O Brasil é um dos países com maior população carcerária do mundo, com cerca de 700 mil pessoas, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Também é um dos países com maior desigualdade social. E esses dois índices não são coincidência. Quando uma pessoa sai da prisão, é muito difícil a reintegração à sociedade. A estigmatização, o preconceito e, muitas vezes, a falta de capacitação profissional dificultam a busca por um novo emprego, por uma nova vida.
Audrey, Camila e Cristiano são exemplos dessa dificuldade de reinserção social. Ao sair da prisão, cada um, a seu modo, encontrou obstáculos para seguir a vida longe do crime. Mas tiveram uma nova chance através da educação. Hoje, são universitários. Audrey cursa Educação Física; Camila, Assistência Social; e Cristiano, Tecnologia em Logística.
Os três são bolsistas do Nova Rota, uma iniciativa sem fins lucrativos que oferece bolsas de estudo a pessoas egressas do sistema carcerário. O projeto surgiu de um desejo dos advogados Leandro Félix e Vitor Jardim Barbosa de mudar a realidade de ex-presidiários. Eles eram colegas na Faculdade de Direito (FD) da USP, em São Paulo, quando perceberam que viviam em um país com oportunidades escassas para pessoas egressas do sistema carcerário. E vislumbraram no Nova Rota a chance de fazer algo, que nasceu no final de 2019 e se concretizou no início de 2020.
A organização não governamental de apoio à educação, além das bolsas de estudo, oferece também mentoria, acompanhamento psicológico e apoio multidisciplinar. Entre as bolsas de estudos financiadas, existem oportunidades para cursos profissionalizantes, técnicos, de idiomas, de graduação e até preparatórios para o vestibular.
O Nova Rota possui atualmente nove bolsistas, que realizam cursos técnicos e universitários, uma psicóloga supervisora contratada e cerca de 50 pessoas voluntárias, entre elas profissionais de psicologia responsáveis pelo acompanhamento individual. Além disso, o projeto também auxilia uma ex-bolsista, que concluiu um curso profissionalizante.
Cada bolsista é acompanhado por dois voluntários, que mantêm contato constante via Whatsapp e realizam encontros a cada dois ou três meses. De acordo com Vitor, a relação entre bolsistas e voluntários é uma troca de experiências. Ao mesmo tempo que os mentores formam uma rede de apoio para as pessoas egressas, obtêm aprendizado e conhecimento de uma realidade muito diferente, a realidade do sistema carcerário.
A seleção é feita por meio de um processo seletivo, realizado duas vezes ao ano, que convida egressos do sistema carcerário a tentar uma bolsa de estudos. Além das mentorias e do atendimento psicológico, o projeto oferece apoio financeiro para alimentação e transporte. Toda a equipe fica à disposição do bolsista para qualquer tipo de suporte.
Cristiano Alves Rosa tem 46 anos e é estudante de Tecnologia em Logística. Ele encontrou bastante dificuldade ao sair do presídio mas acredita que o estudo pode ajudá-lo a alcançar seus objetivos. Ao receber o apoio do Nova Rota, sentiu que novas portas estavam se abrindo e viu uma segunda chance. Para Cristiano, não é só a sua vida que está mudando, mas a de todas as pessoas beneficiadas pelo projeto, que sairão das estatísticas de reincidência na prisão.
“Eu acredito que através do estudo a gente pode alcançar mais objetivos. Quando você sai do cárcere, encontra bastante dificuldade, muitas portas se fecham. Mas o Nova Rota acredita que todos podem alcançar um objetivo através da profissionalização. Estudando, fazendo faculdade, um curso técnico, as portas podem se abrir. Eu agradeço ao Nova Rota por tudo o que o projeto tem feito na minha vida. Ele mudou minha história por acreditar e investir não só em mim, mas em outros bolsistas também. Toda essa estrutura tem apoiado a gente. Vidas vão ser mudadas, histórias vão ser mudadas, estatísticas vão ser mudadas. Essa estatística de que, uma vez detento, sempre detento, a gente tem que mudar. O Nova Rota acredita que isso não é verdade, e que as pessoas têm sim como mudar a sua história”
Os bolsistas realizam cursos em diversas áreas profissionais, como enfermagem, administração, logística e assistência social. Embora sejam apenas nove pessoas que recebem benefícios diretos do projeto, toda a família e rede de amizades é beneficiada indiretamente, o que mostra a importância dessas ações.
No ano passado, por exemplo, foi realizado um evento de debates próximo às eleições municipais. O tema foi Direito de Voto, Cidadania e Cumprimento de Pena. “O debate foi uma maneira de engajar a sociedade civil cada vez mais no tema, gerar maior conscientização e quebra de paradigmas, além de ser um espaço importante para que a pessoa egressa tenha voz, protagonismo e possa interagir com outros agentes de nossa sociedade”, conta Daniela Altenfelder, uma das coordenadoras do projeto e formada em Propaganda pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
O Nova Rota realiza parcerias com outras organizações, como o Instituto Recomeçar e o Instituto Responsa, que têm atuação mais focada no mercado de trabalho. Entre as trocas dos projetos, há indicações de pessoas que podem se tornar bolsistas. A organização também firmou uma parceria com a faculdade Estácio de Sá, que oferece bolsas de estudos para os selecionados.
O grupo está próximo de celebrar uma parceria com o Governo do Estado de São Paulo, por meio da Fundação Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel (Funap), que atua em políticas públicas para ressocialização de pessoas em situação de cárcere. O início das atividades está previsto para o segundo semestre deste ano.
Camila Felizardo, 30 anos, é outra bolsista do projeto. Ela cursa Assistência Social na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e se tornou liderança nas pautas relacionadas ao sistema carcerário e feminismo. Camila conta que o apoio do projeto é muito importante para a sua trajetória. A coordenação dos mentores e a terapia semanal são de grande ajuda.
“Eu sou sobrevivente do cárcere. Desde o início do ano, tenho obtido apoio do projeto Nova Rota. A coordenação dos mentores, a psicóloga, tudo é incrível. A terapia tem me ajudado demais, eu acho que é algo que todos deveriam fazer na vida. O incentivo da bolsa de estudo, que financia a minha graduação, é essencial. Eles fazem o trabalho do Estado de retomar essa vida social pós-cárcere. É muito difícil essa retomada sem ter onde morar, o quê comer, vestir, sem ter uma educação, saúde, emprego. E fica aqui a reflexão de como a sociedade está preparada para receber essas pessoas de volta. Como a gente tá se preparando pra receber essas pessoas, quem tá acolhendo essas pessoas? A gente já era presa nas desigualdades sociais antes de entrar no cárcere. E, quando a gente sai, a desigualdade só é agravada. Porque isso torna as pessoas estigmatizadas. Eu desejo que existam mais iniciativas assim, mais conscientização. Todos merecem uma segunda chance. E a gente precisa dar as mãos uns aos outros pra que possa trazer ao mundo mais oportunidades e equidades sociais.”
O projeto foi inspirado no educador Paulo Freire, que influenciou o movimento da pedagogia crítica e participou de projetos de educação popular, uma educação que transcende os conceitos formais e visa a uma evolução horizontal, na qual todas as pessoas envolvidas podem se emancipar.
“Ele traz a ideia de que grupos oprimidos tomem consciência da sua situação por conta própria e, através de ferramentas de autonomia, consigam tomar consciência e transcender essa situação de vulnerabilidade e acessar outras pessoas, de forma a mudar o cenário social”, explica Katherine Martins, uma das coordenadoras do projeto e formada em Direito pela USP.
Ela ainda conta que não é só Freire que influencia o projeto, mas a própria dinâmica da sociedade contemporânea, que “valoriza a existência da pessoa no meio social através do papel de cidadão e da ocupação de papéis sociais específicos, embasados em padrões. A educação formal, a capacitação profissional, o exercício de uma atividade profissional, de alguma forma, são um parâmetro de valorização e reconhecimento pessoal na sociedade”.
Audrey Baz Cunhana tem 28 anos e estuda Educação Física, graduação auxiliada pela Nova Rota. Após a experiência difícil na prisão, mantém-se otimista e pretende criar um time de futebol para crianças em situação de rua. Será uma forma de levar as crianças a um bom caminho, e acolhê-las através do esporte.
“A educação na minha vida trouxe uma esperança de um futuro melhor. Eu acredito que a educação abre portas para que a gente conheça novos horizontes, aprenda e se capacite profissionalmente. E isso é pra vida inteira. Conhecimento ninguém nunca vai tirar de mim. Sou uma pessoa tranquila, da paz. Não curto falar muito das experiências no cárcere porque acredito que foi algo que passou. Foi um momento muito ruim da minha vida, mas hoje eu estou muito feliz, graças a Deus, graças ao Nova Rota e ao estudo. Quando concluir os estudos, quero criar um time de futebol para tirar as crianças da rua. O esporte é muito importante para a vida de todos, para a qualidade de vida, saúde mental, social. Eu curto muito a educação física, o esporte, sempre curti, desde criança. E eu agradeço muito por essa oportunidade de bolsa de estudo, porque o que o projeto está fazendo é transformador a vida de todos que participam.”
O principal meio de obtenção de recursos para o Nova Rota são iniciativas anuais de campanhas de doações em plataformas de crowdfunding. Além disso, o projeto se inscreveu em editais para captação de recursos para o terceiro setor e está aberto ao recebimento de doações de empresas e organizações não governamentais.
No primeiro ano de campanha, em 2020, foi possível chegar a mais de 100 doações por plataformas colaborativas em menos de um mês. No ano passado, o Nova Rota foi vencedor de uma campanha de apoio a instituições sociais realizada pelo escritório Stocche Forbes Advogados, o que resultou em uma doação relevante para o projeto em 2021.
Para ajudar a iniciativa, é possível realizar uma doação pelo link do PayPal.
Para saber mais, acesse:
Site: www.projetonovarota.org
Facebook: www.facebook.com/projetonovarota
Instagram: www.instagram.com/projeto.novarota
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