Por Gustavo Bediaga em Mongabay – O combate ao desmatamento no Brasil, especialmente na Amazônia, é um tema de interesse global. Evidências apontam que a Floresta Amazônica contribui para a regulação climática mundial (Malhi et al. 2008), além de possuir uma rica biodiversidade ainda não conhecida totalmente (Hopkins 2007). Além disso, a preservação da Floresta Amazônica tem uma grande relevância para a produção agrícola brasileira, já que a chuva das regiões produtivas é influenciada pela região amazônica (Nobre 2014).
O governo brasileiro tem investido historicamente em medidas conhecidas como “comando e controle”, com forte aparato regulatório e ações de fiscalização para coibir atividades ilegais. Estudos apontam que estas medidas têm efeito na diminuição do desmatamento (Arima et al. 2014, Tacconi et al. 2019). No entanto, ainda não conseguem cessar totalmente as atividades ilegais
Além do desmatamento, a Floresta Amazônica é alvo de outro tipo de degradação: o corte seletivo de árvores de maior valor econômico (Asner et al. 2005). Este processo consiste na extração de árvores de maior porte que tenham valor no mercado madeireiro, sem, contudo, retirar todas as árvores circundantes, com ocorre no desmatamento. Este tipo de atividade ilegal ocorre sobretudo em áreas protegidas (Terras Indígenas e Unidades de Conservação) e tem uma detecção via satélite muito mais difícil do que uma área completamente desmatada (McDermott et al., 2015; Hethcoat et al., 2019).
O corte seletivo ilegal causa degradação nas florestas (Nepstad et al. 1999), além de abastecer o mercado madeireiro com madeira a um preço muito menor do que o praticado no mercado legal. Isto causa uma competição desleal com o setor formal, praticamente inviabilizando a produção sustentável de madeira legal (Lima et al. 2018).
Espécies com alto valor madeireiro como o ipê, jatobá e massaranduba são extraídas ilegalmente de florestas e são transportadas clandestinamente até serrarias. Nas serrarias ou mesmo nas florestas pode ocorrer o processo de “esquentamento” da madeira, onde a madeira destas árvores retiradas ilegalmente “ganha” uma documentação legal. Para entender como o processo de esquentamento de madeira funciona, é necessário descrever o sistema de autorização de produtos florestais nativos.
O Brasil possui um sistema eletrônico de controle de transporte de produtos florestais desde 2006, chamado de Documento de Origem Florestal (DOF). Todo transporte de produtos florestais em território nacional deve ser registrado neste sistema. O sistema tem funcionamento similar ao de uma conta bancária. O crédito do sistema é o volume de material lenhoso que um proprietário obtém em uma autorização emitida pelo órgão ambiental competente.
Por exemplo: se um proprietário obtém uma autorização para explorar 100 m³ de madeira em um imóvel, esse valor é creditado em seu nome no DOF. Assim, ele passa a ter 100 m³ de créditos virtuais, que representam a madeira autorizada e reconhecida pelo órgão ambiental. Ao vender parte desta madeira, ele emite um DOF com o volume a ser transportado (por exemplo 20 m³), que é debitado de sua conta virtual e é creditado na conta do comprador da madeira (por exemplo uma serraria que vai beneficiar essa madeira). O caminhão que transportar esses 20 m³ irá carregar consigo o DOF correspondente, com a origem e o destino da carga, para comprovar a legalidade da madeira.
Assim, o detentor da autorização passa a ter 80 m³ em sua conta no DOF, ao passo que o comprador (a serraria) passa a ter 20 m³ a mais em sua conta. O comprador repete a mesma operação ao vender a madeira, de forma que o crédito registrado no sistema sempre deverá corresponder ao volume real estocado no pátio de qualquer um dos elos dessa cadeia.
O esquentamento de madeira tem origem, de forma geral, quando um saldo é repassado sem que haja o transporte físico da madeira. Assim, o comprador recebe o crédito virtual e o utiliza para acobertar madeira obtida de forma ilegal.
No exemplo acima, é como se o proprietário passasse os 20 m³ para a serraria no sistema DOF sem transportar nenhuma madeira. Com esse crédito a mais, a serraria poderia acobertar 20 m³ de madeira oriunda, por exemplo, de exploração ilegal em Terra Indígena. Assim, a madeira obtida ilegalmente passaria a ter uma documentação regular, podendo ser revendida como se fosse legal.
Basicamente há dois meios de se gerar, na floresta, créditos em excesso no sistema:
O Inventário Florestal é uma técnica de mensuração do volume das árvores de uma floresta. A estimativa de volume obtida com o Inventário Florestal quase nunca será igual ao volume real da floresta, pela própria limitação da técnica. Caso o volume estimado seja maior, o proprietário fica com excesso de créditos no sistema, mesmo depois de transportado todo o volume real. Esse crédito excessivo deveria ser devolvido ao órgão ambiental, mas algumas vezes é comercializado através de transação fraudulenta.
Se em algumas ocasiões o crédito excessivo é gerado pela própria limitação da estimativa do Inventário Florestal, em outras ele pode ser intencionalmente gerado para ser comercializado.
Um proprietário que possui, por exemplo, 30 m³ de ipê em sua floresta, “infla” seu inventário e solicita 60 m³ de crédito de ipê ao órgão ambiental, que emite uma autorização com os 60 m³ solicitados. Assim, ele, mesmo após explorar os 30 m³ de ipê em sua floresta, pode comercializar os 30 m³ de crédito de ipê excedentes, ou até mesmo retirar ilegalmente de áreas vizinhas e transportar como se fosse da sua área.
Uma das fraudes para comercialização de créditos ocorre quando um proprietário obtém uma autorização para explorar uma floresta e simplesmente não realiza nenhuma intervenção. O crédito obtido é 100% utilizado para esquentar madeira ilegal.
Nota-se que o processo autorizativo e, em especial, o Inventário Florestal, é o principal mecanismo de geração de créditos no sistema. Assim, o combate ao esquentamento de madeira ilegal deve focar também na geração de créditos no sistema.
Importante apontar que a transação fraudulenta de créditos de madeira é uma atividade criminosa bem estruturada. Existe um mercado de venda ilegal de créditos do DOF com preços formados a partir de oferta e demanda, e onde o crédito de espécies mais valiosas tem um maior preço.
Proponho neste artigo uma abordagem para dificultar a geração de créditos no sistema na origem (floresta), além de ajudar a identificação de possíveis transações fraudulentas com o uso de inteligência de dados. Tal proposta só é possível graças à recente operacionalização do Sistema Nacional de Controle dos Produtos Florestais (SINAFLOR).
Em 2018 o Ibama lançou o SINAFLOR, em atendimento ao artigo 35 da Lei 12.651/2012. O SINAFLOR dá um salto de qualidade, transparência e controle social na gestão florestal (Teixeira 2019).
O DOF registra em sistema somente os créditos outorgados pelas autorizações emitidas pelos órgãos ambientais, além das etapas de transporte da madeira. Já o SINAFLOR abriga todo o processo autorizativo, formando um banco de dados único com todas as informações apresentadas pelos proprietários (inclusive o Inventário Florestal), além dos pareceres e análises emitidas pelos órgãos ambientais.
Isto representa um grande avanço na necessária transparência dos atos autorizativos emitidos pelos órgãos ambientais, além de possibilitar a geração de informações estatísticas robustas sobre a gestão florestal brasileira.
No entanto, o SINAFLOR pode ser muito mais do que um simples banco de dados das informações florestais. Ele pode ser um robusto instrumento de inteligência de dados que: i. apoie a análise do processo autorizativo e ii. apoie as ações fiscalizatórias utilizando análises automatizadas.
O processo autorizativo no SINAFLOR funciona a partir da inserção dos dados pelo responsável técnico no sistema. Estes dados são analisados pelo órgão ambiental e, caso validados, dão origem à uma autorização para exploração da floresta. O SINAFLOR funciona como um banco de dados dos estudos apresentados (Inventários Florestais e demais peças técnicas). O órgão ambiental acessa esses estudos para realizar sua análise.
Propõe-se aqui uma nova visão sobre o SINAFLOR, inserindo ferramentas de inteligência de dados. A base da proposta é a implementação de análises automatizadas a cada dado inserido no sistema. A análise automatizada feita pelo sistema deve produzir um relatório para apoiar as análises do órgão ambiental, como resumido na Figura 1.
As ferramentas de inteligência de dados não devem substituir as análises atualmente realizadas pelos órgãos ambientais, mas apoiá-las com relatórios e alertas produzidos automaticamente pelo sistema.
Bracalion et al. (2018) propuseram um modelo para análise automatizada dos Inventários Florestais inseridos pelos responsáveis técnicos, com o objetivo de identificar as fraudes mais comuns. Propõe-se aqui outras análises que podem complementar a proposta de Brancalion et al. (2018) e tornar o sistema ainda mais robusto.
As análises devem ser suportadas por dados confiáveis de bases já existentes e por um processo de aprendizagem do próprio sistema.
As bases de dados utilizadas nas análises automatizadas do sistema devem provir de mapeamentos e levantamentos oficiais, que tenham um alto grau de acurácia. Já a aprendizagem do sistema deve ser um contínuo processo automatizado: a cada novo dado inserido e validado, o sistema define um padrão para aquele tipo de dado (utilizando por exemplo ferramentas de machine learning).
As análises automatizadas podem ser divididas em duas grandes etapas: pré-autorização e pós-autorização. A seguir descreveremos os processos propostos para cada uma das etapas, assim como os insumos (base de dados) que podem ser utilizados nas análises.
Essa etapa deve ter o objetivo principal de apoiar a análise do servidor público responsável pelo processo autorizativo. Os dados inseridos no sistema pelo responsável técnico devem passar por diversas análises automatizadas que ao fim irão gerar um relatório apontando possíveis incongruências nos dados apresentados. O relatório deverá subsidiar a análise do servidor responsável, dando mais segurança para sua tomada de decisão.
Propõe-se as seguintes análises nessa etapa, a ser iniciada a partir da inserção do pedido de desmatamento/manejo florestal no sistema:
Insumos necessários: Imagens de satélite (para detectar o grau de preservação da floresta pode-se usar índices de vegetação, como o NDVI, NDFI, etc.); Mapeamentos oficiais de fitofisionomias; Mapeamentos oficiais de biomassa.
Insumos necessários: Inventário Florestal Nacional (realizado pelo Serviço Florestal Brasileiro) e Inventários Florestais Estaduais; RADAM Brasil; SISPROF (sistema autorizativo do Ibama que funcionou por alguns anos na Amazônia); Inventários Florestais publicados na literatura; dados oficiais de localização de espécies (herbários, GBIF, Reflora etc.), Inventários Florestais já aprovados e validados pelos órgãos ambientais dentro do próprio sistema.
A partir dessas análises, é gerado um relatório com possíveis incongruências encontradas. Com este relatório, o órgão ambiental deverá analisar as incongruências e, caso necessário, realizar uma vistoria em campo para validar o dado ou confirmar o erro apontado pelo sistema. Este momento é importante para que o sistema possa “aprender” e tornar suas análises cada vez melhores.
Por exemplo: digamos que o sistema aponte, a partir da análise do Inventário Florestal, que não é comum ter na região uma densidade de 4 árvores de ipê por hectare. O órgão ambiental empreende então uma vistoria focada na identificação das árvores de ipê e confirma que a densidade está correta. Ao validar esta informação, o sistema passaria a considerar possível haver essa densidade de ipês naquela determinada região.
Esse processo de “aprendizagem” do sistema certamente exigirá um esforço inicial maior dos órgãos ambientais para o treinamento do algoritmo, mas a tendência é que cada vez mais o sistema apresente uma maior acurácia em suas análises.
Espera-se que a partir da etapa pré-autorização o servidor tenha mais segurança em seu processo decisório. Espera-se também, a partir do apoio das análises empreendidas pelo sistema, uma diminuição de eventuais erros na análise do processo autorizativo. Ademais, ficará mais difícil o cometimento de fraudes pelos servidores, já que cada incongruência apontada pelo sistema deverá passar por um processo de validação, o que ficará registrado e poderá ser auditado no futuro.
A etapa pré-autorização deverá diminuir ou até mesmo impedir a geração de créditos fraudulentos. Sem créditos para acobertar madeira ilegal, evita-se parte da derrubada irregular de florestas. Trata-se, assim, de uma ação preventiva, que ataca uma das origens da exploração ilegal da floresta.
Após essa etapa, a autorização poderá ser emitida, o que desencadeará as análises da próxima etapa.
Esta etapa tem o objetivo principal de monitoramento da exploração florestal, gerando alertas para os setores de fiscalização quando forem detectadas atividades com indícios de irregularidade.
Ela deve ser iniciada a partir da primeira declaração de corte registrada. A declaração de corte é uma ferramenta do SINAFLOR utilizada para o registro do momento do início efetivo da exploração. Nesta ferramenta o responsável técnico registra cada árvore que é cortada e o volume real aferido pela medição em campo.
Propõe-se as seguintes análises nessa etapa, a ser iniciada a partir declaração de corte registrada no sistema:
Insumos necessários: Imagens de satélite (para analisar indícios de exploração da floresta pode-se usar índices de vegetação, como o NDVI, NDFI, etc.);
Insumos necessários: Delimitação de situações absurdas, informações do Plano de Manejo Florestal Sustentável apresentado, especialmente da capacidade produtiva proporcionada pelo maquinário e quantidade de trabalhadores existente.
Nesta etapa pós-autorização também devem ser objeto de análises automatizadas cada etapa de transporte dos produtos florestais, a fim de se identificar possíveis transações fraudulentas (emissão de DOF sem o transporte físico da madeira por exemplo). A partir de cada DOF emitido, a atividade deve passar pela seguinte análise:
Insumos necessários: Registro dos veículos; dados da Receita Federal sobre as Notas Fiscais; dados históricos de transporte de produtos florestais já registrados no DOF; informações sobre transportes improváveis.
Importante ressaltar que as análises empreendidas na etapa pós-autorização devem gerar alertas para o setor de fiscalização em tempo real, à medida que os dados são registrados no sistema. O alerta gerado só deverá se transformar em uma multa/embargo após uma análise do órgão ambiental, de preferência com uma vistoria para confirmar a eventual ilegalidade.
Novamente, é importante que haja um processo de validação/rejeição das informações dos alertas, de forma que o sistema possa “aprender” com cada alerta que for verificado.
Espera-se que haja, principalmente no início de operação do sistema, um grande volume de alertas sendo emitidos. Assim, é importante que os setores de fiscalização dos órgãos ambientais estabeleçam estratégias para a análise, triagem e posterior atendimento aos alertas selecionados.
Certamente será impossível atender a todos os alertas, até porque muitos poderão, principalmente no período de implantação do sistema, serem oriundos de atividades que fogem ao padrão, mas que não são necessariamente ilegais.
Propõe-se no presente artigo uma nova estratégia para auxiliar o combate ao desmatamento e à exploração ilegal de florestas, diminuindo as fraudes no sistema de controle florestal.
Esta proposta não substitui, de forma alguma, as necessárias ações de fiscalização atualmente empregadas para combater os ilícitos ambientais. Tampouco substitui a análise realizada pelos servidores públicos nos processos autorizativos dos órgãos ambientais.
A ideia é subsidiar essas duas atividades com ferramentas automatizadas de inteligência de dados. O recente advento do SINAFLOR possibilita esse avanço na gestão e monitoramento dos recursos florestais brasileiros.
As análises aqui propostas não exaurem todas as possibilidades de cruzamentos de dados no sistema. Ressalta-se ainda que a fiscalização não se deve pautar apenas pelos alertas do sistema, pois eventuais irregularidades ainda podem passar despercebidas pelo algoritmo. Assim, ações fiscalizatórias devem ser baseadas também em outras fontes, como denúncias, conhecimento prático dos fiscais e mesmo escolhas aleatórias amostrais.
Reforça-se que é imprescindível a completa integração dos sistemas estaduais ao SINAFLOR, ou a adoção do SINAFLOR por todos os estados, para que o sistema abranja todas as operações florestais realizadas no território nacional. Adotar um sistema desses em somente alguns estados irá resultar em uma distorção indesejada no controle florestal nacional.
Espera-se, por fim, que um sistema robusto com ferramentas de inteligência acopladas diminua a ocorrência de fraudes e ajude no combate ao desmatamento e exploração ilegais de nossas florestas.
Além disso, o sistema poderá aumentar a confiabilidade do produto florestal brasileiro, agregando valor às cadeias produtivas florestais que operam de forma legal.
Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos.
Saiba mais