Estrada ilegal ameaça povo isolado na Terra Indígena Yanomami

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Por Jorge Eduardo Dantas, do Greenpeace | “Nós, Yanomami do Alto Catrimani I, informamos que chegaram três escavadeiras elétricas aqui. Por isso, eu estou comunicando no rádio. Quero divulgação imediatamente. Nós lideranças estamos avisando vocês. Nós precisamos avisar a Polícia Federal urgentemente e com a FUNAI para retirar os garimpeiros de lá. Se demorar, nossas casas vão ser destruídas. As crianças estão com medo e fugindo. Por isso nós, os pais deles, estamos preocupados. Porque eles não conhecem as escavadeiras que chegaram aqui no Alto Catrimani. A gente não sabia que elas chegavam até aqui na região. Estão precisando de vocês para vocês verem. Eu não estou enganando. Chegou até nós do Alto Catrimani uma estrada de onde veio a retroescavadeira. Todos nós estamos preocupados porque nós não sabíamos que chegaria aqui três escavadeiras. Os garimpeiros não foram convidados para vir, mas eles estão aqui”.

Transcrição de uma mensagem de rádio enviada do interior da Terra Yanomami em 14 de novembro de 2022

Boa Vista (RR) – Uma estrada clandestina foi descoberta dentro da Terra Indígena Yanomami, uma das áreas indígenas mais agredidas do Brasil. 

A estrada, que tem mais de 150 quilômetros de extensão, está abrindo espaço para a entrada de maquinário pesado dentro do território, como escavadeiras hidráulicas – algo inédito até agora, e que tem potencial de aumentar, entre dez e quinze vezes, o potencial destrutivo do garimpo ilegal realizado na região. Além disso, a estrada ameaça um povo indígena isolado, já que a rodovia passa a menos de 15 quilômetros de uma aldeia do povo Moxihatëtëa, que vive em isolamento voluntário no território Yanomami. 

A estrada foi descoberta recentemente pelos próprios Yanomami, que fizeram os primeiros relatos sobre ela no início de novembro. Eles também denunciaram que viram escavadeiras hidráulicas nos arredores da rodovia, algo incomum por ali. Sobrevoo realizado semana passada pelo Greenpeace Brasil confirmou a denúncia e localizou quatro escavadeiras hidráulicas no entorno da estrada ilegal. A rodovia apareceu no monitoramento via satélite muito recentemente, a partir de agosto de 2022.

Aumento da destruição

A chegada de maquinário pesado no interior da Terra Indígena Yanomami é uma grande tragédia, que torna ainda mais grave a crise humanitária vivida por aquele povo. Por ser uma região remota e de difícil acesso, o garimpo ilegal feito ali sempre dependeu muito mais de pequenos aviões. 

As máquinas pesadas que hoje entram naquela área servem não só para potencializar a exploração de ouro e cassiterita, mas também facilitam a construção de estruturas que facilitam o crime ambiental, como postos de abastecimento, acampamentos e outras estradas. 

Os povos Munduruku e Kayapó, no Pará, viveram essa experiência: na última década,a entrada de máquinas pesadas naquelas áreas, elevaram a destruição provocada pelo garimpo a patamares inimagináveis. Um estudo realizado pelo Greenpeace evidenciou que, entre 2016 e 2021, o garimpo ilegal destruiu pelo menos 700 quilômetros de rios dentro das Terras Indígenas Munduruku e Sai Cinza – um aumento de 2.000% na extensão de rios destruídos dentro dos territórios. 

Sobrevoo realizado pelo Greenpeace encontrou quatro escavadeiras perto da nova estrada.

Isolados em perigo

A estrada ilegal apresenta outro perigo: ela passa a menos de 15 quilômetros de uma aldeia do povo isolado Moxihatëtëma. Eles chegaram a ser dados como extintos nos anos 90 – mas em 1995 um relato da Fundação Nacional do Índio (Funai) de que dois garimpeiros foram flechados por eles, mostrou que o grupo ainda vivia. Em 2011, um sobrevoo da Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami e Ye’Kuana (FPEYY) confirmou que o grupo ainda existia e mantinha sua disposição de evitar qualquer contato com sociedades não-indígenas. A partir dali, a Funai passou a monitorar este povo. Hoje, a maior ameaça aos Moxihatëtëma é a proximidade com os garimpos ilegais.

Monitoramento feito pelo Mapbiomas mostrou que, entre 2010 e 2020, as áreas de garimpo dentro de Terras Indígenas cresceram 495%. As Terras Indígenas que mais sofrem com esse problema são a TI Kayapó (7602 ha) e TI Munduruku (1592 ha) e Yanomami (414 ha), que fica entre  o Amazonas e Roraima

A recém-descoberta estrada dentro do território Yanomami surpreendeu os indígenas e assustou pesquisadores – seus impactos podem ser devastadores. Foto: Valentina Ricardo

Ação urgente

“É inacreditável que tantos quilômetros de estrada sejam abertos dentro de uma terra indígena, de forma clandestina, sob os olhos do Estado. Isso é totalmente ilegal. Essa estrada serve para o avanço de máquinas pesadas, que destroem os solos, as árvores e as vidas das pessoas. É importante e urgente uma ação do estado brasileiro. E não pode ser uma operação isolada, de ações pontuais. Tem que ser uma operação permanente”, disse a coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e deputada federal eleita pelo PSOL, Sônia Guajajara.

De acordo com o porta-voz da Campanha Amazônia do Greenpeace, Danicley de Aguiar,a abertura dessa estrada coloca o garimpo ilegal realizado dentro da Terra Indígena Yanomami em “outro patamar”.

“Ao viabilizar a entrada das escavadeiras hidráulicas, essa estrada potencializa o caos produzido pelo garimpo ilegal e aprofunda o desespero vivido pelos Yanomami. Impedir o avanço do garimpo na TI Yanomami deve ser a prioridade número um do próximo governo; do contrário, assistiremos um ciclo de destruição ainda não experimentado nesse ponto do país. É fundamental expulsar os garimpeiros e viabilizar uma transição do modelo econômico da região; substituindo a economia da destruição, por uma economia capaz de conviver com a floresta”, disse o porta-voz.

O IBAMA já está em operação na região do rio Catrimani – mas é necessária uma ação mais permanente e integrada das forças do Estado para expulsar os garimpeiros. Foto: Divulgação Ibama

O drama do garimpo

O garimpo ilegal causou uma verdadeira tragédia humanitária dentro da Terra Indígena Yanomami – uma situação que segue ainda hoje sem solução. Ainda que tenha sido demarcada há trinta anos, numa região remota entre o Amazonas e Roraima, o poder público nunca foi capaz de garantir plenamente a defesa desse território e o usufruto exclusivo dos Yanomami. Vivem por ali cerca de 27,6 mil indígenas, numa área de 9,6 milhões de hectares – quase duas vezes o tamanho da Suíça.

A primeira invasão garimpeira ocorreu no território na década de 80, com efeitos catastróficos para aquele povo. Dados do Ministério da Saúde mostram que, entre 1987 e 1990, cerca de 14% dos Yanomami morreram por doenças transmitidas pelos garimpeiros. Além disso, o garimpo causou destruição do leito dos rios, contaminações por mercúrio e óleo diesel e uma série de problemas sociais como violência desenfreada, desestruturação de grupos sociais, exploração sexual infanto-juvenil e trabalhos precarizados.

Pior momento

O relatório “Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo”, lançado em abril de 2022, afirma que os últimos cinco anos são “o pior momento de invasão desde que a TI foi demarcada e homologada, há trinta anos”. 

Informações mais recentes do Instituto Socioambiental (ISA) mostram que o garimpo já impactou mais de 44 mil hectares do interior da Terra Indígena, fazendo com que seus efeitos indiretos – como aumento dos casos de malária, a violência e contaminação dos rios – afetasse mais de 56% da população Yanomami.

A Hutukara Associação Yanomami afirma que existem hoje cerca de 20 mil garimpeiros dentro do território – uma verdadeira tragédia humanitária e socioambiental. Em 2021, verificou-se que o Primeiro Comando da Capital, o PCC, uma das maiores facções criminosas do Brasil, também estava presente no território Yanomami explorando ouro, traficando drogas e armas; bem como ameaçando de maneira ainda mais séria a vida povos que vivem naquela região.


Este texto foi originalmente publicado pelo Greenpeace Brasil de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Carolina Hisatomi

Graduanda em Gestão Ambiental pela Universidade de São Paulo e protetora de abelhas nas horas vagas.

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