Pesquisadores combinam simulações em computador e análises genéticas para avaliar grau de proximidade entre árvores, e sugerem que correntes costeiras e animais polinizadores podem contribuir para troca de material genético entre as populações
Por Malena Stariolo em Jornal da Unesp | Os manguezais são florestas que se formam em regiões onde as águas dos rios se encontram com os mares, e se destacam devido à presença das árvores de mangue que dominam a paisagem estuarina, e exibem suas características raízes aéreas. Por servirem de abrigos para diversas espécies de animais aquáticos nos estágios iniciais de vida, eles são reconhecidos e valorizados como verdadeiros berçários da vida marinha. Outro importante serviço ecológico que prestam é sua elevada capacidade de estocar e sequestrar carbono do ambiente, o que os torna importantes agentes para a mitigação das mudanças climáticas. E o ser humano também retira outros benefícios desses espaços: os mangues agem como um cinturão de proteção nas regiões costeiras, diminuindo a intensidade das ondas e do vento e protegendo as comunidades e cidades ao longo das regiões onde estão presentes.
Ao contrário do que ocorre com outras espécies vegetais, a dispersão das sementes de mangues, chamadas de propágulos, não ocorre por conta da ação de animais ou do vento. São as águas que as transportam e depositam pela costa. As formas das sementes podem variar, dependendo da espécie. Algumas, por exemplo, são parecidas com vagens alongadas. Após se desprenderem das plantas, os propágulos dos mangues podem ser levados pela maré e alcançarem os canais e, na sequência, o mar aberto. Lá, as sementes ficam flutuando, à mercê das correntezas, até que finalmente encalhem em alguma praia ou estuário onde, se as condições forem favoráveis, poderão se desenvolver. Sabe-se que as sementes podem chegar a viajar milhares de quilômetros e passar até mais do que um ano na água, sem que percam a capacidade de gerar uma nova árvore. Porém, exatamente por conta dessa capacidade de cobrir grandes distâncias, os estudiosos ainda se perguntam quais são os caminhos que os propágulos percorrem, e de que maneira as populações de mangue estão conectadas.
Em busca de respostas para esse questionamento, pesquisadores do Instituto de Biociências da Unesp, do Campus do Litoral Paulista (CLP-Unesp), combinaram técnicas de simulação computacional e análise genética para conferir a influência das correntes oceânicas nas viagens dos propágulos e verificar em que nível uma população de determinada região influencia a de outras áreas. A pesquisa foi o trabalho de mestrado do jovem pesquisador André Guilherme Madeira, no programa de Pós-Graduação de Biodiversidade de Ambientes Costeiros, e rendeu o artigo The role of oceanic currents in the dispersal and connectivity of the mangrove Rhizophora mangle on the Southwest Atlantic region, publicado na revista científica Molecular Ecology Resources. O estudo foi realizado a partir de uma colaboração internacional entre pesquisadores do Brasil e do Japão, integrantes da Rede Internacional de Genética e Conservação de Mangue, grupo do qual Gustavo Maruyama Mori, docente do CLP-Unesp e orientador de André, participa desde 2015, quando realizou seu pós-doutorado.
Mais de um milhão de propágulos em dez anos
Quando estavam planejando o projeto de mestrado, Madeira e Mori avaliaram os diferentes instrumentos que poderiam ser empregados para rastrear a viagem dos propágulos. Essa tarefa se mostrou desafiadora. Monitorar as sementes reais, isto é, de forma concreta, demandaria uma equipe numerosa o suficiente para marcar e buscar os propágulos encalhados ao longo da costa brasileira. Além do pessoal numeroso, havia também dificuldades técnicas. Conduzir tal acompanhamento envolveria o uso de milhares de aparelhos de GPS suficientemente leves para não comprometer a flutuabilidade da semente. Devido à grande quantidade de recursos e investimentos que seriam necessários, esta linha de investigação resultaria na pura e simples inviabilização do projeto.
A alternativa encontrada pela dupla foi a de simular no computador o deslocamento das sementes. Essa abordagem permitiu visualizar a dispersão de nada menos do que um milhão de propágulos de mangue vermelho (Rhizophora mangle) ao longo de dez anos, entre 2010 e 2020. Estas sementes começaram sua jornada a partir de onze locais costeiros diferentes, distribuídas entre as regiões Leste, Nordeste e Norte do país. “Nós alimentamos o programa com informações sobre a direção e a força das correntes a cada dia, e em cada ponto do mapa, ao longo desses dez anos. Com isso, o software conseguia determinar o caminho que o propágulo iria seguir ao longo de todo o seu percurso”, explica Madeira. Assim, quando um propágulo era liberado, o computador dispunha das informações necessárias para identificar qual seria seu destino no final daquele dia. Uma vez que a semente alcançava esse novo ponto, procedia-se a mais cálculos, com base nas informações das correntezas que agem naquele local, para apontar qual o trecho seguinte que a semente percorreria. Com essa abordagem ponto a ponto, os pesquisadores foram capazes de analisar o equivalente a dez anos de viagens marítimas.
Graças aos resultados das simulações, a dupla observou que havia pouca troca de propágulos entre as regiões. “Ao observar os propágulos saindo de Cananeia, em São Paulo, vimos que, ao longo dos dez anos, nenhum chegou a ultrapassar a costa do Espírito Santo, encaminhando-se para o Norte. Da mesma forma, ao analisar as sementes dispersas em Alcântara, no Maranhão, muitas se dirigem para o Caribe e a costa norte do país”, expõe Mori. Uma região, porém, mostrou-se um ponto fora da curva. Os propágulos saindo de Tamandaré, em Pernambuco, dividiam as rotas: enquanto uma pequena parte seguia para a costa norte, a maior migrava para o sudeste e para o sul, na costa leste do Brasil. “Esse resultado aponta Tamandaré como um local de interesse, porque ele tem a capacidade de contribuir com as duas populações de mangues no Brasil”, completa Mori.
A genética das plantas
Para complementar as informações levantadas pelas simulações, a dupla também conduziu análises genéticas das árvores de mangue. Isso foi possível graças à coleta de amostras de indivíduos nas regiões pesquisadas. “As análises genéticas nos permitiram descobrir o quão próximas são duas populações. Se uma população de São Vicente é geneticamente semelhante a uma população do Rio de Janeiro, nós podemos concluir que elas estão trocando genes entre si”, explica Mori.
A constatação de que uma população de mangues pode contribuir para a variabilidade genética de outra é evidência de que existem conexões entre as diferentes florestas ao longo da costa. Ao analisar os resultados, a dupla percebeu a recorrência de alguns padrões. A população presente nos estados da região Norte apresentava uma unidade entre si, sinalizando a ocorrência de troca de genes entre as árvores daquelas localidades. E também no caso da costa leste brasileira, observou-se que a principal contribuição genética nessas áreas provinha de mangues de estados próximos.
Mas essa não era a história toda. Ao analisar as características genéticas das populações do leste, os pesquisadores puderam constatar a existência de características genéticas oriundas das populações do norte, ainda que em proporções bem menores. E vice-versa. Para explicar as observações, a dupla desenvolveu duas hipóteses. A primeira envolve uma troca ancestral de propágulos, ocorrida há centenas ou milhares de anos, por meio de algum grupo de sementes que eventualmente se deslocou de uma região a outra. A segunda hipótese implica que, apesar de as correntes oceânicas ainda serem a principal fonte de distribuição de propágulos, outras forças podem também influenciar nessa dispersão. Entre esses possíveis agentes estariam animais polinizadores ou correntes costeiras. Através destas vias, seria possível às sementes chegar a lugares inalcançáveis para aquelas que viajam pelo mar. “Interpretamos esses dados como se existissem eventos raros de migração de longa distância. Seria um propágulo que, eventualmente, consegue chegar a lugares que estão a centenas de quilômetros de distância”, diz Madeira. “São esses eventos que contribuem para a genética dos mangues, de forma a manter os grupos das diferentes regiões separados mas, ao mesmo tempo, coesos”, completa.
A conservação de manguezais
Para os pesquisadores, compreender a dinâmica de distribuição de propágulos e a conexão entre as diferentes populações de mangue é essencial para permitir desenhar projetos de restauração e proteção desses ecossistemas que se mostrem mais eficientes. “Esses resultados indicam quais áreas fornecem mais propágulos para outras regiões do país, contribuindo com mais material genético para manter a diversidade dessas florestas”, diz Madeira. Por outro lado, assim como os dados apontam as regiões mais conectadas, eles também destacam as áreas mais isoladas e que, num caso de destruição de habitat, seria mais difícil recuperar.
Embora a importância ambiental e social das florestas de mangue seja notória, elas seguem sofrendo com desmatamento. É comum que seus espaços sejam revertidos para os mais diversos fins, incluindo projetos de expansão portuária, criação de tanques de aquicultura e carcinicultura ou o avanço da urbanização e da indústria imobiliária. Mori destaca que essas árvores são importantes aliadas na mitigação das mudanças climáticas, principalmente por meio de sua ação como sequestradoras de carbono. Ao removerem o carbono da atmosfera e fixá-lo abaixo do solo, elas formam grandes ‘aterros’ subterrâneos. Entretanto, com a destruição do mangue, o carbono volta a ser liberado para atmosfera, e essas áreas, que antes atuavam como sumidouros, se tornam emissoras de gás carbônico. As pressões antrópicas sobre o ecossistema levaram o Brasil a ser considerado um dos países que mais emite carbono devido ao desmatamento de manguezais. Segundo dados do ICMbio, cerca de 25% da cobertura de manguezais brasileiros já foi destruída desde o começo do século, o que leva à necessidade de ações de restauração e preservação para que a população siga aproveitando os serviços ecossistêmicos fornecidos por suas florestas.
Nesse sentido, Mori acredita que as informações levantadas na pesquisa são essenciais para “dar uma mão para a natureza” e acelerar o processo de restauração das florestas. Segundo o docente, porém, para que grandes projetos de recuperação sejam eficientes não basta plantar propágulos, também é necessário recuperar o meio hidrológico. “Se naquele ambiente foi construída uma salina ou um tanque de aquicultura, e nós não o restaurarmos hidrologicamente, mesmo que se plante um trilhão de mangues lá só vão sobreviver uns cinco”, diz. Para o pesquisador, o ideal seria identificar regiões de interesse para restauração a partir dos dados de dispersão de propágulos, e em seguida proceder à recuperação da hidrologia da área para, só então, plantar os propágulos. Daí, basta deixar que a natureza siga seu curso, por meio da chegada, de tempos em tempos, de mais sementes naquela região, trazidas nos braços salgados do mar.
Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da Unesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.