Números impressionantes e grandes incertezas brotam do projeto Flora do Brasil 2020, levantamento recém-concluído sobre a diversidade de plantas do país. Hoje (23/2), o lançamento de um documento de 17 páginas com os principais resultados obtidos até agora representa o cumprimento de uma das metas da Estratégia Global de Conservação das Plantas, vinculada à Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) da Organização das Nações Unidas (ONU), da qual o Brasil é signatário.
Resultado de 12 anos de trabalho de 979 pesquisadores de 224 instituições em 25 países, o Flora do Brasil 2020 é uma plataforma on-line de acesso aberto com descrições científicas, chaves de identificação taxonômica e imagens de 46.975 espécies de plantas, algas e fungos nativos já reconhecidos no país. Traz também 3.041 espécies naturalizadas ou cultivadas, como manga, batata, tomate e café.
O total de espécies nativas coloca o Brasil como o país com maior diversidade de espécies do mundo, seguido por China, Indonésia, México e África do Sul. De 2015 a 2020, 2.100 espécies novas entraram na base de dados, o que corresponde a uma nova espécie descrita por dia, em revistas científicas especializadas.
Ao mesmo tempo, vastas áreas distantes de centros urbanos ou de acesso difícil, principalmente na região Norte, ainda não foram examinadas por botânicos e não se sabe quanto das espécies catalogadas pode já ter se perdido em consequência do desmatamento, que atingiu uma das taxas mais altas nos últimos anos, e das queimadas. “Nunca vimos tanto incêndio no Pantanal como no ano passado”, diz o biólogo Bráulio Ferreira de Souza Dias, da Universidade de Brasília (UnB).
O Flora do Brasil 2020 faz parte de um esforço global de mapeamento da biodiversidade. Em 2000, Dias coordenou reuniões da CDB, da qual foi secretário-geral de 2012 a 2017, nas ilhas Canárias, na Espanha, e em Londres, no Reino Unido, que resultaram na proposta da Estratégia Global de Conservação das Plantas – com 16 metas, entre elas a organização dos dados de levantamentos da flora de cada país –, formalmente adotada pela convenção em 2002.
Em 2012, essa mobilização resultou na criação da Flora Mundial On-line (WFO), que reúne 350.510 espécies aceitas como válidas e já incorporou 135,5 mil descrições de espécies, como detalhado em um artigo publicado em dezembro de 2020 na revista científica Taxon. No inventário global, o maior levantamento é o do Brasil, seguido pelo da China, com cerca de 30 mil espécies.
Os estudos sobre a diversidade botânica brasileira começaram com a Flora fluminensis, obra em 10 volumes, com 1.626 descrições de espécies, publicada em 1881, 70 anos depois da morte de seu autor, o frade botânico mineiro José Mariano da Conceição Veloso (1741-1811). Ainda maior, em 15 volumes publicados de 1840 a 1906, a Flora brasiliensis, coordenada pelo botânico alemão Carl von Martius (1794-1868), apresentou descrições de 19.700 espécies de plantas do país, menos da metade do Flora do Brasil 2020. Depois, botânicos brasileiros fizeram outros levantamentos e floras estaduais, reunidos nesse levantamento nacional mais recente.
Usuários
“O Flora do Brasil tem sido bastante útil em pesquisa aplicada de conservação ambiental e de uso sustentável da biodiversidade”, observa Dias. Segundo ele, informações sobre a identificação e distribuição geográfica de espécies de plantas fundamentam projetos de reflorestamento e estudos de impacto ambiental da construção de estradas e hidrelétricas. Além disso, motivaram os jardins botânicos estaduais a criarem coleções vivas de espécies em extinção – atualmente, há cerca de 2 mil delas.
Elaborado a pedido do Ministério do Meio Ambiente, com financiamento do governo federal e fundações estaduais como a FAPESP, o site do Flora do Brasil 2020 tem sido visto por cerca de 3,5 milhões de usuários por ano desde 2015. Ali se pode conhecer a diversidade botânica por estado – São Paulo, por exemplo, abriga 7.514 espécies de angiospermas (plantas com sementes protegidas por frutos carnosos ou secos), 3 de gimnospermas (com sementes expostas) e 1.900 de fungos. A página do pau-brasil (Paubrasilia echinata), além de sua área de distribuição, contém os nomes populares dessa espécie, chamada de ibirapitanga e de arabutam em todo o país e de pau-pernambuco e de pau-brasil-folha-de-laranja especificamente no Nordeste.
Lacunas
“O trabalho não está concluído”, frisa a botânica Rafaela Campostrini Forzza, do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ), coordenadora do trabalho. “Temos que continuar com a identificação e a catalogação porque ainda há lugares pouco estudados, como a serra do Divisor, no Acre, a serra de Tumucumaque, nos estados do Pará e Amapá, e a Cabeça do Cachorro, no Amazonas.”
Em outubro de 2019, na última viagem antes da pandemia, Forzza, com sua equipe, conheceu as árvores gigantes do Amapá. “É uma sensação única”, comenta. “As outras árvores têm 30 ou 40 metros, mas parecem baixinhas ao lado dos angelins que chegam a 80 metros.”
Ela e outros pesquisadores do JBRJ participaram também de um levantamento da diversidade de plantas da serra do Aracá, região com altitude média entre mil e 1.200 metros no estado do Amazonas, na fronteira com a Venezuela. As expedições realizadas por eles em 2011 e 2014 e por outros botânicos em anos anteriores revelaram 24 espécies endêmicas (exclusivas) de plantas. Coordenado por Rafael Barbosa-Silva, do Instituto Tecnológico Vale, de Belém, e publicado em outubro de 2020 na revista The Botanical Review, o trabalho ressalta que, nessa área, apesar de seu valor para a biodiversidade amazônica e de integrar um parque nacional, a falta de fiscalização favorece a mineração ilegal, especialmente nas áreas abertas e de maior endemismo, os chamados campos rupestres.