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O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) vem organizando famílias para ocupar e cultivar terras em todo o país desde o fim da ditadura militar.

Por Anna Lappé, da Mongabay.

  • A agroecologia – uma forma altamente sustentável de agricultura – tornou-se cada vez mais central para a plataforma de reforma agrária do movimento, e é ensinada em 2 mil escolas estabelecidas em acampamentos do MST por todo o país.
  • Nas quatro décadas desde sua criação, o MST organizou mais de 350 mil famílias para criar comunidades, cooperativas, fazendas, pequenas empresas de processamento de alimentos e mercados de produtores, cada vez mais baseados nesse método sustentável de produção de alimentos, que também traz benefícios para o clima e a biodiversidade.
  • Em entrevista à Mongabay, três líderes do programa de agroecologia do MST compartilham sua filosofia, conquistas e objetivos.

Nascido no início dos anos 1980, ao fim de 21 anos de ditadura militar no Brasil e em meio à persistente desigualdade fundiária, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) tem estado à frente da reforma agrária no Brasil há décadas. Seu trabalho é focado em tornar realidade a promessa constitucional de que a terra deve servir a uma função social. Contra um cenário de grande desigualdade – 10% das grandes fazendas ocupam quase três quartos da terra agricultável do país –, o MST vem organizando famílias para ocupar e cultivar terras em todo o país.

Nas quatro décadas desde sua criação, o MST organizou mais de 350 mil famílias para criar comunidades, cooperativas, fazendas, pequenas empresas de processamento de alimentos e mercados de produtores. Outras 90 mil famílias ainda vivem em acampamentos informais ou terras contestadas, lutando pela legalização das mesmas.

A educação e o treinamento em práticas agrícolas sustentáveis sempre esteve no coração do trabalho do movimento, e seu compromisso com a agroecologia se aprofundou em 2000, quando o MST a identificou como a chave para sua estratégia de construir sistemas alimentares resilientes. Desde então, o grupo vem criando centros de treinamento em agroecologia para seus integrantes e interessados.

Nesta entrevista à escritora Anna Lappé, três líderes de uma das escolas de agroecologia do MST, a Escola Latino-Americana de Agroecologia (ELAA), localizada em Lapa, no Paraná, falam sobre os princípios que norteiam o programa e os desafios que enfrentam. A conversa inclui comentários de Amandha Silva Felix, coordenadora e diretora de políticas da ELAA, e Vinícius Silva Oliveira e Wellington Lenon, do setor pedagógico da escola, editados em conjunto para melhor entendimento.

MST-agroecologia
A ELAA ocupa 12 hectares de terra que oferecem a possibilidade de treinamento prático para os alunos, um lugar para a pesquisa em agroecologia, além de hortas que abastecem o refeitório. A foto mostra uma área de produção agroflorestal em seu estágio inicial. Foto: Wellington Lenon/ELAA.

Mongabay: Vamos começar pelo compromisso do movimento com a educação de seus integrantes. Vocês podem falar sobre esse trabalho?

Felix, Oliveira, Lenon: Ao longo de sua história, o MST sempre teve um forte compromisso com a educação. O movimento construiu mais de 2 mil escolas em acampamentos e assentamentos ocupados pela reforma agrária. Em 2000, a agroecologia se tornou um tema transversal em todas as escolas do MST – desde o jardim da infância até o ensino superior. Hoje, muitas escolas do MST oferecem cursos de agroecologia em parceria com universidades públicas.

A ELAA foi inaugurada no outono de 2005. Em parceria com o Instituto Latinoamericano de Agroecologia Paulo Freire (Iala), com sede na Venezuela, lançamos o que se tornou a rede Iala de escolas da Via Campesina [o movimento internacional de camponeses agricultores] para difundir o treinamento em agroecologia para agricultores, jovens e adultos.

Desde sua fundação, a ELAA formou quase 200 pessoas, oferecendo um curso de Tecnologia em Agroecologia, de três anos e meio, e uma graduação de quatro anos em Educação do Campo, Ciências da Natureza e Agroecologia.

Mongabay: Como é a escola?

Felix, Oliveira, Lenon: A ELAA fica localizada num assentamento do MST chamado Contestado, no estado do Paraná. É uma escola criada pelo próprio movimento: fundada pelo movimento, construída por voluntários e parte da luta pela reforma agrária. Ela tem 12 hectares que incluem a criação de animais – porcos, vacas, ovelhas e galinhas – uma horta, agrofloresta, e plantações de feijão, milho e mandioca.

Mongabay: Qual é a filosofia do programa?

Felix, Oliveira, Lenon: Nossos cursos são orientados para jovens e adultos dos acampamentos e assentamentos da reforma agrária do Brasil e de outras regiões do mundo, incluindo comunidades agrícolas de outras partes da América Latina, como do Paraguai, Argentina, Equador, Venezuela, Haiti, República Dominicana, Colômbia e do continente africano, além de quilombolas e povos indígenas.

O programa oferece educação no campus e na comunidade. Os alunos passam uma parte do tempo na escola e outra em suas comunidades. Durante os três meses no campus, eles aprendem com professores conectados a instituições parceiras, entre elas a Universidade Federal do Paraná (UFPR) e o Instituto Federal do Paraná (IFPR). Quando voltam para casa, levam consigo as práticas e o conhecimento adquiridos no campus. Percebemos que isso permite uma poderosa troca e feedback entre o conhecimento empírico e o teórico.

Mongabay: Como os princípios da agroecologia influenciam o MST?

Felix, Oliveira, Lenon: O MST adotou a agroecologia como sua abordagem principal em fevereiro de 2000. Depois de várias décadas de organização, as falhas da agricultura convencional nos assentamentos da reforma agrária estavam muito claras para nós. Também aprendemos muito sobre agroecologia com movimentos parceiros de outros países. A Via Campesina foi uma influência especialmente importante para o MST caminhar nessa direção.

Integrantes do MST no Paraná estiveram à frente do processo de criação das escolas de agroecologia. Em 2004, a coordenação do MST no Paraná definiu como propósito dessas escolas a criação de espaços para aprender sobre produção agroecológica, apresentando resultados concretos para os agricultores e encorajando a adoção da cultura camponesa. Não menos importante, essas escolas são um local de desenvolvimento dos valores humanistas do nosso movimento – um lugar onde as pessoas trabalham juntas, se educam, aprendem novas perspectivas e se divertem.

Mongabay: Como vocês descreveriam a abordagem de ensino da escola?

Felix, Oliveira, Lenon: Na ELAA, falamos sobre nossa base em educação rural ou educação do campo. Para nós, a ideia de educação rural é baseada nas filosofias pedagógicas e epistemológicas da educação popular, especialmente do educador Paulo Freire. Esses são os pilares da práxis pedagógica da educação rural, que busca uma percepção crítica do mundo, contribuindo para a transformação das relações sociais necessárias para o desenvolvimento humano. Nesse sentido, tanto a forma como o conteúdo importam – indo do mais prático e concreto até o mais abstrato, e vice-versa. É uma dialética que não só leva à apropriação do conhecimento, mas também motiva a ação baseada nesse conhecimento. Como disse Paulo Freire: “Nós lutamos por uma educação que nos ensine a pensar – não que nos ensine a obedecer.”

Mongabay: Quais são alguns dos principais temas da agroecologia no programa?

Felix, Oliveira, Lenon: Nosso ensino cobre uma variedade de conteúdos relacionados à agroecologia, ligando teoria e prática, conhecimento científico e empírico. A escola também aborda o conteúdo sobre classe, capitalismo e o papel dos movimentos sociais na mudança social, além de temas como gênero, sexualidade e outros. Em 2022, o MST lançou o Dicionário de Educação e Agroecologia [PDF]. Com contribuições de 169 autores de 68 instituições diferentes – universidades públicas, institutos federais de educação, movimentos sociais, e institutos de pesquisa –, ele pretende servir tanto à educação formal quanto informal, trazendo as bases conceituais para o campo da educação e da agroecologia. A ELAA está acrescentando essa ferramenta à sua pedagogia.

Mongabay: Vocês podem falar sobre sua abordagem de pesquisa e exemplos favoritos de pesquisas realizadas na escola?

Felix, Oliveira, Lenon: Honestamente, para nós, toda pesquisa feita por nosso alunos é notável: esses estudantes são filhos e filhas da terra, da água e das florestas – as mesmas pessoas que historicamente tiveram acesso negado à educação, especialmente ao ensino superior.

Quanto à nossa abordagem de pesquisa, trabalhamos duro na ELAA para garantir que não se faça pesquisa apenas por fazer, mas sim para assegurar que seja um processo que dê retorno à comunidade, à região, à organização ou ao movimento ao qual o pesquisador pertence. Nossos alunos realizam pesquisas em diferentes áreas, incluindo agroecologia, política, gênero, sexualidade, movimentos sociais e educação. Entre alguns temas específicos estão estratégias para a proteção ambiental, desenvolvimento sustentável, inclusão digital das famílias rurais, conservação e manejo da agrobiodiversidade, conservação e compartilhamento de sementes e muitos outros.

Mongabay: Qual é um dos maiores desafios que vocês enfrentam?

Felix, Oliveira, Lenon: Precisamos melhorar nossa infraestrutura. Estamos num momento em que precisamos expandir o prédio da escola e melhorar os prédios antigos. Isso é necessário para atender à demanda crescente e oferecer melhores condições tanto para os alunos quanto para os professores.

Mongabay: Como vocês pensam o conceito de agroecologia?

Felix, Oliveira, Lenon: Quando falamos em agroecologia, não estamos nos referindo somente a uma forma de produção de alimentos sem agrotóxicos. É muito mais que isso. Entendemos a agroecologia como um projeto de vida mais amplo: vemos suas dimensões econômicas, sociais, culturais e ambientais também.

A agroecologia combina a produção sustentável com um modo de vida digno, tanto para aqueles que produzem (trabalhadores rurais, camponeses, comunidades tradicionais), quanto para quem tem acesso aos alimentos saudáveis. A agroecologia beneficia toda a sociedade por se basear em fontes renováveis de energia e respeitar a biodiversidade do solo, da fauna e da flora.

A diversificação da produção por meio da agrofloresta garante inúmeros benefícios para a sociedade e o meio ambiente: controle biológico dos insetos; biodiversidade do solo; produtividade a longo prazo a partir da produção integrada de cultivos; maior segurança financeira aos agricultores;  alimentos mais nutritivos; fortalecimento das economias locais e regionais; preservação da água/lençóis freáticos para garantir o funcionamento adequado dos ciclos hidrológicos. A agroecologia é hoje essencial para a mitigação dos impactos do aquecimento global, reduzindo a emissão de gases de efeito estufa e estimulando o sequestro de carbono pela biodiversidade.

Mongabay: Como a ELAA trabalhou para difundir a agroecologia e a ação pelo clima?

Felix, Oliveira, Lenon: Para citar um exemplo, a ELAA faz parte do Plano Nacional “Plantar árvores, produzir alimentos saudáveis”, lançado pelo MST em 2020 para plantar 100 milhões de árvores em uma década. Os parceiros do MST desenvolveram um aplicativo para celular chamado Arvoredo para monitorar o plantio de árvores em todo o país, e os alunos das escolas de agroecologia estão tendo um papel fundamental na promoção do plantio de árvores em suas comunidades.

Mongabay: Como vocês respondem à preocupação de que a agroecologia não é capaz de atingir escala suficiente para atender às necessidades de segurança alimentar do mundo?

Felix, Oliveira, Lenon: Os assentamentos do MST já demonstram que é possível produzir alimentos saudáveis em abundância usando esses métodos. Também vemos como a agroecologia é economicamente mais viável, porque prioriza a energia renovável e é apropriada para a agricultura familiar, responsável por mais de 70% dos alimentos produzidos no mundo. A agroecologia também é socialmente justa porque valoriza a vida no campo enquanto promove o direito universal à alimentação saudável. Ela é culturalmente necessária porque está alinhada à sazonalidade da natureza, à localização dos sistemas alimentares e às tradições alimentares locais. A agroecologia tem os bens comuns como valores centrais, o que requer a governança participativa e o envolvimento de diferentes agentes da sociedade civil e do Estado para ter sucesso e se expandir.

Mongabay: Quais são os maiores obstáculos para ampliar a adoção da agroecologia?

Felix, Oliveira, Lenon: Nosso maior desafio é definir a agroecologia como o modelo de produção de alimentos para alcançar a soberania alimentar e deixar claro que o seu contraponto – o modelo do agronegócio, que prioriza monoculturas com uso intensivo de agrotóxicos e sementes geneticamente modificadas, além do comércio internacional de commodities – é insustentável. Para alcançar essa mudança de paradigma, precisamos progredir em políticas públicas que apoiem a agroecologia, como o crédito para pequenos agricultores e a expansão do treinamento em agroecologia. Acreditamos que estamos atendendo a essas necessidades ao continuar investindo na educação em agroecologia em todos os níveis educacionais, inclusive lançando a iniciativa Educação e Agroecologia nas Escolas do Campo de territórios da Reforma Agrária, cujo propósito é expandir o acesso à educação e à agroecologia nos assentamentos e acampamentos da reforma agrária em todo o país.

Mongabay: O que mais os inspira nesse trabalho?

Felix, Oliveira, Lenon: O que nos inspira? Promover a prática da solidariedade e da justiça social no cotidiano, auxiliando as famílias de trabalhadores da reforma agrária a serem agentes de seu próprio destino por meio da organização popular. Esta é a forma de promover a soberania popular em favor da dignidade humana e do respeito aos direitos fundamentais.

Mongabay: Como é fazer esse trabalho neste momento específico da história do Brasil?

Felix, Oliveira, Lenon: O MST surgiu há décadas num momento histórico de luta pela democratização do Brasil. Hoje, lutar pela reforma agrária significa aprofundar o processo de democratização em andamento. A agroecologia está no centro do persistente debate pela reforma agrária, apontando um caminho para a soberania alimentar tanto para quem vive no campo quanto para os moradores das cidades. Diante dos imensos retrocessos recentes no país – o avanço do desmatamento, especialmente na Amazônia, e do genocídio praticado pelo governo federal durante a pandemia –, o MST reafirmou seu compromisso para lutar pela justiça social e a solidariedade.

Este texto foi originalmente publicado por Mongabay de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.


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