Estudo comunitário esclarece assassinatos de felinos selvagens na Amazônia central

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Por Sean Mowbray em Mongabay Brasil | Dos 71 felídeos mortos durante o período do estudo, onças-pintadas foram as maiores vítimas. Os felinos selvagens foram predominantemente mortos de forma oportunista em florestas inundadas em áreas onde a população humana é maior.

Na região do Médio Amazonas, um programa de monitoramento comunitário de longa duração reuniu informações sobre a caça local de felídeos selvagens ameaçados de extinção para esclarecer o possível impacto nas populações desses animais.

Dez comunidades de duas Unidades de Conservação no estado do Amazonas, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, participaram do projeto, que durou 18 anos, de 2002 a 2019. Os pesquisadores publicaram suas descobertas na revista Animal Conservation.

Durante o período de estudo, os monitores das comunidades relataram um total de 71 felídeos selvagens mortos. Onças-pintadas (Panthera onca) foram as maiores vítimas, com 35 indivíduos mortos. Quinze jaguatiricas (Leopardus pardalis), 11 pumas (Puma concolor) e quatro maracajás (Leopardus wiedii) também foram caçados, além de seis felinos identificados apenas como Leopardus.

Com a anuência de membros da comunidade, pesquisadores do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, organização social fomentada e supervisionada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, capacitaram moradores para o levantamento da caça de felídeos e de animais selvagens no entorno das áreas de reserva.

Quase todas as mortes foram descritas pelos caçadores como oportunistas. O conflito entre humanos e animais selvagens, principalmente quando felídeos selvagens matam gado, é um motivo comum por trás dos assassinatos desses animais na Amazônia. Apenas sete mortes intencionais foram registradas, no entanto, nas dez comunidades. Dois deles foram em retaliação por predação no gado.

Monitores comunitários foram treinados para coletar informações de caçadores sobre gatos selvagens mortos, incluindo informações sobre motivo, local e estação do ano. Muitas das mortes ocorreram durante expedições de caça de espécies como a cutia (Dasyprocta leporina) e a paca-pintada (Cuniculus paca), segundo o estudo. Foto: Valdinei Lemos/Acervo do Instituto Mamirauá.

“Existe esse lado do conflito em que as pessoas matam animais em retaliação porque perderam animais domésticos”, disse Guilherme Costa Alvarenga, pesquisador do Instituto Mamirauá e membro da equipe do projeto. “Mas também é importante considerar outros aspectos, como atitudes e percepções que eles têm em relação à espécie.”

O medo da onça-pintada e de outros felinos selvagens provavelmente é responsável por grande parte da matança. A maioria dos incidentes ocorreu durante a caça de espécies como a paca-pintada (Cuniculus paca), ou na realização de outras atividades, como a pesca.

Alvarenga também disse que provavelmente houve mais mortes por retaliação do que o estudo apurou, devido à metodologia utilizada. Em outras comunidades na mesma região, pesquisas anteriores observaram mortes intencionais de onças-pintadas em um número muito maior devido à predação de animais de fazenda, como porcos e gado.

O projeto também constatou que o tamanho da população impactava a caça. As comunidades variavam de cerca de 60 a 300 pessoas. Comunidades maiores tendiam a caçar mais. Monitores comunitários também rastrearam onde e quando os felinos foram mortos. A maioria das onças-pintadas foi morta em áreas sazonalmente inundadas, conhecidas como florestas de várzea, e mais felinos foram mortos durante a estação das águas altas, quando a caça substitui outras atividades, como a pesca. Outras espécies, como a jaguatirica e o puma, foram predominantemente mortas em florestas mais secas nas terras altas.

“Se você tem uma grande população de humanos, uma alta população de onças-pintadas e os caçadores podem ver os animais com mais facilidade durante um determinado período, então as onças-pintadas são mais propensas a serem mortas com mais frequência do que outras espécies de felinos”, disse Alvarenga.

Caçadores das 10 comunidades monitoradas mataram predominantemente onças-pintadas. Um número menor de felinos pequenos, como a jaguatirica (acima), foi morto. Espécies como essa podem predar animais domésticos, como galinhas. Foto: Robin Gwen Agarwal via Flickr (CC BY-NC 2.0).

Estimativa da ameaça

Juntos, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã e o Parque Nacional de Anavilhanas cobrem uma enorme extensão de floresta na Amazônia Central, compondo o Corredor Ecológico da Amazônia Central. Dado o tamanho da área e as densidades estimadas das populações de felinos selvagens, Alvarenga disse não acreditar que os resultados do estudo representassem uma ameaça considerável.

“Eu diria que o impacto nessa região, considerando a forma como as comunidades estão distribuídas, é mínimo”, comentou Alvarenga.

Para Juliano Bogoni, que não participou do projeto e é pesquisador do Laboratório de Ecologia, Manejo e Conservação da Fauna Silvestre da Universidade de São Paulo, o impacto também pode depender de outros fatores. “Apesar da ampla distribuição, a densidade da onça-pintada (e outros felídeos) é altamente variável na região Neotropical, mas normalmente inferior a 5 indivíduos por 100 km. Portanto, um perfil de caça semelhante ao obtido nesse estudo pode ser bastante preocupante”, declarou à Mongabay. “Ainda assim, o estudo indica que não há diminuição da população de onça-pintada durante seis anos na área.”

Além disso, o projeto também ajudou a identificar os níveis de caça de pequenos felinos. Na Amazônia brasileira vivem quatro espécies: jaguatirica (Leopardus pardalis), maracajá (Leopardus wiedii), jaguarundi ou gato-mourisco (Herpailurus yagouaroundi) e gato-do-mato-pequeno (Leopardus tigrinus). A caça destas, no entanto, muitas vezes passa despercebida. Dos quatro, apenas o maracajá habita a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, adaptado a viver nas árvores na época das cheias.

Tadeu de Oliveira, conservacionista de pequenos felinos e pesquisador do Instituto Pró-Carnívoros, ONG dedicada à conservação de carnívoros neotropicais, que não esteve envolvido no projeto, também disse acreditar que os resultados não indicam perigo iminente para as espécies menores. “O bom é mostrar que as comunidades locais na Amazônia não estão realmente impactando [esses felinos], pelo menos não os pequenos”, disse Oliveira à Mongabay. “Essa é a mensagem principal da minha perspectiva de especialista em pequenos felinos. O que significa que a Amazônia ainda pode ser um porto seguro para alguns deles.”

Durante o projeto de monitoramento comunitário, que durou 18 anos, 35 mortes de onças-pintadas foram registradas em dez comunidades da Amazônia central. Foto: Miguel Monteiro/Acervo do Instituto Mamirauá.

No entanto, essas dez comunidades representam apenas uma fração da população da região amazônica central. “Como só temos uma amostra da área [das dez comunidades monitoradas], sabemos que temos menos registros do que realmente ocorre na área”, explicou Alvarenga, ressaltando que as conclusões não devem ser extrapoladas para outras comunidades. Dadas suas diferentes características, algumas comunidades podem pescar mais do que caçar, por exemplo.

Apesar disso, ele disse acreditar que os dados coletados são inestimáveis para entender a dinâmica da caça nessas comunidades.

“Há uma área intermediária ao redor das comunidades onde as pessoas caçam e têm acesso, que provavelmente funciona como um sumidouro”, disse Alvarenga. Em áreas com atividade de caça bastante intensa nas proximidades das comunidades, provavelmente houve um impacto nas populações de felinos selvagens. “É importante ficar de olho na situação, continuar monitorando como está a caça, se o número de pessoas nessas comunidades está aumentando drasticamente e, se possível, monitorar também as populações dessas espécies em paralelo”.

Entender os níveis de caça dessa maneira não foi possível sem o envolvimento das comunidades, acrescentou Bogoni. “A caça é uma atividade enigmática sob o dossel da floresta. Portanto, trabalhar com as comunidades pode retratar melhor o cenário [local] e, assim, alcançar melhores ações para o planejamento da conservação”, comentou.

Com essa riqueza de informações colhidas nessas comunidades, os achados contribuíram para a elaboração dos dois Planos de Manejo das Reservas de Desenvolvimento Sustentável, que incluem regulamentações sobre a caça de espécies ameaçadas de extinção, como a onça-pintada, e os animais que atravessam os cursos d’água.

Apesar de existirem prováveis lacunas nas informações recolhidas, Alvarenga sublinhou que o modelo desenvolvido durante o projeto, construído com base na confiança dos membros da comunidade, foi essencial para destacar os padrões de caça e permitiu elucidar possíveis áreas prioritárias para ação de conservação, como as florestas de várzea.

“Se você tiver as comunidades perto de você, se elas confiarem em você e fizer o trabalho em parceria, você obterá os melhores dados possíveis”, acrescentou Alvarega. “Talvez seja importante ter um monitoramento maior ou executar programas educacionais mais intensivos nessas comunidades.”

Este texto foi originalmente publicado por Mongabay Brasil de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Ana Nóbrega

Jornalista ambiental, praticante de liberdade alimentar e defensora da parentalidade positiva. Jovem paraense se aventurando na floresta de cimento de São Paulo.

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