Estudo recente revela que comunidades indígenas de Mato Grosso estão contaminadas pelo uso crescente de pesticidas pela indústria agrícola
- Na Terra Indígena Tirecatinga, habitada pelo povo Nambikwara, cerca de 88% das plantas coletadas, incluindo ervas medicinais e frutas, possuíam resíduos de agrotóxicos.
- Amostras revelaram altos níveis de pesticidas em ecossistemas e águas distantes dos campos de cultivo, incluindo carbofurano, uma substância altamente tóxica que é proibida no Brasil, na Europa e nos EUA.
- Especialistas culpam a falta de controle dos funcionários do governo pelos danos ambientais generalizados e pela crise de saúde crescente entre as populações indígenas, já que as comunidades relatam números cada vez maiores de problemas respiratórios, intoxicações agudas e cânceres.
Por Aimee Gabay em Mongabay | O uso de pesticidas no Brasil cresceu mais de 300 mil toneladas desde 2010, de acordo com o Atlas dos Pesticidas.
Um estudo recente, publicado pela ONG Operação Amazônia Nativa (Opan), em parceria com o Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), revela os efeitos nocivos de produtos usados na monocultura de algodão em populações indígenas de Mato Grosso, o estado com as maiores concentrações de agrotóxicos do país.
Segundo o estudo, estima-se que cada habitante de Mato Grosso tenha sido exposto a 65,8 litros de agrotóxicos em 2018, sendo que algumas dessas substâncias são proibidas. A situação é pior para as pessoas que vivem nas cidades do interior do estado, onde a exposição é estimada em mais de 300 litros por habitante a cada ano.
Mato Grosso é o maior produtor de algodão do Brasil, e seu cultivo é o que mais utiliza agrotóxicos no estado. Em média, 28,86 litros de pesticidas são usados por hectare. É a segunda cultura que mais utiliza agrotóxicos no Brasil, perdendo apenas para o fumo, que utiliza em média 60 litros por hectare.
Para avaliar o impacto do setor agrícola na região, os responsáveis pelo estudo coletaram amostras de plantas, árvores e água na Terra Indígena Tirecatinga, na bacia do Rio Juruena, para análise laboratorial. Descobriram-se resíduos de agrotóxicos em 88% das plantas coletadas, incluindo ervas medicinais e frutas.
A TI Tirecatinga, habitada pelo povo Nambikwara, tem uma das maiores concentrações de agrotóxicos do país. Todas as plantas e vegetação próximas aos campos são afetadas por pesticidas. Há relatos de redução na floração de árvores frutíferas como pequi e manga, que são amplamente utilizadas pelos indígenas em sua alimentação, além da diminuição da produção de abelhas e mel.
Cleide Adriana da Silva Terena, moradora da TI Tirecatinga e presidente da Thutakinasu, uma associação de mulheres local, disse à Mongabay que os pesticidas têm sido um problema em sua comunidade há mais de três anos. “Não estamos tomando nenhuma precaução porque temos pouco entendimento de como lidar com o problema”, disse.
Os pesticidas, que geralmente são aplicados nos campos usando bicos de pulverização, podem percorrer longas distâncias pelo vento, muitas vezes se alastrando para terras vizinhas. Esse fenômeno, conhecido como deriva de agrotóxicos, é responsável pela contaminação fora dos campos agrícolas, às vezes chegando a mais de mil quilômetros das zonas de pulverização.
Uma das substâncias encontradas nas amostras foi o carbofurano, proibido no Brasil desde 2017 e há mais de 50 anos na Europa e nos Estados Unidos. Esse produto químico pode ser fatal se ingerido ou inalado, resultando em malformações fetais e danos graves aos sistemas neurológico, respiratório e endócrino.
Márcia Leopoldina Montanari Corrêa, professora do Instituto de Saúde Coletiva da UFMT e coordenadora do novo relatório, disse à Mongabay que a intoxicação aguda é um dos muitos perigos da cadeia produtiva do algodão para a saúde humana. “Muitas dessas comunidades utilizam a água do rio sem nenhum tipo de tratamento e relatam que sentem cheiro e sabor da contaminação em épocas de pulverização intensa”, comentou Corrêa.
Câncer, malformações congênitas, doenças neurológicas, psiquiátricas e doenças do sistema endócrino estão entre os efeitos colaterais da intoxicação por agrotóxicos.
“Esses problemas são muito preocupantes para nós”, disse Edna Zolozoiqueimairo, outra liderança da TI Tirecatinga, à Mongabay. Ela conta que recipientes vazios de pesticidas muitas vezes acabam nos rios, e que houve uma época em que as pessoas de sua aldeia, sem entender os perigos da contaminação, recolhiam esses recipientes da água para uso doméstico em suas casas.
Em resposta ao estudo, a CropLife Brasil, associação que representa as maiores empresas produtoras de pesticidas em atividade no Brasil, como Basf, Bayer, Corteva, FMC e Syngenta, contesta as constatações sobre a exposição a agrotóxicos e o fato de que a deriva tenha percorrido centenas de quilômetros a partir das regiões de cultivo.
A CropLife Brasil disse à Mongabay que “existe uma regulamentação estrita em relação à aplicação de pesticidas em campos de cultivo”, especialmente para produtores de grande escala.
Brasileiros consomem 500 mil toneladas de pesticidas por ano
A contaminação por pesticidas é uma grande preocupação ambiental e de saúde no Brasil, principalmente entre as comunidades indígenas. Um quinto dos agrotóxicos produzidos no mundo é usado no país. De acordo com dados publicado pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), os brasileiros consomem mais de 500 mil toneladas dessas substâncias por ano.
Os dados do Ibama mostram que uma pessoa morre a cada dois dias e meio de intoxicação direta por produtos químicos agrícolas, com incidências alarmantes entre os mais jovens da população brasileira.
No primeiro trimestre de 2019, após o governo do presidente Jair Bolsonaro aprovar mais de 150 novos agrotóxicos, o uso de neonicotinoides causou a morte de mais de 500 milhões de abelhas em todo o país.
Um porta-voz da Rede Brasileira de Interações entre Plantas e Polinizadores (Rebipp) disse à Mongabay que 76% das plantas cultivadas no Brasil dependem de polinizadores para produzir frutos e sementes. “O declínio nas populações de abelhas compromete a polinização das plantas cultivadas e, consequentemente, a produção de alimentos”, afirmou.
As maiores empresas agroquímicas do mundo – entre elas o grupo Syngenta, Bayer, Corteva e Basf – controlam cerca de 70% do mercado global de pesticidas. Em 2018, o químico da Syngenta mais vendido no Brasil foi o tiametoxam, um inseticida proibido na União Europeia por ser altamente tóxico para as abelhas. Resíduos dessa substância também foram encontrados em plantas dentro da Terra Indígena Tirecatinga.
Indígena Tirecatinga colhendo hortaliças de uma horta tradicional. Imagem de Cleide Adriana da Silva Terena.
Muitas intoxicações não são registradas no Sistema de Informação em Saúde (SIS) devido a equipes de vigilância em saúde despreparadas, a intervenção dos gestores do agronegócio e a baixa procura de tratamento por parte dos intoxicados, que temem represálias e a consequente perda do emprego.
Pesquisa que compara o número de intoxicações agudas autorreferidas por indivíduos com as informadas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) estima que, para cada caso notificado de intoxicação por agrotóxicos no Mato Grosso, 26 não serão registrados. Pior ainda, em Sapezal, município mato-grossense com as maiores concentrações de agrotóxicos do país – onde fica a TI Tirecatinga -, 100% dos casos não são notificados.
Pesquisadores da Fase, uma ONG para o desenvolvimento e proteção das comunidades locais, argumentam que as empresas agrícolas raramente cumprem os regulamentos relativos a distâncias seguras de pulverização. De acordo com a lei brasileira, os pesticidas só podem ser pulverizados a 90 metros de distância de residências, fontes de água e estradas, uma regra que já oferece pouca proteção contra a dispersão de pesticidas.
Em dezembro de 2020, 150 alunos foram encaminhados para uma Unidade de Pronto Atendimento em Sinop, Mato Grosso, depois que uma fazenda vizinha borrifou pesticidas a 20 metros do terreno da escola durante o horário de aula. A fazenda foi autuada posteriormente pelo Instituto de Defesa Agropecuária (Indea) de Mato Grosso, órgão estadual responsável por ocorrências dessa natureza.
Os agricultores que usam pesticidas na região também estão em risco. Segundo o Censo Agropecuário de 2017, cerca de 18% dos produtores rurais são mulheres. No entanto, pesquisas têm mostrado que, quando se trata de intoxicação aguda por agrotóxicos na agricultura brasileira, a mortalidade entre as mulheres é maior do que a estimada entre os homens.
Maria Claudia Peres Moura Luna, pesquisadora de Saúde Pública e Ocupacional da Universidade Federal da Bahia (UFBA) no Brasil, constatou que 24,9% das mulheres morreram devido a intoxicação ocupacional por agrotóxicos, em comparação com 8,9% dos homens. A razão disso parece estar relacionada às diferenças nas condições de trabalho.
Agronegócio no poder
Para estimular o crescimento do setor agrícola, o governo brasileiro concede isenções fiscais aos grandes produtores. Em Sapezal, por exemplo, os produtores de algodão são incentivados por diversos pacotes, como a Lei Kandir, que isenta as exportações agrícolas do pagamento de ICMS no Brasil, e o Fundo de Apoio à Cultura do Algodão, que oferece subsídios para promover a expansão do algodão no Mato Grosso.
“Como o estado de Mato Grosso é amplamente dedicado ao agronegócio e também é administrado por empresários e representantes da indústria, há um certo silêncio sobre a contaminação e o risco à saúde”, contou Spolti à Mongabay. “Poucas pessoas falam sobre o assunto por medo de represálias no trabalho e até mesmo por medo de sofrer violência.
Por mais de 15 anos, Larissa Bombardi coletou dados sobre o setor de pesticidas do Brasil, a maioria dos quais contradiz as declarações da indústria de práticas seguras e regulamentação eficaz. Após a publicação de seu atlas sobre pesticidas em maio de 2019, ela foi sujeita a intimidações e ameaças e foi forçada a se mudar para a Bélgica para proteger a si mesma e a seus dois filhos.
No início deste ano, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei (PL 6299/2002) que pretende enfraquecer os regulamentos que regem o uso de pesticidas no Brasil, expondo as comunidades a maiores danos ambientais e humanos.
Um acordo comercial entre a UE e os países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai), que visa aumentar o comércio de produtos agrícolas como carne, soja e pesticidas, também é discutido desde 2019. Os críticos temem que o acordo aumente o desmatamento às custas da floresta tropical, do clima e dos direitos das comunidades indígenas.
Ambientalistas esperam que o novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva influencie as mudanças nessas isenções fiscais e projetos de lei e reverta o desmantelamento das proteções ambientais que ocorreram durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro.
O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, disse em sua posse e na cúpula do clima COP27 que a mitigação do clima será a maior prioridade de seu governo. Imagem cortesia de Ricardo Stuckert.
No primeiro dia de mandato, o novo presidente assinou um pacote de ordens executivas para reconstruir as instituições ambientais do país e assinou vários decretos, incluindo um que restabelecerá o processo de sanção ambiental — desmantelado durante a presidência de Bolsonaro —, que garantirá que multas não possam mais ser sonegadas por proprietários de terras que cometem crimes ambientais.
Francileia Paula de Castro, representante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, acredita que a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pnara) é um passo importante para proteger os territórios indígenas próximos às lavouras. “Hoje, os agrotóxicos não representam apenas um risco para a saúde das famílias”, disse. “São uma ameaça direta à reprodução social dessas comunidades”.
Este texto foi originalmente publicado por Mongabay de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.