A comida exerce uma influência enorme sobre nós. Certos sabores e texturas conseguem determinar aquilo que fazemos e fazem parte de escolhas emocionais. Basta pensar naquele prato condimentado que nos faz querer voltar em um restaurante ou no doce que você compra no meio de um dia difícil. Mas não é apenas o paladar que controla nossas escolhas alimentares. O que se passa na boca é apenas uma pequena parte do processo, que acontece principalmente por meio de interações entre o sistema digestivo e o cérebro.
Então, sobre o que é que “conversam” os nossos sistemas digestivo e nervoso, e como isso pode influenciar nosso comportamento? O psiquiatra e pesquisador Albino Oliveira-Maia, diretor da Unidade de Neuropsiquiatria do Centro Champalimaud, em Portugal, está trabalhando para encontrar respostas a essas perguntas. Os resultados mais recentes da pesquisa de sua equipe descrevem um novo eixo digestivo-cerebral identificado em ratos e foram publicados este mês na revista científica Neuron.
“A boca é o primeiro local de controle – onde é feita a decisão sobre se a comida deve ou não ser ingerida”, explica Oliveira-Maia. “Uma vez dentro do organismo, a comida é dividida em nutrientes e começa a pós-ingestão.” Nesta fase, é a vez do sistema digestivo ‘provar’ a comida e conversar com o cérebro sobre a sua escolha de refeição”.
Segundo o pesquisador, os processos de pós-ingestão podem ser divididos em dois tipos. O primeiro lida com o presente – quão nutritivo é o alimento e a quantidade que deve ser consumida. O segundo é um processo de aprendizagem que determina como, no futuro, o organismo deve reagir a esse mesmo alimento.
A avaliação que o organismo faz sobre o valor nutricional de um alimento é o que leva um indivíduo a desenvolver preferência por ele e isso, segundo o estudo, é um exemplo dessa “aprendizagem pós-ingestão”. Se dois alimentos têm o mesmo sabor, mas valores nutricionais diferentes, um alto e o outro baixo, vários estudos mostram que a aprendizagem pós-ingestiva leva animais e humanos a desenvolver uma preferência pelos alimentos mais nutritivos. Isso se dá porque é do interesse do organismo identificar qual o alimento mais nutritivo, optando por ele sempre que possível.
Oliveira-Maia e sua equipe se perguntaram se esses mesmos sinais pós-ingestivos poderiam estar envolvidos em outros tipos de aprendizagem. Mais precisamente, questionaram se isso poderia levar os animais a procurar ativamente por certos alimentos.
Para estudar essa questão, a equipe desenvolveu uma tarefa na qual os animais pressionavam alavancas para receber uma injeção de comida diretamente no estômago. “Era importante fazê-lo dessa forma para eliminar aspetos orosensoriais e conseguirmos focar exclusivamente nos efeitos pós-ingestivos”, explica a neurocientista Ana Fernandes, primeira autora do estudo. “Numa das experiências disponibilizámos aos ratos duas alavancas: uma que levou à injeção, no estômago, de alimentos com alto teor calórico e outra que levou à injeção de alimentos com poucas calorias. Em seguida, disponibilizámos as duas alavancas e observámos a sua resposta”.
Os resultados da experiência foram claros: mesmo sem conseguir provar a comida, os ratos desenvolveram uma clara preferência pela alavanca associada à administração direta do alimento de alto teor calórico. Depois de terem estabelecido este novo paradigma que identificou uma nova forma de aprendizagem pós-ingestiva, a equipe avançou para a identificação do mecanismo fisiológico envolvido.
Para estudar o mecanismo de aprendizagem, os pesquisadores começaram por investigar a forma como as informações sobre o valor nutricional dos alimentos chegam ao cérebro. “Para responder a essa pergunta, focamos no nervo vago. Este é um nervo longo que estabelece ligações bidirecionais entre o cérebro e vários órgãos internos”, explica Oliveira-Maia.
Segundo o autor, a maioria das pesquisas sobre a relação do nervo vago e o comportamento alimentar são focadas nas ligações entre este nervo e o intestino. Mas a sua equipe decidiu adotar uma abordagem diferente. “Os resultados de trabalhos anteriores do grupo indicavam que um ramo específico do nervo vago poderia estar envolvido: aquele que transmite informações provenientes do fígado”.
Por que é que o fígado é particularmente importante para esse processo de aprendizagem, em vez do intestino? “As diferentes partes do intestino podem ter informações parciais sobre o valor nutricional do alimento que, naquele momento, está a ser ingerido. O fígado, por outro lado, recebe grande parte dos nutrientes e toxinas provenientes do intestino. Isso significa que reúne as condições ótimas para funcionar como um sensor metabólico”, explica Ana Fernandes.
E, de fato, quando os pesquisadores testaram a hipótese lesionando o ramo hepático do nervo vago, as cobaias foram incapazes de adquirir este novo tipo de aprendizagem, dando força à hipótese de que este ramo específico (hepático) deteta e transmite sinais pós-ingestivos ao cérebro durante o processo de aprendizagem.
Esta empolgante descoberta levantou outra questão relevante: para onde, no cérebro, eram enviados os sinais pós-ingestão?
A equipe começou a análise pela dopamina, uma molécula envolvida em diversos processos cognitivos. Vários estudos mostram uma associação entre a alimentação e a liberação de dopamina no cérebro. No entanto, nunca anteriormente tinham sido demonstradas as ligações diretas entre os sinais pós-ingestivos e a atividade desses neurônios.
Em seguida, os pesquisadores implementaram várias abordagens experimentais para estudar se os neurônios da dopamina estavam envolvidos na aprendizagem pós-ingestiva que haviam descoberto. As conclusões alcançadas deram provas concretas desse envolvimento.
“Um componente importante deste estudo foi a descoberta de que os neurônios da dopamina estavam envolvidos nesse novo processo de aprendizagem”, diz o neurocientista Rui Costa, também autor do estudo.
A equipe conseguiu não só demonstrar que esses neurônios eram sensíveis aos sinais pós-ingestivos, mas também que a sua atividade era necessária para que a aprendizagem acontecesse. E, para completar, a experiência final testou ainda se os neurônios eram influenciados pelo ramo hepático do nervo vago. Mais uma vez, a resposta foi afirmativa: quando o ramo foi cortado, a resposta dos neurônios aos sinais pós-ingestivos foi significativamente menor.
A pergunta que se seguiu foi ‘por que é os neurônios da dopamina fazem parte desse processo de aprendizagem?’. “Ficou demonstrado que os neurônios da dopamina respondem a recompensas, por exemplo, quando um doce chega à nossa língua”, explica Costa. “Este estudo mostrou que esses neurônios também são ativados quando os alimentos chegam ao estômago e ao intestino. Além disso, demonstramos ainda que quando os nutrientes chegam ao intestino, a ativação dos neurônios da dopamina é fundamental para desencadear o comportamento de procura de alimentos”.
Em conjunto, os resultados do estudo revelam um novo processo de aprendizagem – orquestrado entre o sistema digestivo e o cérebro – que faz com que os animais procurem determinado tipo de alimento sem nunca terem sentido o seu sabor, o que comprova a influência de processos subconscientes no controle do comportamento alimentar.
Oliveira-Maia acredita que este trabalho fornece uma visão fundamental de como padrões únicos de comportamento alimentar emergem. E, embora possa não ter aplicações clínicas imediatas, o médico acredita que este trabalho poderá ser, em última análise, relevante para a compreensão e tratamento de distúrbios relacionados com a alimentação, como a obesidade. “Ainda é muito cedo para saber onde este estudo nos levará. Contudo, foi a relação entre alterações de recetores da dopamina e obesidade que inspirou o desenvolvimento deste trabalho”, diz o pesquisador.
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