Por Aline Vessoni em Jornal da Unesp | O uso de animais como cobaias em experimentos é historicamente um elemento importantíssimo para o avanço da ciência moderna em inúmeras áreas, da pesquisa biomédica aos voos espaciais. Em paralelo, desde o século 19, governos nacionais e instituições científicas têm formulado regulações para orientar e disciplinar o uso dos animais nos experimentos, de forma a torná-lo mais ético e menos cruel. Aqui no Brasil, mais um passo nessa direção foi dado em março, quando uma resolução publicada no Diário Oficial da União proibiu o uso de animais vertebrados na pesquisa para o desenvolvimento de produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes. Para docentes da Unesp estudiosos do tema, assim como para outros especialistas entrevistados pelo Jornal da Unesp, os efeitos práticos desta medida são bem menores do que parecem à primeira vista.
A resolução de nº 58 do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), órgão ligado ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações, proíbe o “uso de animais vertebrados, exceto seres humanos, em pesquisa científica e no desenvolvimento e controle da qualidade de produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes que utilizem em suas formulações ingredientes ou compostos com segurança e eficácia já comprovadas cientificamente”. Nos casos que envolvam ingredientes ou compostos cuja segurança ou eficácia ainda não foram comprovadas cientificamente, estabelece-se a obrigatoriedade dos métodos alternativos que são reconhecidos pelo Concea como seguros.
A adoção da nova normativa foi noticiada na mídia e celebrada nas redes sociais, em especial em alguns perfis de simpatizantes da causa dos direitos animais. Mas, entre os estudiosos do tema, a reação foi bem mais sóbria, e mais crítica.
Para a bióloga Bianca Marigliani, estrategista sênior da Human Society International, ONG que atua na defesa dos direitos dos animais, na prática pouca coisa muda com a nova resolução. “É preciso ressaltar que não se trata de uma lei, mas sim de uma resolução normativa que preconiza o uso de métodos alternativos. No Brasil, essas orientações já eram obrigatórias desde 1998, de acordo com o artigo 32 da Lei 9.605 contra crimes ambientais”, explica.
O texto do artigo 32 da Lei 9.605 afirma que é proibido abusar, maltratar, ferir e mutilar animais de todo tipo, com pena de detenção de três meses a um ano. De acordo com o primeiro parágrafo: “Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos”.
Ela avalia que o texto da nova resolução apresenta várias brechas que, na prática, impossibilitam a descontinuidade do uso de animais em testes para o setor de cosméticos. Para começar, a proibição, propriamente dita, só é válida para produtos cuja eficácia e segurança já tenham sido comprovadas.
Nos casos em que a eficácia e a segurança de uma substância sejam desconhecidas, a resolução orienta as empresas a empregarem os chamados métodos alternativos, segundo listagem formulada pelo próprio Concea. Uma das falhas estaria aí, segundo Marigliani, uma vez que caberiam nesta categoria “métodos substitutivos, como as culturas de células, mas outros nos quais acontece sim o uso de animais. Esses outros métodos podem ser considerados alternativos porque usam um número menor de animais ou técnicas menos cruéis do que os tradicionais. Mas, ainda são métodos que usam animais vivos, como ratos e camundongos”, diz.
Para a bióloga, o principal mérito da nova resolução está em pelo menos colocar essas pautas em discussão, porém, na prática, as condições que ela estabelece mantêm os animais desprotegidos. Muito mais interessante, diz, é um projeto de lei que está tramitando no Congresso. O PL 3.062/2022 (que tramitava anteriormente como PLC 70/2014) é claro em estabelecer a proibição de testes para cosméticos em todo o Brasil, sem abrir exceções para o caso de novas substâncias. E ainda propõe multas mais substanciais no caso de violações. Já aprovado com emendas no Senado, o projeto voltou para a Câmara dos Deputados, onde está aguardando encaminhamentos.
De acordo com Jadir Nunes, conselheiro da Associação Brasileira de Cosmetologia (ABC), a orientação da resolução 58 de preservar a possibilidade do uso de métodos alternativos de testagem que podem envolver uso de animais – para o caso de substâncias sem segurança e eficácia comprovadas – vai contra o movimento que os próprios pesquisadores e empresas do setor vêm fazendo nas últimas décadas.
Nunes relata que há anos os Estados Unidos, Japão e vários países da Europa vêm implementando iniciativas para reduzir testes com animais nas indústrias de cosméticos e perfumaria. “A China também vem seguindo esta tendência, embora mais lentamente”, afirma. Por aqui, ele aponta como marco importante
o lançamento do Guia de Avaliação de Segurança de Cosméticos, da Anvisa, em 2003, de cuja elaboração ele participou. Nesse documento já aparece o conceito dos 3Rs: Redução, Refinamento e Substituição – que em inglês é Replacement – dos testes em animais.
“Hoje já temos vários métodos in vitro validados e recomendados pela Anvisa e laboratórios credenciados para realizá-los em nosso país”, diz. “Por isso não acredito que a nova resolução vá causar impacto na pesquisa, no desenvolvimento e na produção interna de cosméticos” analisa.
Mesmo na própria indústria de cosméticos, há quem já tenha uma visão crítica sobre os testes de animais. Vera Isaac, docente e pesquisadora do Laboratório de Cosmetologia da Faculdade de Ciências Farmacêuticas do câmpus de Araraquara, que trabalha com pesquisas de permeação – a potencialidade de um produto para penetrar na pele –, diz que nunca ficou totalmente convencida quanto à validade dos resultados de pesquisas feitas em animais, por questões de incompatibilidade entre espécies. Ela relata que, com o desenvolvimento das novas tecnologias, testes de permeação, que antes eram conduzidos em orelhas de porco, deram lugar a metodologias que adotam culturas de células ou mesmo pele humana excedentes de cirurgias plásticas.
“Sempre me opus ao uso dos animais, não só pela causa dos direitos animais”, diz Isaac. “A pele da orelha de porco é apenas similar à humana. Fica difícil ter resultados aproximados em uma camada de pele que não tem irrigação sanguínea, não tem sistema imunológico”, explica a professora. Ela se diz favorável a aplicações diretas no usuário final, o ser humano. “Os testes podem ser feitos com metodologias substitutivas e, depois, conduzidos diretamente em humanos. Isso é muito importante porque, diferentemente dos animais, temos a capacidade de fala e podemos imediatamente dizer se estamos sentindo ardência, coceira, dor. Quando se usam animais, vai levar dias até que os pesquisadores consigam perceber se ocorreu uma queimadura”, compara.
No que diz respeito aos riscos oferecidos aos consumidores, para Marigliani, as abordagens metodológicas substitutivas têm se mostrado mais seguras, uma vez que, por mais que as análises com animais envolvam organismos completos (ao contrário das culturas de células, por exemplo), muitas vezes, o animal apresenta respostas orgânicas que são completamente diferentes daquelas observadas nos seres humanos. Um exemplo catastrófico para a ciência foi a talidomida, que, apesar de ter sido aplicada com sucesso em camundongos e ratos, a droga usada contra o enjoo na gravidez ocasionou o nascimento de bebês com malformações, perda de audição ou da visão, surdez, paralisia facial, entre outras.
Stelio Pacca Loureiro Luna, professor do Departamento de Cirurgia Veterinária e Reprodução Animal da Unesp, é uma referência no campo do debate sobre bem-estar animal no Brasil, tendo inclusive criado o VetPain, um aplicativoum aplicativo os donos e cuidadores a identificar os níveis de dor em diversos animais.Pacca aponta outro exemplo problemático dos testes com cosméticos envolvendo animais. Para analisar a capacidade de uma substância de provocar irritação no olho humano, por exemplo, é comum o uso de coelhos como cobaias. Porém, de acordo com o laboratório, a variabilidade dos resultados pode chegar a 50%.
“A possibilidade de que a substância seja considerada tóxica e de que o resultado do teste se mostre verossímil é de 50%. Ou seja, equivale à probabilidade de se jogar uma moeda para cima e obter cara ou coroa”, compara. Para Luna, que é nacionalmente reconhecido por sua atuação no debate sobre uso de animais em pesquisas no Brasil, é incompreensível que tais testes possam ser considerados como padrão para a indústria, enquanto estabelece normativas muito mais complexas para o uso de métodos substitutivos, como no caso dos olhos de bovinos in vitro, que podem substituir os testes com olhos de coelhos in vivo.
Outras tecnologias consolidadas que prescindem do uso de animais aprovados nacionalmente e que são validadas como métodos alternativos pelo Concea, e internacionalmente pela Organização dos Estados Americanos (OEA), incluem as culturas de células. “Inclusive as culturas de células em 3D, epiderme e córnea humana reconstituída, que são melhores do que os métodos com animais quanto à capacidade de prever se uma substância será segura e eficaz em seres humanos”, diz Marigliani.
De acordo com dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, são abatidos cerca de 93 bilhões de animais por ano para consumo humano. Um número bem menor que os 115 milhões utilizados para pesquisa, ou o equivalente a 0,01% do total que vai para o abate. Por essa perspectiva, o bem-estar animal está mais comprometido pelo consumo do que para fins científicos.
Luna explica que a Unesp tem se movimentado para diminuir o total de animais sacrificados para fins de pesquisa. Entre 2001 e 2012, o número de camundongos empregados em estudos passou dos 50 mil para 22 mil. No caso dos ratos, a variação foi de 22 mil para 19 mil. Combinados, ratos e camundongos representam 80% dos animais utilizados para pesquisas dentro da universidade. “O mais interessante foi que isso não impactou o número de publicações, que, inclusive, chegou a crescer nesse mesmo período”, explica Luna. Os dados coletados dos últimos três anos confirmam essa tendência, em que o número de roedores chegou perto dos 32 mil.
“Do ponto de vista quantitativo, nós usamos mais do que o necessário”, esclarece o pesquisador, ressaltando que o esforço para diminuir o uso de animais em pesquisas ainda não é capaz de excluí-los do jogo. Um exemplo crucial citado por ele são as pesquisas de vacinas, cujos testes iniciais são todos realizados em animais.
Enquanto os itens “reduzir” e “substituir”dos três Rs têm definições mais óbvias, o refinamento se encontra justamente em submetê-los a métodos que causem menos sofrimento ou que os exponha a uma vida melhor enquanto servem à ciência. Luna comenta que, em muitos biotérios com camundongos, é comum a temperatura do ar condicionado estar em torno dos 19º C – o que agrada aos cientistas, mas não os roedores, que ficam confortáveis com 25º C. “Para a criação de ratos e camundongos, também é importante optar por gaiolas de grades pretas e não brancas. Outra coisa é enriquecer o ambiente para que eles possam se manter ativos”, enumera o professor. As mudanças são simples, mas fundamentais para resultados mais assertivos. “Já vi muito animal triste participar de experimentos ruins”, diz Luna.
O veterinário diz seguir os preceitos propostos pelo pesquisador Trevor Poole, integrante da Universities Federation for Animal Welfare, no Reino Unido. Segundo esta perspectiva, o bem-estar animal não é associado a correntes como o vegetarianismo ou ao abolicionismo – o primeiro relacionado com a exclusão da carne e derivados do cardápio e outros produtos do dia a dia e, o segundo, com a exclusão dos animais da ciência. A ideia é que ao utilizá-los com bom-senso, proporcionando qualidade de vida, obtêm-se benefícios científicos.
Em seu artigo “Happy animals make good science”, Poole argumenta que a criação de animais interfere nos resultados da pesquisa. Segundo ele, há uma larga base de dados para sustentar que que, quando colocados sob condições estressantes, os sistemas fisiológico e imunológico dos bichos ficam comprometidos – algo muito parecido com o que acontece com os humanos, aliás. Logo, “mantê-los ‘felizes’, em condições adequadas, faz parte da política de refinamento e traz assertividade para a ciência”, pondera Luna.
À frente do laboratório de Raiva da Faculdade de Medicina Veterinária de Araçatuba, a veterinária Márcia Marinho explica que para testar um animal para a contaminação por raiva é preciso conduzir uma análise do tecido cerebral possivelmente infectado por meio de imunofluorescência em microscópio. Em uma segunda etapa, o material observado no microscópio é então inoculado em cérebros de camundongos, que são monitorados por 21 dias. Essa segunda etapa do teste para raiva é denominada prova biológica. Marinho – que também ministra a disciplina de bem-estar animal – conta que anteriormente a metodologia padrão-ouro para investigar a ocorrência dessa zoonose demandava o emprego de um número muito maior de roedores. Atualmente, o Instituto Pasteur aceita um protocolo executado com cinco camundongos.
Uma nova iniciativa, conduzida pela docente da Unesp, pretende substituir a etapa da prova biológica pela realização de testes do tipo PCR, ou biologia molecular. Esta metodologia também adota um protocolo autorizado pelo Instituto Pasteur e dispensará por completo a inoculação do tecido cerebral em camundongos. Ela explica que nos casos que envolvam amostras cerebrais de carnívoros, bovinos e equinos, o protocolo com roedores continuará sendo adotado. Mesmo assim, o número de animais utilizados deve cair bastante, pois boa parte da demanda da região envolve testes em morcegos.
“A partir do momento em que se provou que se trata de seres sencientes, que sentem dor, medo e sofrimento com as agressões humanas, se desenvolveu essa tendência de busca pelo bem-estar animal, que hoje alcança todos os setores da sociedade, inclusive nas universidades”, diz. Na Medicina Veterinária, por exemplo, atualmente, os professores se utilizam de softwares – onde antes era cadáver – para ministrar disciplinas de anatomia e fisiologia.
Para Luna, entre os extremos formados pelo polo dos abolicionistas, que são radicalmente contra o uso de animais para fazer ciência, e o polo dos que enxergam as cobaias quase como se fossem instrumentos, existe um caminho do meio. “Ele envolve tratar da ciência com ética, com a premissa de que animais felizes fazem boa ciência. É nesse caminho que temos que trabalhar, para que a ciência do bem-estar animal se aprimore ao máximo”, diz.
Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da Unesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos.
Saiba mais