas de inovação no mundo, programas governamentais como o de Pesquisa para a Inovação em Pequenas Empresas (SBIR) e o Programa de Tecnologia Avançada (ATP) do Departamento de Comércio americano procuram contornar esse problema contribuindo com parte do financiamento de novas empresas de tecnologia.
O Brasil dispõe de alguns mecanismos semelhantes, como o programa de concessão de subvenção econômica, administrado pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), que busca promover a inovação e a competitividade das empresas brasileiras por meio da aplicação de recursos públicos não reembolsáveis em atividades empresariais de PD&I. Isso permite que o Estado compartilhe com elas os custos e riscos do processo de inovação. Dados dos últimos cinco anos, porém, apontam para um cenário de estagnação em patamares muito baixos dos recursos oferecidos por esse programa a empresas no Brasil (ver Pesquisa FAPESP nº 304). Em São Paulo, a FAPESP tenta preencher essa lacuna com programas como Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), que desde 1997 apoia startups de base tecnológica de até 250 empregados.
Na avaliação de Moacir Oliveira, da FEA-USP, o apoio à inovação deve tomar a forma de investimentos em P&D, infraestrutura, capacitação profissional e apoio direto e indireto a empresas e tecnologias específicas. “Mas o que se vê nesse momento é uma diminuição dos investimentos em todas as áreas que deveriam compor o sistema nacional de inovação, das universidades às empresas inovadoras”, afirma. Para Rafael Chanin, é preciso trabalhar para tornar o marco legal ainda mais competitivo. A inovação, segundo ele, resulta de estratégias de longo prazo, investimentos direcionados e tolerância ao fracasso. “Tudo isso se insere em uma cultura que ainda está por ser criada e melhor assimilada no Brasil”, complementa Facó.
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