Xakriabá. Ashaninka. Macuxi. Xukuru. Essas são algumas das etnias dos prefeitos indígenas no comando de municípios brasileiros a partir de 1 de janeiro de 2021. Segundo levantamento divulgado pela Apib (Associação dos Povos Indígenas do Brasil), foram dez os indígenas vencedores nas últimas eleições municipais (veja tabela ao final da reportagem). Já os dados oficiais do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) diferem, totalizando oito prefeitos — nem todos os candidatos são atentos à autodeclaração, embora tenham essa origem étnica, pertençam a comunidades indígenas e sejam lideranças conhecidas.
Oficialmente, o número de mandatos indígenas em 2021 teve um aumento de 27% em relação a 2016, primeiro ano em que foi possível escolher a autodeclaração, com seis prefeitos eleitos. Embora exista uma atmosfera geral de comemoração, os diferentes contextos e configurações indicam também complexidades inerentes a um processo que articula questões políticas e identitárias.
“Há essa sensação de maior representatividade, mas antes de 2016 não existiam sequer dados oficiais”, argumenta a socióloga e ativista política Avelin Buniacá Kambiwá. “Também sinto que ainda experimentamos uma visão misteriosa sobre os políticos indígenas, como se não fossem pessoas exercendo cargos de poder, naquela ideia do bom selvagem. É a mesma percepção mágica que acaba levando à nossa morte e à destruição de nossos territórios. Acredito que para nós, indígenas, fica a função de observar e fiscalizar, como seria necessário em qualquer outra gestão.”
Já para Sônia Guajajara, coordenadora da Apib, esses são os primeiros passos em um contexto que dificulta de todas as formas a chegada de representantes indígenas ao poder. “Em 2017, a Apib fez um grande chamado para incentivar as candidaturas indígenas. Nós entendemos que não haveria outra forma de defender o nosso direito de existir que não fosse através da política partidária. Concluímos que já era hora de uma articulação nesse sentido para sairmos deste lugar que nos é atribuído pelo Estatuto do Índio, de 1973, no qual somos colocados como tutelados pelo Estado. Nós não queremos ser tutelados, nós queremos fazer parte do Estado”, explica.
Como resultado, nas eleições de 2018 foram contabilizadas 130 candidaturas indígenas e foi conquistada pela primeira vez uma vaga parlamentar, com a eleição da deputada Joênia Wapichana. Em 2020, novamente candidaturas indígenas foram visibilizadas e apoiadas pela Apib, como forma de dar continuidade a esse processo. “Estamos começando e as dificuldades ainda são muitas. Se você observar, a maior parte das cidades onde esses prefeitos atuarão têm grande eleitorado indígena. O branco quer os nossos votos mas ainda não consegue aceitar a possibilidade de que sejamos capazes de realizar uma boa gestão. O racismo contra os indígenas ainda é muito intenso”, completa Sônia Guajajara.
Pelo menos dois municípios vivenciam especialmente a força simbólica e real da presença de lideranças indígenas em suas prefeituras. Em Pesqueira, no agreste pernambucano, o cacique Marcos Xukuru foi eleito com 51% dos votos, porém teve sua candidatura impugnada. Segundo o cacique, em fevereiro de 2003 um atentado contra sua vida levou à morte de dois jovens Xukuru e, após descobrir que indígenas estavam envolvidos, a comunidade entrou em revolta, banindo esses membros e protestando com incêndios e ações de depredação.
À época, o cacique Marcos — que afirma não estar envolvido nessas ações — e mais 35 pessoas foram indiciadas por crime contra o patrimônio privado. Condenados, pagaram suas penas realizando serviços à comunidade. “O grupo político que está no comando de Pesqueira há 30 anos decidiu utilizar esse fato para impugnar a minha candidatura”, diz Marcos Xukuru. “A justiça local nos deu vitória, mas perdemos quando a ação chegou ao TRE (Tribunal Regional Eleitoral).” Após recursos, decisões do TSE e do STF (Supremo Tribunal Federal) mantiveram a posse impedida, e em 1 de janeiro quem assumiu a prefeitura de Pesqueira foi o presidente da Câmara Municipal. Resta agora aguardar a decisão final do STF (Superior Tribunal Federal), prevista para fevereiro. O cacique Marcos participou da cerimônia de posse, ao lado do presidente da Câmara, e afirma seguir confiante em uma decisão favorável.
Segundo o cacique, sua vitória seria uma ameaça às estruturas de poder local. “Em nossa comunidade temos um modelo de gestão participativa, com a consciência de nossos direitos e a busca pela justiça e pela qualidade de vida para todos. Eu estou na luta pela causa indígena desde os sete anos de idade, quando já acompanhava o meu pai. Passei a ser cacique aos 21, quando ele foi assassinado, sempre atuando pelo povo Xukuru e seu território, sob a perspectiva da defesa dos direitos humanos. Não é de se espantar, portanto, que existam tantas forças contrárias à minha chegada a esse cargo de poder. Trata-se de uma vitória não apenas minha, mas da luta indígena em si”, afirma.
O pai do cacique Marcos, Chicão Xukuru, foi assassinado em 1998 a mando de latifundiários da região após seis meses sob ameaça, sem conseguir proteção dos órgãos governamentais. Em 2018, a luta dos Xukuru levou o Estado brasileiro a ser responsabilizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por violações do direito à garantia judicial, de proteção judicial e à propriedade, resultando no pagamento de uma indenização no valor de 1 milhão de dólares, recebidos pelos Xukuru de Pesqueira no início de 2020.
Já o município de Uiramutã, em Roraima, faz fronteira tríplice com Venezuela e Guiana e conta com uma população 98% indígena, composta por membros das etnias Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Taurepang e Patamona. Sua área se concentra quase que inteiramente dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, com apenas um pequeno centro administrativo de frequência e habitação de não indígenas. Após anos de mobilização, a TI foi demarcada de forma permanente em 2009, levando à saída de invasores e a uma reformulação social. No início de 2020, pela primeira vez desde então, garimpeiros voltaram a ser flagrados atuando ilegalmente na região. No mesmo período, o presidente Jair Bolsonaro passava a divulgar de forma ampla seu projeto de lei que visa autorizar atividades de mineração em terras indígenas.
“Eu agora serei prefeito e seguirei todos os regimentos, além de atender às necessidades dos não indígenas. Mas eu também sou um tuxaua e continuarei sendo depois de exercer esse cargo, o que significa que tenho um compromisso muito sério para com o meu povo”, aponta Tuxaua Benisio (Rede), do povo Macuxi, que sucede o também indígena Manoel Araújo (PP). Ser um tuxaua — equivalente a cacique —, para a etnia Macuxi, significa ter a função de atuar como o comandante da comunidade. Dentre os planos de Benisio, além da manutenção e fortalecimento da luta pelo território, está o desenvolvimento sustentável local principalmente por meio da agricultura.
Filiado a um partido alinhado ao presidente Jair Bolsonaro, o Republicanos, o cacique Marcos Xukuru afirma que sua escolha se deu porque essa era a única forma de garantir a sua elegibilidade. O PT, partido considerado de esquerda, também fez parte da frente que o elegeu. “Essa foi a minha escolha e realmente não acredito que possa existir alguma interferência em minha atuação, já que todos conhecem a minha trajetória. De todo modo, eu tenho a opção de mudar de partido caso perceba que meu mandato seria de alguma forma prejudicado”, explica o cacique.
Em São João das Missões, em Minas Gerais, município com 80% de população indígena, Jair Xakriabá também venceu sob a sigla do Republicanos, partido que tem ainda viés cristão e conservador. Outras siglas de prefeitos indígenas como PP e PSD compõem no Congresso a chamada bancada ruralista, que atua diretamente contra os interesses dos povos indígenas.
“Na prática não existe uma filiação em relação ao ideário do partido e acabam sendo escolhidas mesmo composições locais que visam favorecer a chegada a esses espaços de poder. Trata-se de um recorte da diluição do senso partidário na política brasileira como um todo”, explica Ivar Busatto, coordenador-geral da Operação Amazônia Nativa (Opan), organização que atua na defesa dos povos indígenas desde 1978.
Não se pode ignorar, ainda, a aproximação de algumas candidaturas indígenas com o eleitorado conservador. Em discursos de campanha no município de Pariconha, em Alagoas, por exemplo, o atual prefeito eleito Tony de Campinhos (PP), da etnia Karuazu, reforçou o conceito de “Deus no comando”, como um aceno aos eleitores neopentecostais, muitos deles inclusive indígenas — o mesmo ocorreu na mineira São João das Missões. Nas duas realidades, dentre os principais desafios para os prefeitos eleitos estão o combate à pobreza e à falta de saneamento básico.
Para Joênia Wapichana (Rede-RR), primeira deputada federal indígena eleita no país, é importante que se mantenha no horizonte a busca pela construção de uma coerência política e discursiva, um alinhamento que possa beneficiar a luta dos povos indígenas brasileiros em um contexto mais amplo e potente, fugindo de simplificações como a definição de esquerda e direita. “Temos discutido essa questão partidária com a intenção de verificar o alinhamento dos partidos com pontos como a demarcação das terras indígenas, o meio ambiente, a sustentabilidade, os direitos das mulheres, entre outros. Idealmente, essas seriam as especificidades do olhar indígena. Vale lembrar ainda que nós temos um modo de participação democrática, a chamada ‘política do malocão’, que também merece ser refletida nas relações político-partidárias que exercemos”, esclarece a deputada.
Sônia Guajajara lembra que mesmo o partido pelo qual concorreu à vice-presidência em 2018 ao lado de Guilherme Boulos, o PSOL, apesar de seu alinhamento, não necessariamente facilita a filiação partidária indígena ou apoia amplamente candidaturas dessa natureza . “Não é só a elegibilidade, embora esse seja um fator importante. O fato é que os partidos também têm os seus próprios interesses e limitações, independente de sua visão política e ideológica. E a causa indígena ainda está longe de figurar nessas prioridades. Por isso é importante, sim, respeitar a ocupação de espaço feita por esses prefeitos porque ela está longe de ser fácil”, aponta.
A única região brasileira que não terá prefeitos indígenas a partir de 2021 é a Centro-Oeste, apesar de contar com a segunda maior concentração de povos indígenas do país e ser marcada por conflitos e disputas que ameaçam frontalmente os indígenas que ali vivem. Para Ivar Busatto, da Opan, que concentra sua atuação nos estados do Mato Grosso e Amazonas, alguns fatores se somam para explicar esse contexto.
“Apesar de existir uma quantidade grande de indígenas, eles se encontram espalhados em diferentes municípios. Isso dificulta a presença de uma coalizão forte para a atividade política nas cidades. Falta, ainda, a formação de lideranças que articulem os interesses para além das comunidades, representantes capazes de fazer esse diálogo entre os indígenas e os não indígenas de uma forma que leve à maior representatividade”, explica Busatto. Outro aspecto relevante, segundo o coordenador da Opan, é, novamente, o racismo contra os indígenas, sobretudo na região do Araguaia.
Já a região Norte contará com a maior quantidade de prefeitos indígenas — quatro no total. Ao contrário do que ocorre na região Centro-Oeste, a questão populacional é um facilitador, já que ali vivem cerca de 40% dos indígenas autodeclarados no país. O Sudeste contará com um prefeito indígena, o Nordeste com dois e a região Sul, três. Um deles, Ivan Guevara Lopez, é na realidade da Nicarágua e o município que irá comandar, Arroio Grande (RS), não conta com indígenas aldeados.
“Nós buscaremos articulação com todos os prefeitos, mas sabemos que, em alguns casos, a autodeclaração não significa qualquer relação com a causa indígena. Basta lembrarmos que o atual vice-presidente, o general Hamilton Mourão, se autodeclarou indígena em sua candidatura e, como sabemos, nem pertence a nenhum povo nem é favor da nossa causa”, esclarece Sônia Guajajara.
“O que se espera de alguém que fala que faz um mandato indígena é que honre essa nomenclatura que significa, principalmente, estar a serviço do coletivo, com um compromisso para com o seu povo mas também com toda a coletividade sob sua gestão”, diz Avelin Buniacá Kambiwá. “Nesse sentido, apenas daqui a quatro anos nós teremos a oportunidade de avaliar e saber quem foram, de fato, os prefeitos indígenas brasileiros, a partir de como conduziram os seus mandatos.”
Município: São Gabriel da Cachoeira, Amazonas
Prefeito: Clóvis Curubão (PT), 48 anos
Etnia: Tariana
Porcentagem de votos: 30,96%
Desafios do mandato: O município conta com a maior população indígena do país e fala três idiomas oficiais além do português: o nheengatu, o tukano e o baniwa. Esse é o segundo mandato consecutivo de Curubão que contará com uma Câmara de Vereadores também formada exclusivamente por indígenas.
Município: Marcação, Paraíba
Prefeita: Eliselma Silva de Oliveira, 41 anos
Etnia: Potiguara
Partido: DEM
Porcentagem de votos: 54,48%
Desafios do mandato: Lili, como é conhecida, foi a única mulher indígena eleita em 2020, concorrendo em uma chapa completamente indígena. Em seu segundo mandato, tem em seu plano de governo a intenção de continuidade às ações implantada nas escolas, com a presença de grupos sociais de ensino de danças típicas e da língua tupi e ampliar a equipe de indígenas na prefeitura, principal fonte de empregos do município. Seu projeto de pavimentação das 15 aldeias do município é visto como controverso e conta com ampla rejeição.
Município: Marechal Thaumaturgo, Acre
Prefeito: Isaac Piyãko, 48 anos
Etnia: Ashaninka
Partido: PSD
Porcentagem de votos: 53,99%
Desafios do mandato: Este é o segundo mandato consecutivo de Piyãko, que, apesar de indígena, atuou basicamente em melhorias na área urbana da cidade em sua primeira gestão, o que resultou em críticas. Agora, afirma, seus focos serão a área rural, as comunidades ribeirinhas e as aldeias indígenas. O prefeito espera fortalecer a agricultura familiar na região.
Município: Arroio Grande, Rio Grande do Sul
Prefeito: Ivan Antônio Guevara Lopez, 63 anos
Etnia: o prefeito é indígena da Nicarágua, naturalizado brasileiro
Partido: PP
Porcentagem de votos: 45,62%
Desafios do mandato: Não existem indígenas aldeados no município. Dentre as iniciativas divulgadas como prioritárias para o mandato está o fomento ao agronegócio, principal atividade econômica da região, como forma de melhorar os índices locais de emprego e renda.
Município: São João das Missões, Minas Gerais
Prefeito: Jair Cavalcante Barbosa, 37 anos
Etnia: Xakriabá
Partido: Republicanos
Porcentagem de votos: 53,70%
Desafios do mandato: Jair foi o único candidato indígena no estado de Minas Gerais para o cargo executivo. O principal desafio do mandato está em conseguir criar alternativas de renda para a população indígena do município — 80% do total, a grande maioria residente da Terra Indígena Xakriabá e dependente dos recursos do Bolsa Família. Para isso, o prefeito irá buscar parcerias com as pequenas empresas da região.
Município: Entre Rios, Santa Catarina
Prefeito: João Maria Roque, 49 anos
Etnia: Kaingang
Partido: MDB
Porcentagem de votos: 46,96%
Desafios do mandato: Cerca de 40% da população do município é de indígenas aldeados. Este é o segundo mandato de João Maria Roque, que esteve no cargo entre 2012 e 2016 e, por dois anos e meio, atuou como coordenador da Regional Interior Sul da Funai (Fundação Nacional do Índio). Dentre as principais propostas para seu mandato está a melhoria das condições de trabalho e renda da população indígena local, a continuidade de projetos habitacionais para indígenas e não indígenas e o apoio aos produtores rurais da região.
Município: Pesqueira, Pernambuco
Prefeito: Marcos Xukuru, 42 anos
Etnia: Xukuru
Partido: Republicanos
Porcentagem de votos: 51%
Desafios do mandato: Implementar no município práticas colaborativas capazes de trazer melhorias para a população indígena e não indígena, além de seguir implementando ações que visem a manutenção do território indígena Xukuru. Sua presença na prefeitura significa a ruptura de grupos políticos que estão no comando do município há aproximadamente 30 anos. Por decisões do TSE e do STF, Marcos Xukuru está atualmente impedido de assumir o cargo, agora ocupado pelo presidente da Câmara Municipal.
Município: Pariconha, Alagoas
Prefeito: Tony de Campinhos, 41 anos
Etnia: Karuazu
Partido: PP
Porcentagem de votos: 61,21%
Desafios do mandato: Um dos principais desafios para a gestão é a melhoria estrutural de Pariconha, que conta com baixíssimos índices de saneamento básico. Não há nas propostas de governo destaque a ações voltadas especificamente para as populações indígenas do município, mas está entre os planos do novo prefeito a estruturação da Secretaria do Meio Ambiente.
Município: Uiramutã, Roraima
Prefeito: Tuxaua Benisio, 52 anos
Etnia: Macuxi
Partido: Rede Sustentabilidade
Porcentagem de votos: 42,49%
Desafios do mandato: Uiramutã tem 98% de sua população de origem indígena, concentrada principalmente na TI Raposa Serra do Sol. Dentre os principais desafios para o mandato está o fortalecimento da organização social local e a luta pela manutenção do território, recentemente ameaçado por garimpeiros.
Município: Normandia, Roraima
Prefeito: Wenston Raposo, 42 anos
Etnia: Macuxi
Partido: PSD
Porcentagem de votos: 24,39%
Desafios do mandato: Normandia tem população 90% indígena distribuída em 63 comunidades e apenas uma pequena sede de acesso não indígena, assim como a vizinha Uiramutã. Compartilha também dos mesmos desafios: a defesa do território, o amadurecimento da organização social local e a busca por caminhos para o desenvolvimento sustentável.
Fonte: Débora Pinto em Mongabay – licenciado sob Creative Commons Attribution-NoDerivatives 4.0 International License
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