Por Marcos do Amaral Jorge em Jornal da UNESP | Em alguns animais do grupo dos artrópodes, como aranhas, escorpiões e caranguejos, a estrutura responsável por prover sustentação e proteção aos órgãos vitais se localiza não no interior do corpo – como é o caso do nosso esqueleto – mas sim fora dele. São os exoesqueletos. O conceito de exoesqueleto é hoje uma ideia investigada pelos pesquisadores que trabalham no campo da tecnologia de reabilitação de pacientes com dificuldades motoras. No câmpus da Unesp em São João da Boa Vista, um projeto de pesquisa está desenvolvendo um exoesqueleto robótico voltado para a recuperação dos movimentos de membros inferiores, com foco principal em pacientes que apresentem incapacidade motora em virtude de terem experimentado um acidente vascular cerebral (AVC).
O projeto do ExoTAO, como é chamado, vem sendo desenvolvido pelo professor Wilian Miranda dos Santos desde 2011, quando ele ainda era aluno de mestrado financiado pela Fapesp no Laboratório de Reabilitação Robótica da Escola de Engenharia de São Carlos, da USP, do qual ele hoje é professor colaborador. O foco principal do projeto, que além da USP tem também como colaboradora a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), está em pacientes que apresentam sequelas de AVC e que tenham sofrido lesão medular incompleta, cujo quadro demande um processo de reabilitação dos membros inferiores. Um protótipo do exoesqueleto já está em funcionamento e vem sendo testado, por ora, em indivíduos sem incapacidades motoras. Mas a meta é começar seu uso em pacientes ainda este ano, de forma experimental.
O AVC é a principal causa de morte no Brasil, e estimativas do Ministério da Saúde apontam que mais de dois milhões de pessoas vivem hoje com sequelas. Destas, mais de 500 mil apresentam incapacidade grave. Muitas vezes, estes pacientes têm sua mobilidade e autonomia comprometidas, sendo necessário passar por um longo, disciplinado e complexo processo de reabilitação que envolve, por exemplo, dezenas de sessões de fisioterapia e de terapia ocupacional, além de deslocamentos frequentes até os centros de reabilitação.
Santos explica que os primeiros dispositivos robóticos desenvolvidos com fins de reabilitação trabalhavam na imposição de uma marcha ideal. Isto é, o aparelho orientava a execução do movimento correto, mas não exigia que o paciente desempenhasse esforços: ele cumpria os exercícios de forma absolutamente passiva. Com o tempo, descobriu-se que essa abordagem era pouco eficaz. “Para que o paciente consiga reaprender a realizar o movimento após um AVC, é necessária uma reorganização cortical. Essa reorganização só é possível se houver esforço por parte dele”, explica o engenheiro.
Desde os primeiros passos do projeto do ExoTAO os pesquisadores estabeleceram como um dos seus desafios desenvolver um mecanismo que seja capaz de fazer uma leitura da intensidade necessária para que o paciente execute o movimento, mas não ao ponto de substituir seu esforço. “É como a relação entre o professor e o aluno. O robô deve auxiliar o paciente, mas não pode fazer o movimento pelo paciente. Ele deve auxiliar até um certo ponto. O aluno precisa ser capaz de realizar a tarefa por sua própria conta”, compara Santos.
Para conseguir do aparelho uma resposta compatível ao esforço empreendido pelo paciente e ao mesmo tempo oferecer segurança, os pesquisadores equiparam o aparelho com uma série de atuadores elásticos, que são motores dotados de molas situados em cada uma das articulações do exoesqueleto. Por meio da leitura da força do paciente realizada por algoritmos, os atuadores são capazes de calcular a intensidade de força que o exoesqueleto deve imprimir no movimento que está sendo realizado pelo paciente. O funcionamento das estruturas foi detalhado em artigos publicados na revista científica Control Engineering Practice em 2019 e em 2017. “O exoTAO permite executar diversas assistências ao longo dos diferentes momentos que constituem uma marcha. O que o caracteriza como dispositivo robótico é justamente o fato de que pode obter informações e se adaptar a elas, exibindo algum grau de autonomia para a tomada de decisões”, explica Santos.
Outro objetivo foi conferir ao projeto uma estrutura modular. Isso facilita que os atuadores localizados nas articulações possam ser retirados para atender às demandas de tratamento de cada pessoa, permitindo assim individualizar o uso do aparelho e do tratamento.
Outra característica é a possibilidade de captar uma série de dados sobre o paciente por meio do aparelho. O exoesqueleto consegue fornecer, por exemplo, informações sobre a medida de força aplicada tanto pelo indivíduo quanto pelo robô ao longo de uma marcha, e também o comprimento da passada e a velocidade de deslocamento do paciente, entre outros indicadores.
Incorporar esses dados na avaliação do paciente ou na elaboração de protocolos de reabilitação, entretanto, não é a especialidade dos engenheiros que desenvolvem o exoesqueleto. Para cuidar desta esfera clínica, o grupo conta com a colaboração de pesquisadores da área de Fisioterapia da UFSCar. Marcela de Abreu Silva Couto atualmente realiza estágio de pós-doutorado no Laboratório de Reabilitação Robótica, mas desde 2013 integra o grupo, contribuindo com a perspectiva clínica dos projetos. Em seu doutorado, avaliou os efeitos de uma única sessão de terapia robótica associada a uma atividade com videogame em pacientes crônicos de AVC. O estudo detectou resultados positivos.
Uma questão relevante levantada no trabalho é a sua colaboração para o desenho de futuros protocolos e reflexões sobre o uso desse tipo de recurso tecnológico. Couto explica que um dos diferenciais da reabilitação robótica é sua capacidade de gerar e disponibilizar conjuntos de dados, que permite seu emprego como ferramenta de avaliação. Entretanto, explica a pesquisadora, ainda existe um caminho a ser percorrido no sentido de sincronizar esses dados com aquilo que já é passível de interpretação.
Parte das pesquisas realizadas pela fisioterapeuta tem foco em associar esses resultados fornecidos pelo equipamento às técnicas de padrão ouro usadas atualmente — por exemplo, a análise da marcha feita com o emprego de câmeras. “A ideia é desenvolver não apenas o equipamento em si, mas todo esse aporte riquíssimo de informações que o equipamento traz consigo, e dessa forma estabelecer uma conversa entre os testes funcionais típicos que já aplicamos na fisioterapia e essa tecnologia em desenvolvimento”, explica.
A pesquisadora lembra que o processo de reabilitação de alguém que sofre com restrições motoras por conta de um AVC costuma ser longo, cansativo e desmotivante, tanto para o paciente quanto para os profissionais da saúde. O que os pesquisadores têm notado, contudo, é que a aplicação da robótica tem mostrado potencial para acelerar o processo de recuperação.
“A reabilitação robótica tem a característica de oferecer uma terapia intensiva. Dependendo do equipamento e do modo como é usado, proporciona-se ao paciente um número maior de horas, em comparação ao que é feito por meio da terapia convencional. Às vezes, em meia hora de utilização de um equipamento robótico pode-se obter o resultado equivalente a mais de três horas de reabilitação convencional”, afirma a pesquisadora, que recentemente tem estudado a aplicação da robótica também em pacientes com mal de Parkinson.
Couto faz a ressalva de que a aplicação da robótica deve ser vista como mais um recurso a ser associado à reabilitação e não como uma solução mágica. “Não adianta romantizar um futuro em que as pessoas vão estar sentadas em máquinas se recuperando. Sempre precisaremos de uma visão individualizada e da associação de várias abordagens na terapia”, diz. Ela usa o conceito de ambiente de terapia, no qual são empregados recursos tecnológicos como robôs, videogames e realidade virtual, mas que não dispensa as técnicas convencionais.
O desenvolvimento de um dispositivo para reabilitação robótica com tecnologia nacional traz ainda a perspectiva de baratear essa modalidade de tratamento. O valor dos equipamentos importados é, na opinião de Santos, um dos maiores impeditivos para que a reabilitação robótica se torne mais acessível à população em geral. Dispositivos comerciais semelhantes ao aparelho desenvolvido pela equipe da Unesp, USP e UFSCar custam hoje no mínimo 300 mil euros, o que praticamente inviabiliza a sua aquisição, exceto para alguns grandes centros de reabilitação.
Em 2018, foi depositada uma patente destacando a estrutura e o conceito modular do exoesqueleto, e mais recentemente o grupo vem trabalhando para transformar o protótipo em um produto. Para esta nova etapa, Santos aponta como principais desafios a otimização de algumas peças, de forma a reduzir seu peso, e a elaboração de um desenho otimizado que ajude a torná-lo viável comercialmente.
Mas, apesar dos preços ainda impeditivos, ele diz que a aplicação de dispositivos robóticos na reabilitação tem bons motivos para se tornar mais comum no futuro, amparada por aspectos vantajosos como a eficácia comprovada na melhora da reabilitação dos pacientes, o desenvolvimento de novos protocolos e estratégias de tratamento com este recurso e a tendência de incorporação da Inteligência Artificial na tomada de decisão dos aparelhos.
Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da Unesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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