Por UERJ | A instalação das quatro primeiras termelétricas flutuantes do país, que começariam a operar em agosto mesmo sem realização de estudo de impacto ambiental, por ora está suspensa pela Justiça do Rio. No entanto, o projeto tem despertado polêmica e preocupa pesquisadores, ativistas e a população local. Promessa de segurança energética para o estado, elas chegaram a receber autorização para funcionar nas águas da Baía de Sepetiba, no litoral sul fluminense, com dispensa do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e do Relatório de Impacto Ambiental (Rima) exigidos na legislação. Especialistas em meio ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) alertam que as estruturas podem colocar em risco a fauna, a flora e a comunidade locais. O projeto da empresa turca Karpowership foi classificado pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea) como de alto potencial poluidor.
De acordo com a professora Helena de Godoy Bergallo, do Instituto de Biologia Roberto Alcantara Gomes (Ibrag), que representa a Uerj na Comissão Estadual de Controle Ambiental (Ceca) do Inea, a Baía de Sepetiba é considerada, pelo Ministério do Meio Ambiente, uma área de importância biológica e ecológica extremamente ampla. “Ali existem manguezais que estão em muito bom estado de conservação, além de restingas de áreas de Mata Atlântica. Há uma biodiversidade grande, incluindo a maior população de botos-cinza do estado, grande variedade de peixes e espécies de aves migratórias”, afirma.
As termelétricas surgiram com o objetivo de superar a crise hídrica que o estado enfrentou em 2020. Para isso, foi realizado um leilão emergencial em 2021, no qual a Karpowership foi a vencedora. Mas, segundo os especialistas, faltou transparência no projeto, que hoje já nem seria mais tão necessário.
“Esse leilão emergencial ocorreu devido à crise hídrica que não existe mais. Pelo contrário, a gente já está vendo aqui que aumentaram os níveis dos reservatórios”, ressalta Bergallo. “Além disso, o projeto em si, como foi emergencial, teve um valor muito alto. Essas termelétricas foram contratadas a um preço de sete vezes a média do mercado, o que vai doer no bolso de todos nós”, acrescenta.
Diferentemente das termelétricas tradicionais já existentes no país, a Karpowership oferece um novo negócio. São quatro termelétricas flutuantes localizadas em meio a Baía de Sepetiba, a três quilômetros da costa, e mais a unidade responsável por abastecê-las com gás. Elas são conectadas por uma linha de transmissão que vai até Furnas, com cerca de 15 quilômetros de extensão. O empreendimento foi orçado em R$ 3,1 bilhões.
O professor Mario Soares, da Faculdade de Oceanografia da Uerj, posiciona-se contrariamente à aprovação. Por se tratar de uma tecnologia nova, ele considera o EIA/Rima ainda mais importante. “É a primeira vez que um empreendimento desses chega ao Brasil. Isso, por si só, já exigiria a realização de estudos minuciosos, extremamente cuidadosos e rigorosos previamente à instalação. Isso não aconteceu”, expõe.
Helena Bergallo corrobora que a inexigibilidade não seria aplicável à situação. “O próprio Inea classificou o empreendimento como de alto potencial poluidor, na última classe, em uma lista de 20 classes. Empreendimentos com esse impacto devem passar pelo estudo”, destaca.
De acordo com o Inea, o EIA/Rima é essencial nesses casos, pois ajuda a entender o real impacto e a pensar em medidas compensatórias. “O EIA é um dos principais instrumentos utilizados para o planejamento ambiental, avaliação de impactos, delimitação de área de influência. Ele define também os mecanismos de compensação e mitigação dos danos previstos em decorrência da implantação de atividades/empreendimentos de grande potencial poluidor e degradação do meio ambiente. As principais informações contidas no EIA, bem como sua conclusão, devem ser apresentadas no Rima, em linguagem clara e objetiva, de modo que se possa entender as vantagens e desvantagens do projeto, bem como todas as consequências ambientais de sua implementação”, define o órgão em seu portal institucional.
A apresentação do EIA/Rima é exigida pela Lei Estadual nº 1.356/88, que lista as atividades modificadoras do meio ambiente e que necessitam de licenciamento ambiental por meio de tal estudo. No dia 10 de dezembro de 2021, a Karpowership informou ao Inea, em carta protocolada, a necessidade de simplificação e de urgência do procedimento, com o reconhecimento da inexigibilidade do EIA/Rima. A alegação foi que as usinas flutuantes não teriam caráter permanente.
“O projeto apresentado se caracteriza como estrutura emergencial, temporária, de rápida mobilização e início de operação, o que justificaria a dispensa de realização das etapas dos licenciamentos prévio e de instalação. É imperativo informar que o projeto tem previsão de operação por apenas 44 meses e após esse período ocorrerá o descomissionamento das usinas termelétricas e suas respectivas instalações. Desta forma, em virtude do caráter singular do projeto delineado, em muito distinto da implantação e operação de uma usina termelétrica convencional, a KPS requereu que o seu licenciamento tramite através de modalidade simplificada”, informa a empresa na carta.
Em 12 de maio de 2022, o Inea enviou à Ceca parecer técnico sobre o tema. “Dada a importância deste projeto para o Estado do Rio de Janeiro, o Governo do Estado classificou esse conjunto de estruturas como estratégico, à luz do Decreto Estadual n° 46.890/2019, e editou ato formal nesse sentido. Cabe destacar que essa classificação não dispensa qualquer rigor do licenciamento, mas confere prioridade à análise técnica desses requerimentos de licença ambiental sobre os demais,” destaca o documento.
No dia 17 de maio de 2022, foi realizada uma votação com os membros da Comissão, que resultou na inexigibilidade do EIA/Rima. Dos 14 participantes votantes, apenas a professora Helena Bergallo e o procurador do Estado do Rio de Janeiro se posicionaram contra a dispensa.
Para os especialistas da Uerj, são muitos os riscos envolvidos no projeto. “Há a poluição térmica, pois a estrutura da usina precisa ser resfriada e, para isso, utiliza a água do mar. Depois, lança essa água quente no ambiente, o que vai impactar toda a vida marinha”, explica Soares. Bergallo complementa dizendo que, além do aquecimento em até 15ºC da água do mar, há ainda a possível liberação de metais pesados, que podem ser tóxicos.
Segundo Soares, outros tipos de poluição provenientes do empreendimento, que funciona de maneira ininterrupta, são a sonora e a visual. “A instalação funciona 24 horas por dia. Por isso, há a propagação do som dentro da água, o que é extremamente preocupante, pois afeta a atividade de peixes e botos-cinza. Além disso, durante a noite, essas estruturas estão iluminadas. O impacto da luz também afeta a vida marinha e as aves que vivem naquela região”, destaca o professor de Oceanografia.
Além disso, segundo Bergallo, a comunidade pesqueira e a população local já vêm sofrendo com a poluição atmosférica na região. “As termelétricas não são a primeira indústria poluente instalada ali. O ar da região já está contaminado. E sem o estudo de impacto ambiental, não dá para saber como isso pode piorar”, pontua.
Outro problema envolvido na operação, de acordo com a professora do Ibrag, está relacionado aos anti-incrustantes utilizados nos cascos das termelétricas. “Esse material, que tem o objetivo de impedir o crescimento de organismos danosos ao desempenho da embarcação, pode ser tóxico, com metais pesados ou biocidas – um tipo de agrotóxico. Mas não informaram qual tipo foi utilizado”, relata.
Ela alerta que o processo também excluiu a comunidade local da decisão. “Quando você tem algo muito impactante, é preciso fazer audiência pública com a população, mas não houve isso. A empresa fez uma ou outra reunião com alguns pescadores, mas não uma audiência pública”.
A pró-reitora de Políticas e Assistência Estudantis da Uerj, Catia Antonia da Silva, realiza desde 2011 um trabalho de pesquisa com os pescadores da região e explica que também pode haver um alto impacto social na Baía. “A pesca realizada no local é artesanal, que é de pequena escala e fica dentro das baías. Os pescadores não conseguem ir mar afora com canoa, só a pesca industrial tem estrutura para isso. Com a expansão dos grandes empreendimentos na região, que já vem acontecendo desde os anos 1970, mais áreas se tornam proibidas à pesca e à navegação”, detalha.
Para a pesquisadora, vinculada ao Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores (FFP), é necessário pensar formas de proteger a principal atividade econômica da região. “A pesca é um posto de trabalho importante, ainda mais em um momento de crise como o atual. As comunidades pesqueiras de Sepetiba são de famílias tradicionais que já estão ali há mais de 300 anos e vivem disso. E mais: a pesca artesanal respeita o meio ambiente local, preservando os manguezais”, ressalta.
Mário Soares reforça que o impacto social na região abarca também o setor de turismo. “Milhares de pessoas dependem da baía tanto em relação à pesca quanto ao turismo. Reduzir o uso de uma região dessas, introduzindo empreendimentos altamente impactantes que prejudicam as atividades realizadas lá, diminui a possibilidade da distribuição de riqueza gerada por um ambiente saudável”, esclarece.
“Aquela área precisa de uma análise socioambiental global, pois passou por sucessivos processos de poluição e tem um índice de desenvolvimento econômico muito baixo. Já sofreu com a remoção de favelas, a periferização e a chegada de indústrias sem um acompanhamento de saneamento básico. É preciso garantir que o desenvolvimento econômico esteja aliado ao desenvolvimento social. Não pode ser um modelo que exclui e que polui”, conclui a pró-reitora.
O morador Edson Correia da Silva, conhecido como Dinho da Pesca, tem na baía seu principal sustento e, assim como mais de 15 mil integrantes de famílias que vivem na região há gerações, já está sendo afetado. “Os nossos pescadores vêm enfrentando problemas. O primeiro deles é que os fios da termelétrica ainda não estão esticados a 50 ou 100 metros de altura. Eles estão na altura da cintura dos pescadores, sem qualquer tipo de sinalização, impossibilitando a navegação dos barcos”, afirma.
Além disso, Dinho explica que a intensa movimentação no local tem ocasionado acidentes. “Com essa instalação, está ocorrendo um fluxo de navegabilidade muito alto de barcos e lanchas, carregando funcionários e materiais para construção das torres. E isso não só atrapalha a pesca como também estraga o material. Muitas vezes, quando o pescador vê a lancha se aproximando, não tem tempo para recolher a rede, que acaba sendo danificada”.
Segundo Dinho, a região era a única disponível para a pesca. “A área onde a usina está sendo instalada era a última que tínhamos na Baía de Sepetiba. Todas as outras já foram tomadas por polos de empresas. Elas desmatam, poluem e isso nos impossibilita de pescar. O espaço para a gente trabalhar foi diminuindo muito e não se pode chegar próximo dessas instalações, porque já acionam a polícia para nos retirar de lá”, acrescenta.
Famílias como a de Dinho, que veem na pesca artesanal sua principal forma de sustento, correm o risco de não ter outro lugar para exercer seu ofício. O impacto pode ir muito além do que é possível ver hoje.
Este texto foi originalmente publicado pela UERJ de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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