Cruzamento de dados pesqueiros com informações de pescadores artesanais confirma a tendência de substituição de espécies grandes por outras de menor valor comercial; 37 espécies foram apontadas como superexploradas
Em artigo recentemente publicado na revista PLOS ONE, cientistas revelam que um dos efeitos da superexploração de espécies grandes e valiosas de peixes em Arraial do Cabo (RJ) é sua substituição por espécies menores e, anteriormente, menos cobiçadas.
Segundo os autores, o declínio dos estoques de espécies como Pomatomus saltatrix (anchova), Epinephelus marginatus (garoupa), Caranx hippos (xaréu) e Seriola fasciata (olhete) foi seguido por um aumento na pesca de animais com menor valor comercial, porém mais abundantes (por exemplo, Trichiurus lepturus , conhecido como peixe-espada; Balistes capriscus, ou peruá; Aluterus monoceros, ou raquete; e Priacanthus arenatus, conhecido como olho-de-cão).
No trabalho, focado na pesca artesanal, os autores relatam que os pescadores passam mais tempo no mar para pegar a mesma quantidade de peixes que coletavam há alguns anos. Também mencionam que os mais jovens estão mudando para fontes alternativas de renda, como o turismo, muitas vezes incentivados por suas famílias a deixar a atividade pesqueira.
A pesca concentrada em peixes de grande porte pode causar o declínio dos principais estoques de predadores, como garoupas, tubarões e atuns, e até mesmo levar espécies à extinção local, afirma o artigo, que tem como primeira autora Carine O. Fogliarini, do Laboratório de Macroecologia e Conservação Marinha da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Assinado também por Vinicius J. Giglio Fernandes, bolsista de pós-doutorado da FAPESP na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o trabalho confirma um conceito já bem conhecido: o de pesca ao longo da cadeia alimentar (fishing down the food web).
“Significa que se começa pescando os níveis tróficos superiores [peixes maiores e predadores de topo] e, aos poucos, como consequência da superexploração, acaba-se chegando aos peixes menores, da base da cadeia alimentar. Já havíamos publicado um artigo em 2014 sobre o declínio de várias espécies de mesopredadores [peixes carnívoros de médio porte] da região, incluindo a garoupa e a anchova. E agora conseguimos, combinando o conhecimento local dos pescadores com dados de desembarque, demonstrar o cenário de superexploração de espécies de alto nível trófico capturadas em Arraial do Cabo e também o declínio no tamanho médio dessas espécies nos desembarques”, resume Mariana G. Bender, coordenadora do Laboratório de Macroecologia e Conservação Marinha da UFSM e coautora do trabalho.
Para confirmar essa última informação, os pesquisadores usaram uma medida denominada Nível Trófico Médio, designado pela sigla NTM, e tentaram determinar seu declínio em uma série histórica de 16 anos. “A grosso modo, quando há uma queda significativa nesse número é sinal de que estamos pescando muito mais espécies de nível trófico inferior. Tivemos certa dificuldade com o NTM, porque ele é uma medida geral, que leva em conta o nível trófico médio da biomassa desembarcada e sua variação no tempo. Assim, dividimos o NTM em quatro categorias: todas as espécies desembarcadas; espécies com nível trófico [NT] maior que 4; com NT maior ou igual a 3,5 e com NT menor que 3,5”, explica Fogliarini.
O grupo observou uma tendência de declínio no nível trófico médio e nos desembarques de espécies com NT maior que 4 e NT maior ou igual a 3,5. “As capturas de nível trófico maior que 4 têm um aumento e depois uma queda brusca. Isso quer dizer que desembarques de espécies que têm nível trófico maior que 4 [superiores] de fato estão diminuindo. E existe uma tendência de substituição dessa captura pela pesca de peixes de nível trófico inferior”, diz Bender.
O estudo também sugere que avaliar as mudanças com base em um único indicador, como o NTM, pode mascarar resultados, e que o uso de várias abordagens, incluindo o conhecimento dos pescadores locais, pode tornar essas mudanças mais explícitas.
Novos alvos
Foram entrevistados 155 pescadores artesanais das comunidades pesqueiras de Figueira, Monte Alto, Praia Grande, Praia dos Anjos, Prainha e Pontal, o que corresponde a 10,3% dos pescadores artesanais locais. Eles foram categorizados, de acordo com seus anos de prática, em quatro grupos: menos experiente (abaixo de 20 anos), intermediário (21 a 35 anos), experiente (36 a 40 anos) e muito experiente (mais de 40 anos).
“Pescadores com mais anos de prática reconheceram um número significativamente maior de espécies de peixes superexploradas do que aqueles com menos anos de prática. Observamos o mesmo padrão para o número de espécies reconhecidas como novas espécies-alvo. Com o aumento do tempo de prática, os pescadores mencionaram um número maior de espécies como novos alvos da pesca local”, relata Fogliarini.
Segundo o grupo de cientistas, 37 espécies foram identificadas como superexploradas por pescadores locais. A anchova foi a espécie mais citada, em todas as categorias de experiência (45% reconheceram a anchova como superexplorada). Mas, entre o grupo mais experiente de pescadores, a garoupa e o xaréu foram os mais citados. “A pesca da garoupa tem uma história secular naquela região, era importante para a economia local. Peixes como garoupa e xaréu sempre foram muito valorizados ali. Mas agora são cada vez mais raros”, lembra Bender.
O peixe-espada ocupa o segundo lugar na lista local dos superexplorados e o primeiro lugar entre as novas espécies-alvo. “Os pescadores mais experientes contam que ele não tinha valor e que, quando vinha junto, enterravam na areia. Aos poucos foi se achando mercado consumidor para o peixe-espada, que virou nova espécie-alvo e, depois, também acabou superexplorada”, revela a primeira autora.
O segundo mais citado como novo alvo foi o peruá, seguido pelo congro argentino (Conger orbignyanus), a raquete e o olho-de-cão. “A mesma tendência de declínio relatada por pescadores para a anchova, o peixe-espada, a garoupa, o xaréu e o olhete foi confirmada pelos dados de desembarque de pescarias que conseguimos acessar”, conclui ela. “Vimos, ainda, que os pescadores mais jovens reportam as espécies-alvo novas mais que os mais velhos, e isso também bate com os dados de captura mais recentes que temos.”
Motivos
Segundo os pescadores de Arraial do Cabo, os motivos da sobrepesca são o aumento do número de pescadores, aumento do número de barcos e a pesca industrial realizada nas cercanias. Também aparecem entre os motivos a pesca de arrasto e a traineira.
De acordo com dados de produção pesqueira marinha do Projeto de Monitoramento da Atividade Pesqueira do Rio de Janeiro (para o período de janeiro a junho de 2020), 59,9% do volume da pesca artesanal de Arraial do Cabo foi obtido por meio de pesca tipo cerco-traineira (um barco motorizado leva a reboque um bote que, solto em determinado local, segura uma ponta da rede enquanto o barco leva a outra, fazendo um cerco ao cardume). O sistema de linhas diversas (petrechos que utilizam linha e anzol) ocupa o segundo lugar, e o arrasto de praia, o terceiro.
“No arrastão de praia, com os barquinhos, eles vão puxando os cardumes para a praia e retiram os peixes ali na areia. Sabemos que há também uma pesca do tubarão. Os cardumes são cercados e trazidos para a areia. É uma pesca altamente predatória, visto que captura um grande número de fêmeas grávidas”, aponta Fogliarini.
Dados e políticas públicas
Mariana Bender pondera que a série histórica de monitoramento de pesca local usada pelo grupo é muito pequena (16 anos, entre 1992 e 2008), e que até existem dados mais recentes, mas os cientistas não tiveram acesso a eles. A pesquisadora ressalta a necessidade de políticas públicas mais incisivas no sentido de monitoramento periódico e produção e disponibilização de dados.
“O Brasil tem um monitoramento irregular: não é feito em todas as áreas e é esparsado no tempo. Idealmente, o monitoramento deveria ter periodicidade [que fosse uma vez ao mês, por exemplo] e incluir um acompanhamento ou checagem dos desembarques em vários pontos da costa, porque a composição da pesca difere ao longo do litoral. E, muito importante, teria de ser feito em nível de espécie, com o maior teor de refinamento possível, e não com a utilização dos nomes populares dados aos peixes, que é como se faz atualmente. Isso dificulta a construção dos cenários de estoques ao longo da costa. Primeiro, porque em um grupo genérico como ‘garoupa’ pode haver diversas espécies; segundo, porque o que é garoupa na Bahia não é a mesma coisa que em Santa Catarina, ou seja, nomes comuns podem mudar de uma região para outra.”
Fogliarini destaca a importância do consumidor. “São poucas as iniciativas que tentam atingir o consumidor e, no entanto, é a demanda dele que vai determinar o que vai ser capturado. É preciso conscientizar o consumidor e há muito o que caminhar para chegar a um nível razoável de consciência sobre consumo de pescado.”
A organização Painel Mar, que tem a FAPESP como uma de suas entidades mantenedoras, publicou em 2020 um Guia de Consumo Consciente de Pescado da Costa do Descobrimento. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) também tem uma publicação do gênero, editada em 2017.
Leia o artigo Telling the same story: Fishers and landing data reveal changes in fisheries on the Southeastern Brazilian Coast.