Trabalho conduzido ao longo de 20 anos sugere que o problema está relacionado com a construção de mais de 150 barragens nos afluentes que abastecem o sistema
Pesquisa realizada ao longo de 20 anos na bacia do rio Paraná revela uma queda drástica no número de insetos aquáticos da região – considerada bem preservada e distante dos impactos negativos da agropecuária e de centros urbanos.
O trabalho de campo foi realizado por pesquisadores do Núcleo de Pesquisas em Limnologia, Ictiologia e Aquicultura da Universidade Estadual de Maringá (Nupelia-UEM). E as informações foram sistematizadas por Gustavo Romero, professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp). Os dados foram publicados no periódico Biology Letters, da Royal Society, em uma edição especial sobre declínio dos insetos.
“Nosso estudo contabilizou dados levantados sazonalmente ao longo de 20 anos. E verificamos um decréscimo de milhares para dezenas de indivíduos por metro quadrado”, revela Romero à Agência FAPESP.
O declínio ultrarrápido das populações de insetos é um fenômeno global, ressalta o pesquisador. Estudos têm contabilizado o fenômeno, correlacionando-o às atividades humanas. Uma meta-análise publicada em 2020 na revista Science, por exemplo, apontou queda no número de insetos terrestres, mas indicou aumento nas populações de insetos aquáticos. Esse artigo foi posteriormente contestado, pois os autores basearam suas conclusões em uma amostragem muito restrita, cobrindo apenas 7% dos ambientes aquáticos, localizados quase que exclusivamente nos Estados Unidos e na Europa.
O levantamento cobriu uma área de cerca de 40 quilômetros quadrados, extensamente ocupada por lagoas, rios, canais e remansos. Segundo o pesquisador, a grande causa do declínio das populações de insetos na bacia do Paraná foi a construção de mais de 150 barragens nos afluentes que abastecem esse sistema, que drena grande parte da região centro-sul da América do Sul e abriga numerosos hábitats de água doce.
A pesquisa recebeu apoio da FAPESP por meio de dois auxílios concedidos a Romero (18/12225-0 e 19/08474-8), além de bolsa de pós-doutorado concedida a Pablo Antiqueira, que integrou a equipe. Foi conduzida no âmbito do Programa FAPESP de Pesquisa em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade (BIOTA-FAPESP) e do Programa FAPESP de Pesquisa em Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG)
“O forte declínio observado afetou não apenas as espécies mais suscetíveis, mas todas as ordens e famílias de insetos aquáticos existentes na região. Tais animais vivem em ambiente aquático até chegar à fase adulta, quando migram para o ambiente terrestre. Isso inclui libélulas e besouros aquáticos, para mencionar apenas os mais conhecidos”, conta Romero.
Pelo fato de alguns insetos, como o Aedes aegypti, serem transmissores de doenças como dengue, zika e febre amarela, existe a ideia equivocada de que todos os insetos são nocivos para os humanos. Mas isso não é verdade. “Os insetos que estão sendo dizimados na bacia do rio Paraná são extremamente úteis, devido aos serviços ecossistêmicos que prestam, como polinização, controle biológico de pragas agrícolas ou de insetos transmissores de doenças, decomposição de matéria orgânica e ciclagem de nutrientes”, enfatiza Romero.
Consequência das barragens
Segundo o pesquisador, as barragens acarretaram três tipos de impactos. Em primeiro lugar, deixaram a água muito mais transparente, porque as partículas em suspensão decantam no fundo dos reservatórios antes do fluxo passar pelos desaguadouros. Sem poderem se camuflar por meio da turbidez, os insetos que vivem a jusante das barragens ficaram muito mais expostos à pressão de predação por peixes insetívoros.
O segundo impacto foi causado pela introdução de peixes exóticos nos reservatórios com o objetivo de promover a pescaria esportiva. Esses peixes, como o tucunaré, trazido da bacia amazônica, são onívoros, isto é, alimentam-se de tudo, inclusive de peixes nativos e de insetos.
O terceiro impacto detectado foi o desbalanceamento estequiométrico dos nutrientes da água, que modificou os percentuais relativos de nitrogênio e fósforo. “Como as algas que proliferam nos reservatórios fixam o nitrogênio da atmosfera e o transferem para a água e parte do fósforo se deposita no fundo das represas, a água que escoa pelos desaguadouros fica pobre em fósforo e proporcionalmente mais rica em nitrogênio. Com isso, tem sua qualidade nutricional alterada, afetando os animais que dependem de uma quantidade balanceada desses nutrientes”, explica Romero.
A bacia do rio Paraná estende-se por sete Estados brasileiros. A classificação tecnicamente mais precisa para ela é a de “sub-bacia”. Pois, juntamente com as sub-bacias dos rios Paraguai e Uruguai, integra a grande bacia do Prata – uma das três principais da América do Sul. As outras duas são as do Amazonas e do São Francisco. As transformações ecossistêmicas na sub-bacia do Paraná constituem, portanto, algo extremamente relevante em escala continental. E a contagem de insetos aquáticos mostra como a ação humana está impactando a região, mesmo quando não há pesticidas agrícolas e esgoto sendo despejados na água.
Existem cerca de 5,5 milhões de espécies de insetos, 80% das quais ainda não foram descritas pela ciência. Essa enorme população de animais, a mais numerosa do planeta, está sendo rapidamente reduzida pela ação humana, caracterizando o que alguns pesquisadores já estão chamando de “apocalipse dos insetos”.
Acesse o artigo Pervasive decline of subtropical aquatic insects over 20 years driven by water transparency, non-native fish and stoichiometric imbalance. E um artigo comentando o estudo, escrito por um dos integrantes da equipe, pode ser lido no periódico The Conversation.